Mitfahrenzentral os descendentes

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MITFAHRENZENTRAL os descendentes 1 HELENA (dando pequenos pontapés a uma lata) – Não mais os dias em que nem se acorda. Não mais as noites em que não se dorme. Chiiiiii! (Um tempo.) Oslo, a solo, que seca!!! Hum… (Baixase, pega na lata, fala com a lata.) Mas também, que ideia foi esta de viajar até ao lugar onde as pontes gritam e, no entanto, há meninas de capeline e beijos colados às janelas…? Não sabias tu já que a vida não se vende enlatada, que os mortos talvez não tenham vivido e que ninguém anda à boleia da pintura? Coloca a lata no chão e esmaga-a cuidadosamente com a bota. E… (arvorando ares de impaciência): Já vão sendo horas, não vão, ó senhor João? João... João… qualquer coisa. Tira do bolso um pau de giz, desenha no chão o mapa da macaca e, servindo-se da lata esmagada como de paleta, joga, cantando. Pintei a minha casa de vermelho E pus o bacalhau a demolhar Veio o diabo do velho Deitou fogo ao rés-do-chão Saltei pró primeiro andar… Fica parada numa casa, com uma perna alçada como uma ave pernalta. Isto que horas são? Saca do bolso um relógio tipo cebola. MITFAHREN ZENTRALE… O gajo será de confiança? (Um tempo.) É português, engoliu os ponteiros à nascença, 'tá visto… (Canta.) O céu está perto da terra Enterram-se os pés no mar Veio o diabo do velho Pôs-me o corpo em pé de guerra Nunca mais pude parar. (O silêncio da suposta madrugada é riscado pelo ruído de um carro derrapando, ao longe. HELENA pega na lata e abana-a como se fora um leque e esse movimento de pequena amplitude a ajudasse a pensar.) E havia aquela pintura em que a floresta faz pregas como um pano de palco. No primeiro plano, esquerda baixa, um homem, enrolado sobre si mesmo si mesmo, rumina um delito, tapando a cara com o braço. Dir-se-ia que daria o seu reino para ficar fora de cena. Do lado direito, mas quase ao centro, uma mulher de longa camisa branca e desabotoada, leva as mãos à farta cabeleira cor de fogo. Não se sabe se para a compor ou para a descompor. Escorrem-lhe madeixas finas, pequenos rios na alvura dos ombros. Olha-nos – mas NOS quem? – fixamente. Quase dementemente. Adivinha-se-lhe uma peça de roupa interior vermelha, pormenor entre todos o mais estranho. À direita baixa, uma forma de caveira, três quartos de perfil, inexpressiva – talvez se trate apenas de uma pedra ou uma peça de roupa que foi ali abandonada, e a forma do crânio seja tão-só uma ilusão. Mas propositada. Chama-se CINZAS este vanitas. E a mulher terá de regressar a casa pelos seus próprios meios. Talvez a pé, atravessando um nocturno de floresta. E pumba, toma lá que já almoçaste. (HELENA faz voar a paleta até à casa céu e fica por uns instantes absorta no que disse.) Ai… O que quer dizer aquilo que quer dizer? JOÃO e JOÃO PÊ entram em cena. Arvoram expressões de sono e de amuo. Estão vestidos como se acabassem de sair de uma festa e não com indumentária «prática» de viagem. HELENA, visivelmente surpreendida, vê-os chegar sem reagir – apenas aproxima de si a mochila que está pousada no chão a seu lado.


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