Mesa redonda

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MESA REDONDA ANTÓNIO ROMA TORRES — Como o Saguenail é responsável por este jogo, acho bem que seja ele a abrir o debate. SAGUENAIL — Logo, à partida, tenho algumas perguntas a colocar ao António Brás, a propósito do texto que ele fez circular. Há uma coisa que me parece perigosa naquilo que ele escreveu: subentender que aquilo que se critica é uma ausência. Ora, para mim, esse é um dos maiores defeitos da crítica, a saber: apontar para aquilo que não está no filme. Um filme não é o que a gente espera. Aí reside precisamente a qualidade de um filme. O filme é o que o realizador lá pôs e que não corresponde à nossa expectativa. Daí a surpresa, boa ou má... Mas a crítica deve interessar-se por aquilo que lá está e não por aquilo que lá não está. ANTÓNIO BRÁS — Aquilo que lá está é apenas uma hipótese. S. — Mas está lá. É essa hipótese que podemos criticar. O que não podemos criticar é a hipótese que lá não está. A. R. T. — Compreendo o teu ponto de vista e estou de acordo. Mas também gostei muito do texto dele e parecem-me posições compatíveis. Não acho que uma invalide a outra. Realmente os filmes não existem. Quer dizer, cada filme são vários «filmes». O realizador ou o autor vê o filme de maneira diferente quando o roda, quando o projecta, quando o monta, quando o exibe e, se calhar, quando ouve falar dele ou vai vê-lo dez anos depois. Aqui já há vários filmes. Existem também os filmes que não existem. Aliás eu usei esse título — «O cinema não existe» (1) — para falar do Orson Welles que teve mais filmes que não fez do que filmes que fez, contudo sabemos que existiram, às vezes mais do que na cabeça dele... A. B. — E existem para nós também! A. R. T. — Apesar do cinema parecer uma actividade de fixação, trata-se duma fixação relativa porque fixa um determinado momento criador mas a criatividade do filme precede esse momento e continua posteriormente. A crítica ganha razão de ser na medida em que o filme «não existe» neste sentido. Pode existir, vai existindo. Existe de maneiras diferentes. No texto que escrevi sobre o livro de João Bénard da Costa (2) frisei que me parecia importante a questão da relação com o tempo; ou seja, o mesmo filme visto em 1940 ou em 1960 ou em 1980 são filmes diferentes mesmo para os autores. A crítica lida ou escrita numa altura pode igualmente ter um significado diverso noutra altura. Mas, por outro lado, estou de acordo com o que diz o Saguenail porque, mesmo não existindo, não é uma ausência completa. Cada filme existe enquanto película impressionada, não possibilita uma variedade infinita de filmes mas permite «algumas variedades de filmes». Efectivamente também acho que um dos grandes defeitos da crítica é ser extremamente subjectiva. Isto é, um indivíduo vê um filme, sente umas tantas coisas e depois escreve outras tantas que lhe passam pela cabeça e que podem não ter nada a ver com o que está no filme para qualquer outro cidadão — são meros estados de alma de alguém que solta um discurso sobre o filme mas podia falar sobre outra coisa qualquer que o tivesse impressionado. Essa postura é totalmente subjectiva — o indivíduo diz coisas dele, sendo o filme um pretexto e às vezes nem isso — e negativa. Pelo menos não é crítica, é outra coisa qualquer. Considero que um texto é uma crítica de cinema quando há uma tentativa de ligar os estados subjectivos (porque a crítica é, em grande parte, subjectiva) ao concreto do filme. O meu filme tem de estar subordinado ao filme que fui ver. Se sinto que o filme tem tal qualidade de ritmo ou tal outra de representação, não posso pura e simplesmente inventar a minha interpretação, mas devo cingir-me aos dados que lá estão e que sustentam a minha interpretação. Agora eu entendo que um filme é um objecto muito mais complexo e admito que lá estejam dados que podem sustentar outras interpretações igualmente interessantes ou possíveis. No entanto há interpretações que não são possíveis porque se estão nas tintas para o filme e constituem apenas um discurso da pessoa que enuncia. A isso não chamarei críticas conquanto possa haver textos interessantes da autoria de personalidades literárias a despeito de não cingirem muito ao filme de que falam. Nesse caso é o autor que está em jogo e eu posso achar graça ao que o Vergílio Ferreira ou o José Saramago (ou qualquer artista plástico ou mesmo simplesmente uma pessoa interessante, cientista ou sei lá...) viram no filme tal. Já sei que não se vai deter no filme e que vou


estar perante o discurso dele. Pode ser até um ponto de vista muito particular e valorizar um aspecto do filme muito peculiar. Digamos que se trata de perceber como é que aquela pessoa com a experiência que tem joga com aquele filme. Sou mais modesto nesse aspecto. Acho que os leitores não estão interessados em saber como é que eu a partir da minha experiência de psiquiatra, por exemplo, ou de outra coisa qualquer, vejo um determinado filme, estão mais interessados em que a minha pessoa com algum traquejo de convívio com o cinema ajude a ver — parece-me aliás que propor leituras é outro aspecto fundamental — a outras pessoas coisas dos filmes e do cinema. Resumindo, estou de acordo que os filmes não existem e concordo que só se deve falar sobre os filmes que existem. É um belo paradoxo. S. — Pessoalmente tenho uma certa confiança no autor. A questão do autor é de resto outro ponto a discutir porque parece surgir como uma evidência e para mim não o é. Acho que o ponto de vista do autor não está limitado pelo ponto de vista ambiente determinado pelo tempo, pelo lugar, etc. Se os filmes do Oliveira despertam alguma emoção em mim é porque, não deixando de ser filmes portugueses de raiz, por um lado, e inseridos numa história do cinema, por outro, eles não obedecem aos padrões em vigor numa determinada época e num determinado país. Ao projectar algo nos filmes e ao criticar essa nossa projecção nos filmes, o risco é projectar uma expectativa que não passa dum lugar-comum. O crítico é muito mais permeável ao ambiente, à moda, etc., do que o autor que apesar de tudo teve de lutar e enfrentar obstáculos de vária ordem. Esses confrontos do autor com o real é que me parecem relevantes. Por isso a ideia do filme como ausência choca-me. Pessoalmente elegi como critério a surpresa, ou seja, algures, o critério da emoção. Lembro-me do que aconteceu com a minha filha quando viu o BAMBI do Walt Disney. Tinha uns quatro anos de idade. Saiu do filme convencida de que tinha visto nitidamente os caçadores a matarem a mãe do Bambi. Fui rever de propósito o filme porque ela chegou a ter vários pesadelos com a fita. Descrevia os caçadores com todo o pormenor, via-os com barbas e tudo. Ora não se vêem caçadores no filme. Mas, de algum modo, essa projecção que ela fez de figuras provavelmente paternas sobre os caçadores ausentes, eram coerentes com o filme porque de facto se sugere a existência de caçadores. Estou a falar dum limite difícil de definir mas que convém definir: situa-se entre aquilo que está pelo menos implicitamente no filme e aquilo que não está e a pessoa lá vê por razões que nada têm a ver com o filme. Preocupa-me a «fraca» existência da crítica de filmes. A deficiência provém também do facto dos filmes que me interessam não obedecerem aos cânones vigentes ou poderem até opor-se radicalmente a eles e, por conseguinte, serem pouco distribuídos e não obterem aquele êxito consensual exigido pelos mesmos cânones. A. R. T. — Penso que a questão da moda toca outro aspecto importante. Tem que ver com o jornalismo cultural, por exemplo. Mas deixaria esse ponto para mais tarde. Estava a ouvir as tuas palavras e estava a dizer para comigo (não afirmaste rigorosamente isso mas quase se podia deduzir): para ti a arte mais interessante é aquela que surpreende e foge aos cânones. Mas um filme pode fugir aos cânones e ser uma valente merda. Fugir dos cânones não implica necessariamente produzir algo de significativo. Uma obra pode ser feita contra os cânones e não possuir qualquer virtualidade que tu aches que uma obra de arte deve conter: beleza, impacto ou outra qualidade. S. — Daí o meu critério não ser puramente formal mas mais propriamente de emoção. A. R. T. — Mas isso é muito subjectivo. Concordas, no fundo, com o que está no texto do António Brás. Eu também não discordo muito. S. — Não se trata de discordar mas de não deixar passar nada que esteja sujeito a caução... A. R. T. — Vou dizer mais. Eu tendo, cada vez mais, a recusar a crítica que formula juízos de valor. Isto é, eu não me sinto autorizado por nada, a não ser o meu critério modesto de cidadão como os outros, a dizer o que é bom e o que é mau. E acho que a crítica não tem necessariamente de ser a antecipação dum juízo histórico e destrinçar o que é obra de arte do que não é, o que é bom e o que não é. Não tem de elaborar uma doutrina antes do tempo. Porque, em todas as artes, é preciso tempo para se esclarecer o que permanece e o que não permanece e, mesmo assim, é possível que a História seja injusta com muito boa gente e com muito boas obras (aí também entram as modas...) A gente nunca tem a certeza de que aquilo que se realça seja o melhor. Cada vez mais tendo a considerar que eu, como crítico — talvez a palavra «crítico» seja discutível — devo apresentar uma


proposta de leitura, de interpretação que, sendo interessante, não avalia o que lá está. Como escrevi no meu texto sobre o livro do Bénard da Costa, a crítica é também um objecto de criação. Nesse sentido, o crítico está muito próximo do autor e tem de trabalhar para que a sua crítica se imponha. Uma crítica impõe-se, não porque acertou no juízo da História, mas porque foi capaz de dizer coisas interessantes, às vezes em si e outras a propósito de. Isto é, surge como um pontapé para a frente nos termos possíveis de um determinado filme sem o esgotar, sem procurar apresentar a verdade última sobre o seu objecto. Eu não pretendo que a minha leitura d um filme seja mais do que estimulante. Não pretendo que encerre nada. Não pretendo definir — cinema é isto, Hitchcock é isto, Godard é isto, Manoel de Oliveira é isto, isto é cinema, aquilo não é — fechar o assunto e acabar a conversa. Muito pelo contrário tento estimular dois tipos de pessoas. Costumo dizer que também escrevo para o Coppola e para o Woody Allen. O crítico produz o texto em função dum autor. Está próximo do autor e relê aquilo que o autor escreve ou diz. Essa leitura pode estimular o autor a entender o que foi entendido, aquilo que não lhe passava pela cabeça e também a exprimirse melhor noutros filmes. Sabemos que o que aqui escrevemos é eventualmente lido por alguns autores portugueses. Sabemos que nem o Bertolucci, nem o Coppola, nem o Godard lêem os nossos textos; contudo, se escrevêssemos nos EUA ou em França, se calhar liam. Pessoalmente, acho que devemos escrever — eu escrevo — como se eles efectivamente viessem a ler-nos, porque o nosso trabalho é um reflexo e o nosso papel é um papel próximo do deles. Por outro lado, é um papel próximo do espectador. De certa forma, somos espectadores com mais gosto pelo cinema. E os espectadores têm tanto mais gosto pelo cinema quanto forem mais críticos, ou seja, mais capazes de fazerem os seus filmes a partir dos filmes que vêem. É tão importante fazerem os seus filmes como fazerem-nos a partir dos filmes que vêem. Porque se se limitarem a fazer os seus filmes então deveriam fazer mesmo filmes e não ir ao cinema. Nesse caso seriam realizadores e talvez se pudesse democratizar o acesso à escrita através do cinema. Como as peias são muitas, a maior parte das pessoas não tem acesso à expressão audiovisual... O espectador valoriza um filme se for capaz de estabelecer sobre ele um ponto de vista crítico. A crítica estimula o autor a fazer outros filmes e estimula o espectador a ver os filmes com uma certa distância. A crítica é tão só esse exercício de distância. Se se aceitar criticamente o ponto de vista do autor — é o embarca ou não embarca que corresponde geralmente ao gostar ou não gostar —, não se beneficia da distância intermédia que permite fruir o cinema de uma forma que dá gozo. Não acho que um filme possa ser bom e não me dar gozo pelo menos se estiver disposto a isso. Nem sempre se está disposto para determinadas coisas que são boas. Posso gostar muito de «Rojões à Minhota» mas não me apetecer comer ou estar com uma figadeira. Portanto existem condicionantes mas, teoricamente, o gozo é um bom critério. HUMBERTO LOPES — Voltando à questão dos juízos de valor. O defeito dos juízos valorativos é fecharem as portas a qualquer reflexão posterior. Ainda por cima tendem a ser definitivos e quem os lê fica bloqueado ao contrário do que acontece com uma abordagem crítica que se debruce sobre aspectos positivos e negativos tentando iluminá-los e relacioná-los com um sistema socio-cultural e com uma História. Se a crítica prescindir dos juízos valorativos e fizer esse esforço, deixa a quem lê e a quem procura uma opinião (nos jornais, nas revistas, etc.), uma margem de reflexão pessoal e autónoma. A. R. T. — Exacto. Uma crítica deve estimular outra crítica. Estimular o gosto por ver filmes, por criticá-los e eventualmente lê-los da mesma ou doutra maneira. A crítica judicativa é de facto uma crítica autoritária. Percebo essa «autoridade» se as pessoas tiverem um critério estético rigoroso que, em regra geral, será sectário. Se for surrealista, filmes surrealistas é que é; por conseguinte, tudo o que seja filme neo-realista não presta. Admito mais isso num artista, num autor. Os autores podem ser mais parciais e tal parece-me aceitável. O indivíduo que faz filmes pode mais facilmente defender uma estética precisa e limitada. O espectador pode, e deve, no meu entender, estar permeável a diferentes abordagens estéticas. Não tem que comparar Picasso com Leonardo Da Vinci. Aliás, quando falamos de obras consagradas, entendemos que a diversidade impera. Historicamente há um jogo; mas em planos estéticos muito contraditórios coexistem obras que atingem um grande interesse por serem altamente estimulantes. A partir de pressupostos estéticas


diferentes, o espectador deve ser sensível ao que é estimulante. No fundo, ao que é criativo. O crítico pode identificar o que não é uma pura repetição e deve estar permeável ao que é criativo... RODRIGO AFFREIXO — O crítico deve ser como um juiz num tribunal? A. R. T. — Eu acho que não. R. A. — Que não? A. R. T. — Que não deve ser como um juiz num tribunal. REGINA GUIMARÃES — Em relação à tua ideia de crítica aberta que suscita outras críticas e não encerra em si um conjunto de juízos definitivos, gostava de dar uma achega. Acontece que há filmes que apelam para esse tipo de crítica porque também são fechados. A. R. T. — Para mim é uma limitação dos filmes o serem fechados. R. G. — Certo. Apesar de não ter grande experiência nesta prática da crítica, ao fim duns fatídicos meses de actividade «regular» no Primeiro de Janeiro acontecia-me achar que os filmes faziam todos a mesma coisa. Que os filmes se fechavam a mim. Logo eu só tinha uma hipótese que consistia em reiterar no meu discurso um sistema de valores que era fechado e meu. Provavelmente, não havia nenhuma relação entre o sistema fechado dos filmes e o sistema onde eu me fechava. Isso era um limite meu. Talvez seja imodéstia, mas penso que também era uma limitação de alguns filmes que eu via. Em suma, a partir de certa altura não tinha nada a dizer sobre a maioria dos filmes. A crítica transformava-se num mero exercício... A. R. T. — Eu condeno a crítica sado-masoquista. R. G. — Mesmo assim, cada vez que escrevi uma crítica tentei, mal ou bem, falar sobre os filmes. Não sei se em sintonia se em completo desfasamento. Mas tive a sensação de me repetir, o que me parecia um tanto estranho. Porque das duas uma: ou eu me tinha transformado numa espécie de papagaio, ou os filmes papagueavam as mesmas coisas. Por isso parei de escrever. A. R. T. — Eu que escrevo com periodicidade semanal há dezasseis anos, devo estar repetidíssimo. R. G. — Quando afirmo que descobri os limites do meu próprio sistema é porque justamente não acho pertinente dizer apenas que os filmes eram maus. A. R. T. — Mas a verdade é que, em média, há muitos filmes que são razoavelmente desinteressantes. R. G. — Independentemente dessa constatação (da qualidade média dos objectos) eu estava a tocar os limites do meu sistema. O que não deixa de ser útil para mim, mas é inútil para os outros. Resumindo, não conseguia ver novidades nos filmes, logo não era capaz de escrever coisas novas. A. R. T. — Mas aí eu tenho uma dúvida: ou se entende a crítica como uma coisa absoluta ou pelo contrário se entende a crítica como uma coisa que cada qual faz à sua maneira, tendo em conta o público do jornal diário, do semanário ou da revista de cinema para onde se escreve. No segundo caso, produzem-se coisas diferentes em certa medida. As balizas são mais ou menos as mesmas, a forma de expressão é que é diferente. Ao ritmo dum jornal diário, os textos são mais escritos em cima do joelho, a expressão é mais instantânea, menos reflectida. É filme visto, texto escrito, jornal publicado, embrulha peixe no dia seguinte e está a andar. Convém não esquecer que é neste ritmo que um indivíduo tem uma voz e diz coisas_ R. G. — Mas isso até tem o interesse da espontaneidade... A. R. T. — Em contrapartida, a atitude básica do crítico não deve ser diferente. Pela parte que me toca, escrevo para leitores, não escrevo por puro gozo pessoal. Não estou lá muito de acordo com a pessoa que defende que o texto é secreto. A gente não escreve só para a gaveta. H. L. — É secreto no momento em que é concebido. A. R. T. — Poderia ficar por ali, por assim dizer... O meu texto não nasce para morrer ali. Escrevo sempre para alguém. S. — A Regina empregou o adjectivo «novas» quando falou das coisas que gostaria de escrever. Tu dizes de filmes mais «criativos». O que quer dizer que há sempre algures um critério de valor, seja ele a novidade ou a criatividade ou aquilo a que eu chamo a surpresa. Individualmente podemos escolher nomes diferentes para designar esses critérios. Na prática, há filmes que achamos bons, outros que achamos maus. Quando afirmo que a crítica deve ser subjectiva, quero dizer que, perante um filme interessante, o primeiro papel da crítica é tentar explicar razões objectivas que sustentem a


reacção inicialmente subjectiva ao objecto. Por outro lado, o crítico não é um espectador qualquer, porque não vai ver um filme por mera distracção. No melhor dos casos, é um fanático, um apaixonado. No pior dos casos, é um profissional. Em qualquer dos casos, atribui ao cinema um papel mítico que ultrapassa a sua função de puro divertimento do sábado à noite. O crítico tem uma bagagem, não tanto teórica, antes histórica, por ter visto muitos filmes e ter lido comentários sobre esses filmes, o que implica que o seu discurso não nasce de geração espontânea e, na maioria das vezes, assenta em bases muito concretas. Ou pelo menos beneficia de algumas cauções... de outros críticos ou de autores. A. R. T. — Afinal, não estamos em desacordo. S. — Não se trata de desacordo. Trata-se de ir mais longe e tentar definir quais os critérios objectivos de que nos servimos para sustentar a nossa subjectividade. E aquela outra questão que há pouco levantei ainda não foi aprofundada. Já agora levantava uma terceira, a propósito do diálogo com os outros. Não perfilho a posição do António Brás que define o crítico-vampiro. Penso que o primeiro crítico e decerto aquele que mais produz em termos de trabalho crítico é o próprio autor. O autor viu quinhentas vezes cada imagem do seu filme... A. R. T. — Mas por isso mesmo não pode ver tão bem. S. — Não sei se pode ver tão bem ou não. Mas julgo que na maioria dos casos o autor está perfeitamente consciente das fraquezas do seu filme. A. R. T. — A maior parte dos filmes só os vejo uma vez. Se os visse dez vezes, poderia eventualmente elaborar um estudo porventura interessante sobre cada filme com elementos que à primeira vista me escapam e passam desapercebidos a grande parte dos espectadores. Mas eu parto de um pressuposto, a saber que os filmes são feitos para serem vistos uma vez. O autor não faz o filme a pensar que haverá espectadores tão apaixonados pelo filme que o irão ver dez vezes. Isto não acontece com um livro ou com um quadro que permanecem e aos quais temos um acesso muito diferente. O cinema tem um ritmo de passagem que não é compatível com essa outra relação. O tempo de relação com o filme é a projecção cinematográfica. O que não invalida que se elaborem estudos sobre o cinema... só que isso já não é bem crítica de cinema. S. — Eu duvido que o crítico possa dizer seja o que for que o autor não tenha considerado a dado momento da realização do filme. A. R. T. — Aí é que estamos em total desacordo. S. — Espera! A bagagem do crítico faz com que mesmo a primeira visão seja uma visão orientada e nunca uma visão inocente. Além disso quando o crítico quer fazer um estudo mais aprofundado, vai rever o filme. A. R. T. — Tem de ter uma atenção treinada. A. B. — Que falseia a visão do filme. S. — Pode falsear ou não. O que ponho em dúvida é que essa crítica possa descobrir aspectos ocultos que tenham escapado ao autor. A. R. T. — Tu tens das duas entidades visões absolutas, quer do criador quer do crítico. O António Brás através do texto dele exprime visões mais relativas. Pessoalmente incomoda-me o excesso de responsabilidades e prefiro ser um crítico mais relativo. O que não quer dizer que se publiquem os textos com uma despreocupação total, do sujeito que manda umas bocas de trás e nem tem nada a ver com a situação. É um ponto de vista relativo à imagem do que acontece com o autor. Há muita coisa de que o autor não se dá conta; só se apercebe de certos aspectos da sua obra lendo alguns comentários ou em conversa com outras pessoas. Esses aspectos são iluminados graças à visão dos críticos e dos espectadores. S. — Penso que o crítico pode ser solidário do autor, que lhe pode apontar coisas mais conseguidas ou menos conseguidas. Mas a função do comprometimento parece-me extremamente importante. Afirmar aqui e agora a relevância ou irrelevância de tal trabalho. A. R. T. — Está certo, mas não é por um direito de autoridade que lhe assiste. O crítico é lido e criticado pelo leitor e pelo autor. Quando escrevo uma crítica, ela pode ter alguma implicação para quem faz um filme, não por eu ser um crítico excepcional com uma autoridade extraordinária — se digo mal, o autor fica preocupado, se digo bem, fica envaidecido, e confia que a História o vai


julgar bem —, mas porque aquilo que eu escrevo é estimulante, quer num sentido positivo, quer num sentido negativo, para ele ver a excelência daquilo que fez ou pelo contrário as limitações. Sem contudo afirmar: «isto foi bom, isto foi mau». Trata-se dum jogo de leituras. O que é que me diferencia de ti? Não é um desacordo teórico. É que tu és crítico e fazes filmes e eu sou crítico e não faço filmes. A minha escrita não tem relação nenhuma com realizar filmes. Não penso vir a fazer filmes a não ser eventualmente amadores como já me aconteceu fazer alguns. Claro que quando os fiz, a minha experiência como crítico não foi alheia à sua concepção, só que para mim isso é uma actividade secundaríssima, sem peso nenhum no conjunto das coisas que eu faço. Portanto, não é enquanto realizador que escrevo, mas como pessoa porventura capaz de traduzir por palavras coisas que ditam as obras de arte (neste caso os filmes) e que são, por natureza das coisas, ainda pouco possíveis de dizer por palavras. Logo é um jogo entre o mistério da obra (dum autor que exprime naquele domínio artístico coisas que não se podem dizer por palavras) e eu que procuro desvendar algo com o empobrecimento que daí resulta e, por conseguinte, devo remeter para mais filmes. Doutro modo a crítica afunila, torna-se explicativa. No fim de contas, a crítica é um jogo de palavras. S. — A crítica tem um papel importante ao nível da consciência que se pode ter da evolução do media. A. R. T. — A consciência, no fundo, é o que resulta da capacidade de verbalizar. S. — Continuando a tentar responder-te: mesmo encarando a crítica como parte integrante de uma actividade virada para o fazer filmes, tento não ter a postura do realizador a falar quando faço crítica. Faço crítica como espectador não igual aos outros mas ainda assim como mero espectador. A. B. — Mas vês os filmes em função dos filmes que queres fazer. S. — Não. Isso não é verdade. Antes pelo contrário. Tento reconsiderar os filmes que quero fazer em função daquilo que já foi feito por outros. Nos momentos de maior loucura, saio eufórico dum filme dizendo para comigo: «Este filme já não preciso de fazer!» A. B. — Ou pelo contrário: «É isto que eu quero fazer ou é isto que não quero fazer.» S. — Isso já me passou. Já atravessei uma fase desse tipo, quando tinha dezasseis anos e dizia que o meu próximo filme ia ser um filme do Godard. Mas julgo ter ultrapassado essa infantilidade e agora penso duma forma mais lúcida. R. G. — Eu sou um bocado mais secundária ou, pelo menos, mais lenta. Com as palavras acontece uma coisa estranha: o facto de escrever sobre os filmes e a distância que assim se cria transforma o espectador. Eu preciso de me habituar às obras. Apercebi-me disso, por exemplo, no último filme do Manoel de Oliveira. Consegui prender-me a pormenores — as mãos, os segundos planos — sem perder o fio de sedução da palavra. A crítica de cinema faz com que eu descubra aspectos nos filmes que de todo em todo me passariam desapercebidos num envolvimento diferente quer fosse de empatia, apatia ou tédio. Consigo olhar para os filmes duma forma que talvez seja até um pouco esquizofrénica. Este filme do Manoel de Oliveira agradou-me pela direcção de actores que achei diversa do que ele costuma fazer, mas também porque, a partir do momento em que percebi a estrutura do filme, deixei-me fascinar por outros aspectos da composição do filme que noutras circunstâncias não me chamariam tanto a atenção. No meu caso, isso tem a ver com o facto de escrever sobre filmes e com o facto de já ter visto muitos filmes do Manoel de Oliveira. Normalmente custa-me imenso falar sobre a obra dum autor. Só consigo em geral falar dum objecto de cada vez. Ou então preciso dum grande convívio com a obra para exprimir uma visão mais global. Tenho alguma tendência para me perder em pormenores e essa tentação só é válida quando a pessoa já viu muitos filmes do criador e o significado de um pormenor pode inscrever-se numa perspectiva mais totalizante. A. R. T. — Às vezes, a obra do autor ajuda a perceber o próprio filme. É o caso nitidamente dos filmes do Manoel de Oliveira. Comparando este mais recente com os anteriores ou com os mais antigos, encontra-se um fio, uma lógica que faz com que o filme possa ter uma leitura mais interessante do que visto na sua individualidade. Com outros autores não acontece o mesmo. H. L. — Um filme pode esclarecer outro. A. R. T. — Com o Coppola é evidente. Com o Spielberg, para meu gosto, também é evidente.


S. — Parece-me que um filme também tem interesse em relação aos outros filmes que se fazem e são exibidos na mesma altura. A. R. T. — Um sujeito que veja o ALWAYS — aí está um filme de que eu gostei quando muita gente não gostou — na minha perspectiva muito ligada à leitura que fiz do E.T. — pode perceber um registo que doutro modo não detectará e passa talvez a ver o filme como um simples «remake». H. L. — Falamos de coisas que não estão explícitas mas que são implícitas no quadro de uma obra composta por outros filmes, entre os quais pode haver uma relação esquemática ou temática. A crítica será então ler coisas que não estão explícitas mas que o filme contém ou sugere. S. — Parece-me tão importante relacionar os JARDINS DE PEDRA do CoppoIa com outros filmes sobre o Vietnam e, mais ou menos contemporâneos, como com o APOCALYPSE NOW. A. R. T. — Mas aí entramos mais num domínio de abordagem sociológica que também compete à crítica mas não é o seu cerne. O essencial deve carrilar para a leitura do filme e não para a memória cinematográfica. S. — A Bíblia e o Crime e Castigo são as histórias mais adaptadas ao cinema e A DIVINA COMÉDIA não se pode entender fora desse contexto. É mais uma adaptação mas é radicalmente diferente das anteriores. R. G. — No quadro estreito do cinema português — estreito por se realizarem poucos filmes, não no mau sentido —, parecem-me muito visíveis certos aspectos recorrentes que são condicionados pelos ditames da moda, por um certo «ar do tempo». Convém destrinçar essa «palha» daquilo que escapa absolutamente à intoxicação. A. R. T. — O que não quer dizer que o que está na moda seja mau e o que não está seja bom. Isso acontece frequentemente mas não necessariamente. Uma obra pode ser resultado de um tratamento interessante, percebido na sua época corno interessante, e ser mais tarde tida como interessante quando já deixa de estar na moda. Inversamente, não é por uma obra não estar na moda que se torna interessante. S. — Quando dizes, retrospectivamente, interessante apesar de ter estado na moda é porque afinal não estava tanto na moda como isso. Existem mal-entendidos. A. R. T. — Mas então estás a estabelecer um critério negativo que é: «estar na moda». S. — Não. Estou a dizer que a moda é uma projecção de clichés ideologico-ambientais numa determinada época. A. R. T. — Isso leva-nos a outro ponto que é valorizar negativamente aquilo que tem êxito. Estás quase nesse ponto. S. — Não. A.R.T. — O que faz com que uma obra tenha êxito é um determinado número de condições que não dá nem retira necessariamente interesse ao objecto. S. — O filme do Manoel de Oliveira está a ter público e é fora de moda. A. R. T. — Sei lá se é fora de moda. S. — Obviamente está. R. A. — Há que definir o que é a moda. H. L. — Será que é uma coisa que se vende muito e que se procura e que toda a gente imita ou será algo de mais complexo... A. R. T. — Há muito boa obra de arte saudada pelos contemporâneos e muito boa obra de arte que não o foi. S. — Mas eu não acredito no critério do tempo, acredito no critério do crítico. A. R. T. — Tu achas que o crítico devia mandar no tempo... S. — Acho que a crítica é um acto de compromisso. Não defendo exclusivamente o cinema surrealista, longe disso; mas, ao nível da literatura, se não fosse o André Breton, muitos autores continuavam a ser desconhecidos e estariam excluídos da história da literatura. Houve alguém que, contra todas as instâncias bem pensantes, foi lutando pela divulgação de criadores desconhecidos. A. R. T. — Mas quantos sujeitos lutaram pela divulgação de autores que não ficaram? Eu acho que isso não tem mal. Realmente esse papel da crítica que consiste em chamar atenção para as obras


para que elas sejam reconhecidas pela História é muito importante. Só que o crítico não tem tanta certeza de que o resultado do seu empenhamento vai ser esse. S. — É uma questão de paixão. R. G. — Há bocado falava-se da moda como processo de venda de mercadorias. Ora a moda é um fenómeno muito mais complexo. O que se vende com a moda é uma mercadoria da qual quase já não conhecemos os limites. A certa altura, a pessoa já não sabe muito bem se gosta das coisas porque gosta ou se gosta porque lhe ensinaram a gostar. A. R. T. — O cinema americano parece-me uma boa referência. Houve muitas coisas produzidas à luz de determinados padrões que condicionavam e contaminavam as obras que transcenderam esses padrões. Sem que isso implique necessariamente subversão dos padrões. À distância avaliamos melhor se as obras realmente ultrapassavam os limites do produto «standard» ditado pelo funcionamento da indústria cinematográfica que obedece a exigências de continuidade, rentabilidade, etc. O Scorsese é um grande autor na minha opinião. Ou o Woody Allen. E funcionam dentro dum esquema industrial. Para além doutros mais ou menos marginais. O Spielberg, no meu entender e contra a opinião agora corrente, é um autor interessante e tem funcionado o mais possível dentro do sistema. R. G. — Há que estabelecer uma diferença entre a indústria e a moda. A indústria é um sistema dentro do qual se produz uma coisa. A moda são os padrões segundo os quais essa coisa se produz. H. L. — Há a indústria da moda e a moda da indústria... A. R. T. — A indústria implica o consumo e há padrões de consumo que estão relativamente codificados e que obedecem a «timings» que têm que ver com a moda. S. — Não podemos ficar pelos jogos de palavras. A indústria cinematográfica americana sempre assegurou para o filme médio a rentabilidade — o reembolso a curso prazo — com base na distribuição no circuito interno. A censura americana nunca foi do mesmo tipo que a censura dos produtores na Europa. Os produtores europeus corriam de facto o risco da falência porque não tinham essa rede de distribuição a jusante da produção. O pseudo-gosto do público não era tanto assim levado em conta. Hollywood foi capaz de produzir filmes muito mais chocantes do que a indústria europeia. Há histórias muito conhecidas de censura arbitrária, mas acho que os produtores americanos não eram tão puras bestas como os congéneres europeus. Não estejamos com meias palavras... A. R. T. — O que aqui está em jogo é a crítica e a obra. Independentemente de factores circunstanciais, a obra continua a significar algo. Os factores não a qualificam, nem a desqualificam. Os filmes são produzidos dentro ou fora duma máquina industrial. No último caso, isso tem regras... S. — Cita-me um só filme na história do cinema que seja um produto puramente conjuntural e que, retrospectivamente, consideres uma obra-prima e que não analises esse produto como um objecto que transcende os factores conjunturais da moda... H. L. — Os filmes do Frank Capra. Hitchcock... S. — Hitchcock??? O Hitchcock teve logo à partida as mãos completamente livres em relação por exemplo à verosimilhança dos argumentos. A. R. T. — Mas porquê? Por ser um gajo barrigudo? Foi porque o sujeito se impôs provando a eficácia dos produtos pelo consumo. S. — Se compararmos os filmes do Hitchcock com a produção média da época... A. R. T. — A moda não é necessariamente conservadora, não implica reiteração de modelos... É a imposição de algo que obtém um êxito conjuntural por razões que podem ser relativamente aleatórias mas que fazem que esse algo triunfe como modelo. O facto de se impor como modelo não desqualifica forçosamente uma obra. Não é por estar na moda que uma coisa é menos valiosa. Retrospectivamente salvam-se os produtos em que existe uma relação mais complexa entre os imperativos da moda e os conteúdos. Por outro lado, mesmo os filmes maus são extremamente ricos. R. G. — Ainda a propósito dessa distinção entre a indústria (o sistema no qual se produzem os filmes) e a moda (os padrões segundo os quais eles são feitos), li recentemente uma série de depoimentos do


Scorsese (3) que me surpreenderam imensamente. Ignorância minha decerto! Nas entrevistas aborda-se a questão das montagens de produção. A quantidade de interlocutores com quem ele tem de negociar até ao momento em que o filme, considerado viável, vai ser definitivamente escrito, é inacreditável. Um tipo reconhecido como o Scorsese tem que convencer uma longa cadeia de pessoas. O que fará um desconhecido no mesmo sistema americano! A indústria e as suas regras é uma coisa bem distinta da moda. O Scorsese tem uma ideia mas deve submetê-la a uma longa fase de diálogo e de «cedências» que implica um amadurecimento do projecto primitivo até conseguir vender a ideia. E cada vez que faz um filme, dá a entender que volta ao ponto de partida e volta a percorrer as mesmas etapas, apesar de ser um autor famoso. Talvez isto seja uma das virtualidades do sistema americano... em todo o caso, na Europa o funcionamento é diferente... O Godard pode fazer filmes para público nenhum. Já ninguém deita contas aos 5, 500, 5000 ou 20000 espectadores que compram bilhete para ir ver os filmes dele. É uma produção de prestígio. Nos EUA, essas produções mais «off» são provavelmente muito mais marginais. S. — Porque o sistema não admite autores... R. G. — Aí estamos realmente a falar numa indústria, coisa que já não existe na Europa. Os filmes que aqui se fazem não são rentáveis. As produções podem depender de vários graus de malentendido, mas não anda ninguém a vender ideias da maneira que o Scorsese descreve. A. R. T. — Estamos a desviar-nos do assunto. S. — Penso que não. O papel da crítica é encontrar e formular as razões objectivas — que não só subjectivas — que explicam porque é que um filme do Scorsese se distingue da produção «standard» enquanto outros não saem da mediania por serem totalmente convencionais. Ou seja determinar a diferença entre o Carpenter e o Scorsese. R. A. — Isso aí passa pela definição de autor. S. — Passa sobretudo pela definição de critérios de valor. O autor não é uma entidade em si. O cinema, ainda por cima, é a mais contingente de todas as formas de produção. Depende do dinheiro, da conjuntura, de milhentas pessoas que contribuem para o filme. De facto é uma noção dúbia mas implica algures uma vontade — quase tanto por parte do produtor, aliás... A. B. — Isso é uma questão de tradição. S. — Resumindo: há filmes que devemos defender, outros sobre os quais nem devemos falar. H. L. — Vocês não acham que os filmes do Frank Capra são filmes datados, no melhor sentido da palavra, numa relação muito íntima com o tempo em que foram produzidos — a depressão — e que exaltam claramente os valores do sistema americano? Eram filmes populares mas resistiram à usura do tempo. Será que os critérios de apreciação que vigoravam na época podiam ser semelhantes aos que utilizam hoje? É apenas um exemplo. S. — Podias dar o exemplo dos musicais. Lembro-me da grande retrospectiva consagrada aos filmes musicais que a Cinemateca organizou. Devo dizer que no domínio do musical distingo alguns «autores» cujo saber-fazer desperta em mim alguma emoção, mas a maioria não me tocam minimamente. Com o Capra é um pouco a mesma coisa. R. G. — Aquilo que o Humberto dizia em relação ao elogio do mundo e dos valores americanos por parte do Capra parece-me significativo. Se os filmes do Capra ainda têm alguma actualidade é porque continuam a falar da mesma coisa. Globalmente, os temas do Capra não são letra morta. Basta ires ver o último filme do Cimino — DESPERATE HOURS — para perceberes que o fundo do debate e do discurso ainda não mudou. Nesse sentido, os filmes do Capra são actuais. Que as teses defendidas tenham mudado, é provável. Mas os objectos sobre os quais se debruçam, esses, permanecem. Portanto eu percebo que o Capra sobreviva como cineasta ou autor como lhe quiserem chamar. S. — Entretanto houve uma evolução na própria maneira de ver o cinema. O cinema foi, antes de tudo, uma forma de registo da mitologia ambiente. Foi industrial no tempo do mudo — havia a indústria italiana, a francesa, a alemã, a inglesa, etc. O interesse que temos por alguns filmes dessa época é semelhante ao que sentimos por certos objectos que vão entrar nos museus — artesanais ou artísticos. É um interesse histórico que corresponde a uma vontade de entender os mitos, os valores, o saber-fazer, a técnica, etc. A crítica evolui porque com o correr do tempo, a partir dos anos 50


(mas, para sermos honestos, devíamos voltar aos anos 20) certos críticos tentaram formular objectivos. Penso que devemos ser bastante radicais. Quando o Rohmer, no fim dos anos 50, afirmava que o cinema era de todas as artes a mais avançada, estava, a meu ver, totalmente enganado, embora eu me sinta solidário dessa atitude de compromisso. A. B. — A Nouvelle Vague veio depois do Nouveau Roman, depois do Teatro do Absurdo... S. — O cinema, por razões muito óbvias, tem vindo a manter um atraso considerável em relação às outras vanguardas artísticas. Basta pensarmos naquilo que em cinema é considerado audacioso. Há «audácias» no cinema que estão totalmente ultrapassadas noutras artes de figuração ou de ficção. A. B. — Isso é próprio de todas as artes populares. Em relação ao teatro, o cinema parece sempre atrasado. S. — O cinema assume um papel de vulgarização. Podemos retomar o bom exemplo do Manoel de Oliveira. Na DIVINA COMÉDIA, não encena o Dostoievski como o encena de maneira a tornar evidente, mesmo para um espectador desprevenido, as escolhas estéticas de encenação — por exemplo, a opção do plano fixo. O critério formal é tão ostentado que salta aos olhos de qualquer pessoa. O Manoel de Oliveira obriga o público a ser sensível à sua forma de filmar, de mostrar. Essa é a grande modernidade dele. R. G. — Nós nunca nos cansamos de falar do Manoel de Oliveira. A. R. T. — Isto passa por outras questões como por exemplo definir o que é a arte. Acho que todas as pessoas têm alguma ideia sobre isso. Pessoalmente oscilo entre duas perspectivas. Costumo citar o Adorno que considero muito importante neste aspecto. Ele sublinha que a mensagem pode resultar não de um conteúdo explícito mas dum confronto de linguagens entre o que está estabelecido, o que é possível dizer, e o que se impõe naquela altura. Ou seja, uma ruptura de linguagens. Numa determinada época, uma saturação de linguagens tem um determinado valor e abre o campo. Mas isso não invalida completamente o carácter expressivo, positivo e não apenas em ruptura de toda a arte e da arte nos dizer algo. Eu sou sensível àquilo de verdade universal que o Manoel de Oliveira propõe nos seus filmes em virtude da sua experiência que passa pela idade, pela textura de uma formação intelectual de um determinado tipo cultural, nacional, etc. — ter lido o que leu e convivido com quem conviveu — que modelam uma visão do mundo. Penso que é raro o autor cuja motivação fundamental não vem de algo de simultaneamente pessoal e universal. S. — Se é pessoal, não pode ser definido pela moda. Já é um critério. A. R. T. — Eu não disse que a moda era um critério positivo. Só disse que não era necessariamente um critério negativo. O que é uma obra-prima? É uma obra que dá à humanidade uma determinada visão das coisas — esclarecedora, estimulante, propulsionadora para o futuro, para o entendimento em geral. As obras-primas são raras. Podemos ter uma concepção do que é o melhor que se pode atingir mas não vamos usar como critério — falei disso no texto em que citava o Gramsci — o padrão negativo de não ser obra-prima. O S. fez uns filmes que não são obras-primas mas que são suficientemente interessantes, a meu ver, enquanto propostas num determinado contexto e numa determinada leitura que eu fiz deles. Neste aspecto, a crítica é nitidamente tendencial. E eu enriqueço os filmes — ou empobreço-os conforme o ponto de vista — juntando-lhes algo que também é da minha originalidade e criatividade. Retomo ainda o meu texto, avançando a ideia da poética da crítica cinematográfica. O fim da crítica cinematográfica, em última análise, é pura e simplesmente ser um discurso sobre uma obra — pode ser sobre um filme; todo o discurso sobre um filme tenderá para a crítica — pode ser melhor ou pior; e esse discurso não é fechado em si próprio, não é só racional, é também uma outra obra de arte, também tem uma poética e potencialmente estimula outras pessoas. O que não quer dizer que seja poesia no sentido que a Regina lhe dá no seu texto. Acho que se pode fazer excelente poesia, até motivada por filmes, sem que isso tenha nada a ver com aquilo que estou a tentar definir. A crítica vale mais não pelo critério — embora possa ser importante defender uma obra, dizer o que é bom ou o que é mau, e eu por vezes faço isso, embora raramente por uma questão de modéstia — mas pela originalidade do ponto de vista. A. B. — O crítico é também um autor? A. R. T. — O crítico é um autor. H. L. — E a crítica pode ser um objecto estético? A. R. T. — Em certa medida, acho que sim.


H. L. — Então propõe uma estética da crítica? A. R. T. — Exactamente. A crítica estabelece um jogo entre as palavras e a memória do filme visto capaz de se impor como tal. Não se trata duma coisa completamente dita. Pode ser até uma crítica imperfeita. Um indivíduo pode ser mais sensível a um aspecto particular, focá-lo e trabalhá-lo mais, quer na parte técnica ou na artística e ao fazê-lo enriquecer a obra. Não é uma obra de arte autónoma mas pode suscitar outros discursos e ampliar a criatividade de uma obra mediana. No meu entender, a crítica pode valorizar os filmes, não por emitir sobre eles juízos de valor, mas por aquilo que é capaz de lhes incorporar. R. G. — Aí, no fundo, revelas-te em consonância com as preocupações essenciais do artista moderno. Torna-se quase impossível, para o artista moderno, dizer que a sua obra existe independentemente das outras obras e dos discursos que as acompanham. Há bocado referias-te ao facto de eu falar de poesia no meu texto. Eu dizia mais propriamente «abrir uma brecha...» A. R. T. — Mas tu és poeta e eu não. R. G. — Eu queria apenas esclarecer que a minha proposta não era exactamente transformar a revista A Grande Ilusão numa publicação de poesia. Todavia, talvez eu tenha uma experiência de visão dos filmes um tanto diferente. Eu diria que uma obra-prima é aquilo que mais acabrunha uma pessoa. Uma pessoa fica devastada. É uma questão de gradação: uma obra mediana esmaga menos. A. R. T. — Quando ficas entusiasmada com uma obra-prima, dizes assim: «Este filme cilindrou-me completamente!» R. G. — Deixa-me explicar... é ridículo mas paciência. A crítica, para mim, é todo o trabalho de toupeira para voltar a ver a luz do dia depois desse esmagamento, dessa passagem pelas trevas. Numa obra-prima, esse percurso é muito maior do que numa obra mediana. H. L. — O acto de escrever funciona um pouco como uma forma de organizar esse percurso. R. G. — Eu não sei se é bem organizar. É um trabalho de cegos. Às apalpadelas. A. R. T. — Eu acho que nas melhores críticas que escrevo a questão da forma também é importante. Os filmes que acho mais interessantes são aqueles que me estimulam a escrever uma crítica mais refinada do ponto de vista formal. A própria maneira de dizer depende do objecto do discurso. Sobre o THELMA E LOUISE a crítica é trivial. Sobre um filme do Manoel de Oliveira — e felizmente muitos mais porque ainda gosto de muitos filmes, não estou reduzido ao convívio com as obras-primas — empenho-me mais pessoalmente. Às tantas é mesmo isso que tu dizes. E essa é a grande vantagem da crítica. A tua frase fez com que eu me desse conta de determinada coisa... Fazem-se filmes para as pessoas se darem conta, escrevem-se críticas para as pessoas se darem conta. E ninguém ensina nada a ninguém. Uns minutos depois de tu já teres dito, eu inteligentemente puxei pelo raciocínio e disse: «É isso mesmo!» R. G. — Eu não estou de acordo com a teoria dos filmes que não existem mas há uma certa cegueira que os filmes instalam. Se forem muito bons, uma pessoa fica completamente cega. Quando falo da toupeira que consegue voltar à superfície de si própria refiro-me a isso. Não sei bem se é um trabalho de organização. É-o decerto para nós, mas para outrem pode parecer trabalho de desordem. Quantas vezes o S. me diz que ninguém consegue entender nada daquilo que eu escrevo: «Tal texto é elíptico, misturas conceitos, ninguém pesca nada!» H. L. — Isso é uma das críticas que por vezes se faz à crítica: o ser hermético. S. — Ora, ora. As mais das vezes é pura preguiça do leitor. Mas já que falamos disso, o chamado racional... R. G. — Ai que já me estou a sentir visada... H. L. — Não, tu é que falaste do problema de ser ou não entendido. A. R. T. — Mas há muito boa gente que escreve para não se entender... H. L. — Parece-me interessante a ideia de escrever para acrescentar alguma coisa ao filme... A. R. T. — É possível escrever sobre tudo não dizendo nada, com a ideia ou a aparência de que se está a dizer alguma coisa. Muitas vezes essa coisa é boa e má ao mesmo tempo e surge enredada num jogo de frases mais ou menos ocas de sentido, mas que constituem um conjunto articulado que passa por ser um texto. E isso é moeda corrente, não só em Portugal mas noutros países mais «civilizados».


S. — A questão formal é importante. Uma das minhas preocupações sempre que escrevo é a vontade de racionalização. Nunca consigo perder de vista a ideia que essa racionalização é apenas uma forma de malabarismo. Isto é, o meu trabalho de crítico é utilizar todos os instrumentos teóricos e racionais ao meu dispor para sustentar uma determinada posição. Quando falo de critérios objectivos, tenho consciência de que essa objectividade é puramente imaginária e depende de uma capacidade maior ou menor de coerência ao nível do discurso. Contudo considero que é fundamental organizar, não direi um sistema, mas mais modestamente um pensamento de maneira coerente para poder convencer. Por outro lado, gostaria de voltar a um ponto que abordaste: parecete óbvio que a crítica — a tua crítica — tem leitores... A. R. T. — E achas que não tem? S. — Tem. Alguns até são conhecidos meus. Agora nunca encontrei leitores daquilo que eu escrevo. A. R. T. — Isso tem a ver com o facto de escrever num jornal diário. A pessoa não é tão importante porque o jornal está sempre a mudar, sai todos os dias, sai com gralhas, etc. Eu aprendi que num jornal diário não vale a pena assinalar a gralha saída no número anterior em tal parágrafo como se supusesse que alguém vai verificar semelhante coisa no dito número de véspera. O jornal do dia anterior já foi há imenso tempo. Compreendo esse cuidado no caso duma revista... O diário é lido na altura e depois já ninguém leu. É efémero. S. — Neste caso, estamos numa revista... A. R. T. — Certo. A revista tem um papel mais duro, não dá para embrulhar sapatos. Mas ficou metida num sítio qualquer onde também passou à história. Eu tenho alguns leitores. Se calhar são meus amigos. Se calhar gostam mais do que eu escrevo do que dos filmes. A crítica é uma conversa depois da qual, no limite se pode passar sem ver os filmes... Isto é um mundo de mensagens que também funciona assim. Não tem mal, é normal. Agora, claro, o cinema está a morrer, está tudo a morrer... a cultura também parece que está a morrer... A. B. — Mas as críticas estão florescentes... A. R. T. — As críticas não sei, acho que talvez não... Os partidos estão a morrer, as ideologias estão a morrer... S. — Os partidos?! Os partidos estão a governar! R. G. — Graças a Deus, isso é o primeiro passo para morrerem. E olha que daí já nem sei... A. R. T. — E por que é que eu acho que a crítica pode ter um papel importante apesar de tudo? Nos tempos que correm, cada vez mais, há uma falta de discurso sobre as coisas. Já ninguém sabe o que é bom e o que é mau, já ninguém tem certezas nenhumas, o que se deve fazer e o que não se deve... A. B. — Mas em contrapartida há um espaço público cada vez mais alargado... A. R. T. — ... o que é o socialismo, o que é o comunismo, o que é a revolução... S. — No meio dessa incerteza o crítico tem de ser comprometido. A. R. T. — Pois é... Publicam-se muitas coisas, há cada vez mais jornais culturais, aumenta a quantidade de informação. Só que ninguém sabe o que diz. A palavra — uma crítica inteligente — está destinada a ocupar esse deserto, não apenas no domínio do cinema mas também nos outros campos. É importante que se verbalize, que não se entre numa sociedade primitiva onde realmente já ninguém sabe dizer nada sobre coisa nenhuma e em que as pessoas andam às cacetadas umas às outras sem entenderem muito bem a que propósito. Esta situação é o contrário daquela que vivíamos há uns vinte anos em que todos tínhamos imensas certezas. Se hoje voltasse a escrever na Grande Ilusão sobre A VIA LÁCTEA (ainda fiz uma pequena nota que depois não saiu no dossier sobre o Buñuel porque o número já estava composto (4), chamaria a atenção para o facto de que esse filme realizado em 1968 (em pleno Maio de 68), numa altura em que apesar de contestadas as ideologias tinham um peso muito grande (as ideologias contestatárias eram fortes e as pessoas acreditavam; todos nós éramos pessoas de fé...) coloca muito bem, e com redobrada actualidade hoje em dia, esta questão da relatividade da fé e dos vários discursos, a ponto de sugerir que não faz grande sentido lutar por um discurso; só que, no fim de contas, se não faz grande sentido lutar por um discurso, o que é que faz? Temos de lutar por um discurso e hoje em dia é cada vez mais difícil fazê-lo... O papel das palavras e da interpretação que elas fazem das coisas, o refazer de um mundo pós-Perestroika e pós-Gorbatchev é muito importante.


S. — Mas em pleno cavaquismo. A. R. T. — O cavaquismo é um reflexo disto mesmo. Quem diz cavaquismo, diz miterrandismo e por aí fora. Há um campo novo. A crítica cinematográfica talvez seja mais importante hoje em dia. A. B. — Quando já não existem filmes? A. R. T. — É mais importante hoje do que era em 1960 quando havia imensas certezas sobre o cinema. E havia a Nouvelle Vague e a indústria cinematográfica ainda existia. Estava-se na crista da vaga. S. — Não só concordo como acho que um dos objectivos da mesa-redonda era definir não pela teoria mas pela prática da troca de impressões o que pode ser uma crítica plural. O que eu queria dizer é que, quando escrevo, não conheço os meus leitores mas conheço os meus companheiros. E isso é determinante para a organização dos meus textos. A. R. T. — Mas isso conduz ao hermetismo de que as pessoas tanto se queixam em relação ao cinema português. Aí desatamos a fazer críticas inteligentíssimas uns para os outros... Acho que devemos ser um bocado terra a terra. Assusta-me um pouco a ideia de sermos um cenáculo de esclarecidos. É bom lutar por um discurso mas também é importante perceber a relatividade das coisas. R. G. — Em todo o caso, quando escreves, a tua mensagem é dirigida a alguém. Estás à espera que um maduro qualquer, num sítio qualquer, te leia. S. — Eu proponho que o nosso próximo número seja vendido dentro de garrafas. A. R. T. — Quando um tipo está numa ilha deserta e manda uma mensagem dentro duma garrafa, está à espera que alguém a apanhe. Mas a probabilidade de não ser encontrada é grande e não é dramática. O sujeito faz várias mensagens que coloca dentro de várias garrafas e fica à espera. Falaste há pouco da questão da repetitividade. Eu que escrevo há 16 anos no Jornal de Notícias, certamente já me repeti muitas vezes. Só que acho que esta redundância é semelhante à imagem do tipo que atira as garrafas: escreve a mesma coisa em não sei quantas garrafas, noutras escreve coisas diferentes. Certamente escrevo críticas interessantes e algumas serão uma valente merda... sem dar por ela. O crítico nem sempre acerta no que diz. A crítica imperfeita é fundamental. Ora a crítica autoritária pressupõe necessariamente a perfeição. Às vezes vejo os filmes mais apressadamente, às vezes não os entendo — nesses casos a minha crítica não tem a qualidade que eu gostaria que tivesse... paciência! Se de quando em quando a crítica tiver qualidade, já não é mau. Acontece, ao criticar um filme, aprofundar uma ideia que me surgira anteriormente e que não conseguira expor em condições devido às exigências formais que esta actividade tem. Sucede mesmo eu começar a escrever e não saber muito bem para onde vou; depois de escrever, fico fascinado com o meu trabalho e penso assim: «Caramba! É mesmo isto que eu acho!» Ou seja, esclareço-me a mim próprio através do acto de escrever. Imaginem agora o que é um tipo escrever sem ter pensado! Uma pessoa é levada pela organização das palavras e, de repente, dá-se conta que o que escreveu é inteligente. Trata-se dum trabalho de expressão. A verdade do texto só funciona no confronto com as outras pessoas, mas nasce não se sabe bem como. Por vezes não nasce e o crítico fica apenas ensarilhado nas palavras. Quem escreve num jornal diário, deve fazê-lo com toda a humildade... e aceitar andar à nora. R. G. — Voltando à questão da garrafa. Como tu muito bem sublinhaste, quando se deita a garrafa ao mar, a garrafa é dirigida a alguém (que a pessoa não conhece, ou conhece, ou quer vir a conhecer), mas não tem a certeza de que ela chegue ao destinatário... e não é grave. Não é dramático, realmente. Ou melhor, ninguém deve sofrer por causa dessa incerteza. Mas é dramático porque a crítica nasce dessa incerteza de se estar a escrever para alguém-alguém ou para alguémninguém. A crítica é dramática na sua dimensão de relação com um destinatário. A. R. T. — A situação da ilha deserta é que é dramática. R. G. — Mas nós não estamos numa ilha deserta. A. R. T. — Estamos sim. Estamos todos. R. G. — Não acho mesmo nada. A. R. T. — Estamos e ocupamos o tempo a mandar mensagens. É bom é ter mensagens e garrafas para ir mandando.


R. G. — O drama é significativamente: eu — alguém — ninguém. Desculpem este pensamento parecer um tanto embrulhado, mas a escrita encena sempre essas possibilidades contraditórias de ser lida por alguém ou por ninguém. Ou seja, também é trabalho feito para ninguém. S. — Quando um tipo está numa ilha deserta está só à procura de salvação e só pode dizer, para indicar a sua posição, que há água por todo o lado. O que não deixa de ser algo vago. De modo que a salvação nunca virá da garrafa. R. G. — A metáfora da garrafa já deu o que tinha a dar. Deixem falar o Rodrigo... A. R. T. — Pois é... mas o humor também é importante. Se a gente não tiver graça quando fala das coisas, é uma desgraça... R. A. — Voltando ao que dizias a propósito da sensação de esmagamento perante as obras-primas. É mais fácil, realmente, escrever sobre um filme normal do que sobre uma obra-prima — que nos torna um bocado impotentes. A. R. T. — O que vale é que a gente agarra nas obras-primas e escreve sobre elas como se fossem filmes normais. Estamos safos. Isto, quando a crítica é inteligente. S. — Mas também conheço uma crítica que agarra nos filmes medianos e escreve sobre eles como se fossem obras-primas. R. A. — Essa sensação que se tem ao ver um grande filme, de algum modo impede o espectadorcrítico de produzir um discurso. Quem sou eu para falar sobre isto que é tão bom? O crítico está numa posição ingrata, algures entre o realizador e o espectador, e corre o risco de ser mal visto, quer por um, quer por outro. Podem achá-lo arrogante e despropositado nos palpites que dá. S. — Eu penso exactamente o contrário. Recorrendo à minha experiência de professor para exemplificar: durante muitos anos utilizei textos de uma grande banalidade nas minhas aulas de língua (canções, artigos de jornais, etc.); depois, percebi que a única coisa capaz de interessar ambas as partes era falar do Rimbaud, do Péret ou do Breton, autores difíceis pelos quais me podia apaixonar — e aí tornou-se realmente necessário recorrer a instrumentos de análise para detectar nos textos aquilo que faz deles obras-primas, em que é que eles rompiam com os clichés, por exemplo. O trabalho de crítico é também um trabalho de compromisso: ele tem instrumentos de análise ao seu dispor e deve envolver-se. Ele não é mais sábio do que os outros mas toma partido. Deve defender os filmes que julga importantes contra a mediania reinante. Estamos rodeados de produtos de pura cretinização, tanto no cinema como na literatura. Há que fazer acto de resistência. O papel do crítico é não deixar que a percepção dum filme seja o resultado dum mero condicionamento publicitário. Não é por se investirem milhões no ROBIN HOOD — e a publicidade é eficaz — que o ROBIN HOOD é a nata do que se faz no cinema. A crítica tem de distinguir obras. A. R. T. — O que não significa defender uns para atacar outros. S. — Passa mais por defender. A. R. T. — Passa por defender. Mas também é importante agarrar em obras medianas para as subverter em algum sentido que as aproxime relativamente de algo mais interessante. Senão estamos condenados ou a escrever muito pouco, ou a fazer uma crítica sado-masoquista. Também não gosto tanto de cinema que qualquer coisa me serve. Também é sado-masoquista engolir tudo o que nos servem. No entanto, certos filmes podem ser percebidos pelo lado que mais nos toca. Ao tratá-los desse ponto de vista, fazemos resistência no campo do adversário — subvertemos uma obra que estava demasiado envolvida pela ganga dos produtos correntes. Esse trabalho é um trabalho de inteligência, de originalidade, de investigação, de recomposição a partir dos filmes. Conseguimos detectar coisas que o próprio tempo pode valorizar. S. — Entendo que a periodicidade seja uma condicionante. A nossa periodicidade quadrimestral a fugir para o semestral parece dar-nos um prazo ideal de colheita e reflexão. Dá tempo para uma selecção e para balanço. R. G. — Voltando à sensação do esmagamento — eu sou de ideias fixas — e para tentar exprimi-la com mais rigor: de facto ela vem sempre da intrusão duma intimidade alheia e muito forte. Não são só as obras-primas que esmagam. Um filme mediano pode comover-te e tocar-te imenso por uma faceta até eventualmente secundária.


A. R. T. — Um filme pode ser interessante por ter estado próximo de o ser e pode ser falhado porque o é. R. G. — O meu discurso não pretendia ser base para selecção de obras-primas. Muitos filmes do museu do cinema — considerados obras-primas — deixam-me perfeitamente indiferente. O NASCIMENTO DUMA NAÇÃO não me diz nada embora perceba o génio daquilo. A minha relação com um filme assim implica um trabalho doutra ordem, talvez mais historico-teórico. Provar pela milésima vez que o NASCIMENTO DUMA NAÇÃO é uma obra-prima é uma parada teórica, talvez objectiva, que se joga fora de mim. H. L. — Para além do bom ou do mau do filme, a sua escrita condiciona a nossa escrita. Se tivesses de escrever sobre o NASCIMENTO DUMA NAÇÃO, fá-lo-ias duma forma diferente daquela com que falarias dum filme que te tocasse. Não se trata só de reproduzires a impressão favorável que tens sobre o filme. A. R. T. — Aí também podes cair numa crítica sentimentalona, num «strip-tease» emocional e exibicionista. H. L. — Nessa altura, ou não se escreve, ou... A. R. T. — Ou disfarça-se. Pois. H. L. — Ou então escrever-se-á duma forma um pouco mais convencional. R. G. — «Disfarça-se» — estás a dizer a palavra exacta. A única coisa que pode salvar o trabalho da toupeira é o disfarce da emoção. Uma boa crítica nunca é sentimentalona porque ela consiste justamente em passar da emoção para um disfarce da emoção. Os Portugueses sabem disso à brava. Falei sobre o NASCIMENTO DUMA NAÇÃO porque é uma obra reconhecida que não me diz nada — o pouco que me diz, arrepia-me, no mau sentido. Se um dia fosse obrigada a escrever sobre aquilo não ia dizer que é uma merda mas pensava logo no GREED que me diz tanto. A distância que nos separa dum objecto pode ser quase total. H. L. — O que tu dizes sente-se na forma como tu escreves. R. G. — Eu tenho a ilusão de perceber melhor os bisontes das pinturas rupestres do que o NASCIMENTO DUMA NAÇÃO. Pior acho que vibro mais com as reproduções de Lascaux, do que com o NASCIMENTO DUMA NAÇÃO em projecção. Isto é uma ilusão que nada tem de objectivo. A. R. T. — Um bom crítico — se é que há críticos bons — que escreva sobre o NASCIMENTO DUMA NAÇÃO — se me obrigassem a mim... — deve fazer um exercício para encontrar qualquer coisa de inteligente ou de original que tenha algo a ver com aquilo que o preocupa. Com ou sem sucesso. Se eu trabalhasse numa Cinemateca e tivesse de fazer isso, tentaria re-situar o filme e evitaria chover no molhado. É certo que há filmes sobre os quais tanta gente escreveu, que o crítico corre o risco de assumir o ponto de vista consagrado sobre determinada obra. Alguns dos textos que temos publicado sobre os autores consagrados — o Buñuel, o Orson Welles e outros — apesar de tudo têm tido a ousadia de acrescentar algo ao que já foi dito por gente mais sábia e mais informada. Acrescentar talvez um milésimo, mas acrescentar. A crítica que não acrescenta nada é gratuita e não vale a pena. R. G. — A isso eu chamo abrir uma brecha... mesmo nos objectos mais monolíticos. S. — Uma mais-valiazinha cultural. A. R. T. — Eu tinha encontrado uma frase tão feliz e tu estragaste tudo... Agora, em relação àquilo que o Rodrigo apontava em relação à posição ingrata do crítico que fica mal com o autor e com o espectador — precisamente para não ser acusado de arrogância, o crítico deve colocar-se numa posição de grande humildade. De facto, o realizador, para fazer filmes, tem de convencer muita gente como o Scorsese, tem às vezes de tirar cursos de cinema, tem de arranjar autorizações, subsídios, financiadores — em suma, provar coisas. O espectador paga o bilhete portanto pode reclamar, achar-se satisfeito ou defraudado, está perfeitamente identificado no seu papel que lhe confere os seus direitos de consumidor. O crítico não tem autoridade nenhuma; apenas encontrou alguém que lhe publique os textos, uma revista qualquer miserável como a nossa. Passa a ser crítico pelo simples facto de lhe imprimirem as opiniões. A única coisa que o defende é a qualidade do que está escrito e que por vezes se apaga com dificuldade. Há sempre a possibilidade de alguém encontrar uma coisa que se escreveu há oito anos e que nem sempre se continua a assumir. Embora a crítica seja algo de efémero. Mudar de opinião não é


desgraça nenhuma, mas o que defende o crítico são as críticas. A qualidade do produto e o bom proveito que dele tiram o realizador e os espectadores. R. A. — Se o crítico sustentar bem a sua opinião, consegue safar-se. Senão... S. — Mas o trabalho do crítico é encontrar instrumentos que sustentem a sua opinião. A. R. T. — Mais do que os filmes, a crítica vale só por ela própria. Não há crítica de autor. Ou melhor, não devia haver. Não é por ser uma crítica dos Cahiers ou do Saguenail ou do João Lopes ou minha que é interessante. Os anglo-saxões, em geral, são mais directos na forma como exprimem as suas opiniões. Na nossa revista, somos por vezes um pouco rebuscados e herméticos — contudo eu julgo que é positivo testar as leituras excessivamente rápidas e acho que o esforço por entender pode ser uma boa coisa. Mas, por outro lado, temos a coragem de chamar os bois pelos nomes. R. A. — Ocorrem-me certos aspectos que ficaram por definir. Por exemplo, a questão do realizador-funcionário e do realizador-autor... S. — O realizador, praticamente, nunca é funcionário. Esse tempo já lá vai. Continua a existir a herança pesada da «política dos autores». No entanto, essa óptica é fácil de defender num país em que todos os realizadores defendem o estatuto de autor e podem defendê-lo. As condições de produção são como são e não há censura. É uma produção estatal bastante «sui generis». Porém, há uma tendência, não digo que seja errada, para tentar vislumbrar um autor através de uma ou mais fitas que a maior parte das vezes não passam de fitas. Um autor quer dizer um resistente. A. R. T. — Não estou de acordo. Os filmes não se fazem a si próprios. Um filme é sempre o produto de alguém que eu tento imaginar. Há um falante por detrás do filme. Nem defendo uma crítica psicologista — que faça uma espécie de psicanálise do autor — nem defendo uma crítica erudita ou cultural — que assente no conhecimento das outras obras do autor; mas há sempre um autor por detrás do filme. Pode não ser o realizador. O autor pode ser o actor, o técnico de som, o director de fotografia, etc. Estamos sempre perante um autor a descodificar. S. — Então concordamos. Contudo estamos um tanto presos a uma herança dos Cahiers que faz com que o autor seja o realizador. Acontece-me defender filmes e não estar bem certo de que o seu autor seja mesmo o realizador. A. R. T. — Por mais voltas que a gente dê à mesa-redonda, não se vai resolver o problema. Nunca se vai conseguir explicar a poética da crítica cinematográfica, o que se faz quando se faz crítica de cinema. Nem elaborar uma teoria da crítica de cinema da qual os discursos decorram. A crítica não se explica, pratica-se. A melhor teoria é uma antologia de críticas de cinema. Podemos estar cheios de boas intenções mas não sei se os nossos textos respondem por nós. Defendo que a crítica se faz passo a passo e que o crítico se define pelos textos. S. — Contudo, há atitudes que se clarificam pela discussão. A. R. T. — Apenas na medida em que nos conseguimos espelhar numa actividade que tem outras dimensões que não somos capazes de explicar. Quando fico surpreendido com os textos que escrevo, há algo que nem é racional nem criterioso. Porém não advogo o terrorismo cultural do indivíduo que pura e simplesmente dispara a primeira ideia que lhe vem à cabeça. A minha posição fica entre a capacidade de racionalizar e a capacidade de remar contra a corrente (esmagado ou estimulado pelos filmes) enquanto comportamento irracional. S. — A minha prática passa pelo confronto com as traduções que a Regina faz dos meus textos em francês e mesmo pela discussão que daí decorre. Às vezes não consigo voltar a ler aquilo que escrevi. A. R. T. — Pois. Já não te entendes. S. — Não. Os textos já me são alheios. R. G. — Isso é próprio da escrita. O próprio da escrita é essa sensação de estranheza perante a sua natureza privada e pública, íntima e devassada. A ilusão de estranheza na escrita é mais absoluta do que no cinema que produz ilusão de vida. A escrita é ilusão de imobilidade, o cinema ilusão de movimento. S. — Mas os códigos da escrita aprendem-se na escola, inclusive as figuras retóricas, que a gramática do cinema não. R. G. — Aprendidos ou desaprendidos.


A. R. T. — Poder-se-ia fazer uma crítica audiovisual em que em vez de escrevermos os filmes, filmássemos os filmes? Por exemplo, jogando com cenas dos filmes. Os críticos que vão à televisão geralmente falam sobre os filmes. Mas podiam não falar e, em lugar disso, escolhiam cenas, conjugavam imagens, não excluindo a palavra mas apostando mais na expressão audiovisual. O crítico de literatura usa a mesma linguagem. O crítico de cinema não usa. Se usasse, o que é que acontecia? Tenho para mim que os melhores filmes se constroem em função dum certo núcleo que condensa aquilo que, por excesso ou redundância aparece na totalidade da obra. É possível pegar nos filmes de que eu gosto e que acho mais perfeitos e reduzi-los à sua cena capital. Identificar cenas capitais parece-me uma obra de sensibilidade, de racionalização, de conhecimento próprio da crítica. Por escrito, esta identificação é como é mas poderia ser diferente. No caso da FRANCISCA do Manoel de Oliveira, parece-me muito evidente que a cena do coração é o ponto onde o filme se condensa — tudo se organiza antes e depois em função daquilo — duma forma coerente, bela, bem articulada, etc. S. — Pessoalmente, sentir-me-ia muito mais à vontade se pudesse fazer uma crítica audiovisual, montando, remontando, acrescentando imagens e por aí fora. O Godard nesse aspecto desbravou muito terreno e tem um trabalho pioneiro. É uma questão de meios, de custos. A. R. T. — Eu não falava de montagens inéditas mas sim do exercício de encontrar o filme mínimo, a cena capital, o cerne que condensa toda a obra e em relação ao qual o resto são variações. Aí passávamos para outro domínio de decifração das obras que o autor não pode levar a cabo porque se pudesse teria feito filme mais curtos. Isto só é concebível para obras com um nível de perfeição que nem todos os filmes têm porque nunca chegam a conseguir essa densidade. S. — O facto de trabalharmos apenas com a memória define os limites mas também a atitude da crítica que podemos fazer. A crítica que faríamos se tivéssemos extractos à nossa disposição seria outra. A. R. T. — Eu referia-me mais a decifrar os pontos de esclarecimento e de estruturação da obra. S. — Em todo o caso, seria totalmente diferente. Obrigar-nos-ia a visionar várias vezes, copiar tal excerto para o mostrar, etc. A. R. T. — Eu não sou tanto a favor da objectividade. Admito que posso defender em relação a um filme de Oliveira que a cena capital é tal e tu achares que no mesmo filme a cena capital é outra e, se calhar, com bons argumentos. As leituras podem ser diversas mas são mais desligadas do aspecto «escrito» da crítica. S. — Uma vez dei uma aula com duas cenas de A SEDE DO MAL: o longo plano-sequência em que o polícia vai disfarçar as provas (para mim é a cena capital) oposto à sequência em montagem paralela da perseguição final. Aí a comparação da concepção das duas sequências pareceu-me rica e significativa duma evolução do filme. Já não se trata de sintetizar mas antes de mostrar uma dinâmica. Concordo que os filmes de que mais gosto têm, apesar de tudo, coisas a mais. Quando faço um filme, acontece-me achar, depois da montagem, que se tivesse tomates cortava uma hora. A esse nível também há o imperativo de poder mostrar os filmes. A poesia não tem limites definidos: dos dois versos aos cantos do poema épico. O cinema tem limites (abordei isso no meu artigo sobre a curta-metragem (5). Encontrar cenas capitais é um jogo em que o crítico se recusa a ter em conta esses limites. A. R. T. — As obras têm redundâncias que são fundamentais para a sua percepção. Se o realizador reduzisse a obra à cena capital, o espectador não percebia nada. O resto existe para se perceber aquilo. S. — O trabalho da memória é essencial. De um filme, a memória exclui muita coisa. A. R. T. — E aí voltamos à questão dos filmes que não existem e que nós inventamos. E funciona. S. — Acho que isso é próprio do nosso instrumento. A escrita é um instrumento diferente da câmara e obriga-nos a trabalhar com instrumentos mentais diversos. Temos de assumir a pertinência dessa crítica, já que é esta que praticamos. (1)

— A Grande Ilusão, nº 5, p. 4. — A Grande Ilusão, nº 12, p. 88. (3) — Scorsese por Scorsese, organização de David Thompson e lan Christie, Ed. 70. (4) — A Grande Ilusão, nº 11. (5) — A Grande Ilusão, nº 4, p. 33-6. (2)


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