Mesa redonda

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MESA REDONDA ANTÓNIO ROMA TORRES — Como o Saguenail é responsável por este jogo, acho bem que seja ele a abrir o debate. SAGUENAIL — Logo, à partida, tenho algumas perguntas a colocar ao António Brás, a propósito do texto que ele fez circular. Há uma coisa que me parece perigosa naquilo que ele escreveu: subentender que aquilo que se critica é uma ausência. Ora, para mim, esse é um dos maiores defeitos da crítica, a saber: apontar para aquilo que não está no filme. Um filme não é o que a gente espera. Aí reside precisamente a qualidade de um filme. O filme é o que o realizador lá pôs e que não corresponde à nossa expectativa. Daí a surpresa, boa ou má... Mas a crítica deve interessar-se por aquilo que lá está e não por aquilo que lá não está. ANTÓNIO BRÁS — Aquilo que lá está é apenas uma hipótese. S. — Mas está lá. É essa hipótese que podemos criticar. O que não podemos criticar é a hipótese que lá não está. A. R. T. — Compreendo o teu ponto de vista e estou de acordo. Mas também gostei muito do texto dele e parecem-me posições compatíveis. Não acho que uma invalide a outra. Realmente os filmes não existem. Quer dizer, cada filme são vários «filmes». O realizador ou o autor vê o filme de maneira diferente quando o roda, quando o projecta, quando o monta, quando o exibe e, se calhar, quando ouve falar dele ou vai vê-lo dez anos depois. Aqui já há vários filmes. Existem também os filmes que não existem. Aliás eu usei esse título — «O cinema não existe» (1) — para falar do Orson Welles que teve mais filmes que não fez do que filmes que fez, contudo sabemos que existiram, às vezes mais do que na cabeça dele... A. B. — E existem para nós também! A. R. T. — Apesar do cinema parecer uma actividade de fixação, trata-se duma fixação relativa porque fixa um determinado momento criador mas a criatividade do filme precede esse momento e continua posteriormente. A crítica ganha razão de ser na medida em que o filme «não existe» neste sentido. Pode existir, vai existindo. Existe de maneiras diferentes. No texto que escrevi sobre o livro de João Bénard da Costa (2) frisei que me parecia importante a questão da relação com o tempo; ou seja, o mesmo filme visto em 1940 ou em 1960 ou em 1980 são filmes diferentes mesmo para os autores. A crítica lida ou escrita numa altura pode igualmente ter um significado diverso noutra altura. Mas, por outro lado, estou de acordo com o que diz o Saguenail porque, mesmo não existindo, não é uma ausência completa. Cada filme existe enquanto película impressionada, não possibilita uma variedade infinita de filmes mas permite «algumas variedades de filmes». Efectivamente também acho que um dos grandes defeitos da crítica é ser extremamente subjectiva. Isto é, um indivíduo vê um filme, sente umas tantas coisas e depois escreve outras tantas que lhe passam pela cabeça e que podem não ter nada a ver com o que está no filme para qualquer outro cidadão — são meros estados de alma de alguém que solta um discurso sobre o filme mas podia falar sobre outra coisa qualquer que o tivesse impressionado. Essa postura é totalmente subjectiva — o indivíduo diz coisas dele, sendo o filme um pretexto e às vezes nem isso — e negativa. Pelo menos não é crítica, é outra coisa qualquer. Considero que um texto é uma crítica de cinema quando há uma tentativa de ligar os estados subjectivos (porque a crítica é, em grande parte, subjectiva) ao concreto do filme. O meu filme tem de estar subordinado ao filme que fui ver. Se sinto que o filme tem tal qualidade de ritmo ou tal outra de representação, não posso pura e simplesmente inventar a minha interpretação, mas devo cingir-me aos dados que lá estão e que sustentam a minha interpretação. Agora eu entendo que um filme é um objecto muito mais complexo e admito que lá estejam dados que podem sustentar outras interpretações igualmente interessantes ou possíveis. No entanto há interpretações que não são possíveis porque se estão nas tintas para o filme e constituem apenas um discurso da pessoa que enuncia. A isso não chamarei críticas conquanto possa haver textos interessantes da autoria de personalidades literárias a despeito de não cingirem muito ao filme de que falam. Nesse caso é o autor que está em jogo e eu posso achar graça ao que o Vergílio Ferreira ou o José Saramago (ou qualquer artista plástico ou mesmo simplesmente uma pessoa interessante, cientista ou sei lá...) viram no filme tal. Já sei que não se vai deter no filme e que vou


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