MITFAHRENZENTRAL os descendentes 1 HELENA (dando pequenos pontapés a uma lata) – Não mais os dias em que nem se acorda. Não mais as noites em que não se dorme. Chiiiiii! (Um tempo.) Oslo, a solo, que seca!!! Hum… (Baixase, pega na lata, fala com a lata.) Mas também, que ideia foi esta de viajar até ao lugar onde as pontes gritam e, no entanto, há meninas de capeline e beijos colados às janelas…? Não sabias tu já que a vida não se vende enlatada, que os mortos talvez não tenham vivido e que ninguém anda à boleia da pintura? Coloca a lata no chão e esmaga-a cuidadosamente com a bota. E… (arvorando ares de impaciência): Já vão sendo horas, não vão, ó senhor João? João... João… qualquer coisa. Tira do bolso um pau de giz, desenha no chão o mapa da macaca e, servindo-se da lata esmagada como de paleta, joga, cantando. Pintei a minha casa de vermelho E pus o bacalhau a demolhar Veio o diabo do velho Deitou fogo ao rés-do-chão Saltei pró primeiro andar… Fica parada numa casa, com uma perna alçada como uma ave pernalta. Isto que horas são? Saca do bolso um relógio tipo cebola. MITFAHREN ZENTRALE… O gajo será de confiança? (Um tempo.) É português, engoliu os ponteiros à nascença, 'tá visto… (Canta.) O céu está perto da terra Enterram-se os pés no mar Veio o diabo do velho Pôs-me o corpo em pé de guerra Nunca mais pude parar. (O silêncio da suposta madrugada é riscado pelo ruído de um carro derrapando, ao longe. HELENA pega na lata e abana-a como se fora um leque e esse movimento de pequena amplitude a ajudasse a pensar.) E havia aquela pintura em que a floresta faz pregas como um pano de palco. No primeiro plano, esquerda baixa, um homem, enrolado sobre si mesmo si mesmo, rumina um delito, tapando a cara com o braço. Dir-se-ia que daria o seu reino para ficar fora de cena. Do lado direito, mas quase ao centro, uma mulher de longa camisa branca e desabotoada, leva as mãos à farta cabeleira cor de fogo. Não se sabe se para a compor ou para a descompor. Escorrem-lhe madeixas finas, pequenos rios na alvura dos ombros. Olha-nos – mas NOS quem? – fixamente. Quase dementemente. Adivinha-se-lhe uma peça de roupa interior vermelha, pormenor entre todos o mais estranho. À direita baixa, uma forma de caveira, três quartos de perfil, inexpressiva – talvez se trate apenas de uma pedra ou uma peça de roupa que foi ali abandonada, e a forma do crânio seja tão-só uma ilusão. Mas propositada. Chama-se CINZAS este vanitas. E a mulher terá de regressar a casa pelos seus próprios meios. Talvez a pé, atravessando um nocturno de floresta. E pumba, toma lá que já almoçaste. (HELENA faz voar a paleta até à casa céu e fica por uns instantes absorta no que disse.) Ai… O que quer dizer aquilo que quer dizer? JOÃO e JOÃO PÊ entram em cena. Arvoram expressões de sono e de amuo. Estão vestidos como se acabassem de sair de uma festa e não com indumentária «prática» de viagem. HELENA, visivelmente surpreendida, vê-os chegar sem reagir – apenas aproxima de si a mochila que está pousada no chão a seu lado.
JOÃO para HELENA, quando já a dois passos dela, estendendo a mão – Olá. Eu sou o João. (Apontando para JOÃO PÊ.) E este é o João. HELENA – Eu só estava à espera de um. JOÃO – Também eu. Mas saiu-lhe o dois em um na rifa. HELENA – Eu enjoo nos lugares de trás. JOÃO PÊ murmura algo desdenhoso do género «gajas» entre os dentes. JOÃO – Quem lhe disse que o meu amigo lhe vai tirar o lugar do morto? HELENA agastada – Isto é uma armadilha. Combinámos que… JOÃO – Vamos lá ver se consigo resumir. Às 21h30 de ontem, hora do nosso telefonema, o João tinha deixado de ser meu namorado. Foi uma noite de arromba. Às 6h30 do dia de hoje, o João passou a ser, de novo, o meu namorado. À experiência, claro está. Como tudo neste mundo. Eu sou um rapaz sem preconceitos. Tudo quanto vem à rede pode ser peixe ou sapato. Portanto vamos recuar para o momento anterior. A gente chega. O João tenta fazer um sorriso bonito. Eu estendolhe a mão. Você deixa de olhar para mim com esse ar de patroa e… Enquanto explica, obriga o companheiro a recuar e depois a avançar até HELENA. Bom dia. Eu sou o João. Este é o João. A menina chama-se… HELENA – Helena. Como é que vos distingo? JOÃO – Pela cara. Ele é o João Pê. Uma ternura de rapaz quando não está com os azeites. JOÃO PÊ – GGGGGRRRRRRRRRRRRRRR!!! JOÃO – Tenho o carro à nossa espera naquela ruela (aponta) frente ao teatro. HELENA – Como é que arranjou lugar? Isto é tudo pedonal. E policiado. JOÃO – Escola lusitana: deixei os quatro piscas ligados. Portanto venha daí. Senão ficamos sem bateria. 2 JOÃO – Não se pode dizer que a menina Helena tenha engolido um disco. HELENA (tirando os fones dos ouvidos) – Como? JOÃO – Você… Posso tratar por tu? (Sem esperar resposta.) Tu não és muito conversadora. HELENA – Falo com os meus botões. E não me desaperto. Helena volta a colocar os fones nos ouvidos e encolhe-se muito como que para ocupar o menos espaço possível. JOÃO – Não sei se isso quer dizer que o mundo é pequeno de mais ou grande de mais para ti. HELENA (tirando os fones dos ouvidos) – O quê? JOÃO – O mundo? HELENA – O mundo é cão. (Um tempo.) Quer dizer: quem dera. Quem dera que fosse cão e nos viesse comer às mãos. JOÃO – E ferrar as canelas? Helena volta a colocar os fones nos ouvidos, força-se a bocejar para simular cansaço e fecha os olhos. Silêncio rodoviário. JOÃO PÊ (saindo de uma simulada letargia) – És um ganda maricas mas não podes ver rabo de saia, meu… JOÃO – Ela usa calças. És uma bicha doida mas cegueta como uma toupeira. JOÃO PÊ – Antes bicha do que bi. JOÃO – E para o cu não vai nada?
JOÃO PÊ – É só pedires, ó rico. JOÃO (fazendo soar o leitor de cêdês do automóvel altíssimo): Viva a Suécia! You are the Dancing Queen, young and sweet, only seventeen Dancing Queen, feel the beat from the tambourine oh yeee You can dance, you can jive, having the time of your life Ooo... see that girl, watch that scene, diggin' the Dancing Queen, etc. por aí fora, o hit dos ABBA aos berros. JOÃO PÊ – Foda-se, meu… Não te chegava ser paneleiro, ainda precisavas de ser piroso. JOÃO (virando-se para trás e imitando Roberto de Niro): Are you talking to me? (Um tempo curto.) Are you talking to me? Ambos se escangalham a rir. JOÃO pára a viatura derrapando violentamente. HELENA tira os fones e olha para ambos estarrecida. JOÃO (para HELENA) – Que foi, Lenita Gentil? Ainda não chegámos a Albufeira mas já estamos na Suécia. 3 HELENA (esfregando os olhos e pondo óculos do sol para se defender da luz intensa do final da manhã) – Isso de vocês serem gays é grupo, não é? Silêncio rodoviário. JOÃO PÊ (irónico) – O que é que achas? HELENA – Acho que vocês… vocês parecem saídos de uma banda desenhada. Tipo: mais larilas que os larilas. Parece uma encenação. JOÃO PÊ – E é. HELENA – Bem me parecia. JOÃO PÊ – Mas somos muito mais larilas que os larilas. E mais papistas que o papa. Silêncio rodoviário. JOÃO PÊ – Mas quem tem boca vai a Roma, né? E eu passo a explicar… JOÃO – Quem é amiguinho da Lenita Gentil, quem é? O Joãozinho leva a menina de cu tremido. E o outro Joãozinho vai-lhe contar uma historinha de encantar. HELENA – Eu não curto histórias ad hoc. Levam sempre água no bico. Uma pessoa deixa-se iludir no embalo e, de repente, só porque se deu ouvidos, já se está a dar razão. JOÃO PÊ – É dura de roer, a Lenita. (Para João, em tom de ironia.) Tens a certeza de que é portuguesa? HELENA (fitando teimosamente a estrada a desfilar) – Transmontana. De Vila Real. Quanto mais perto de vê-la, mais irreal. Dizia um vilarrealense de importação: é a única cidade de montanha tão selvaticamente urbanizada que o peão não avista sombra de monte. JOÃO PÊ (suspirando) – Tudo se explica. Silêncio de auto-estrada.
HELENA – Nove meses de Inverno. Três meses de Inferno. JOÃO – Um timing perfeito, não achas? HELENA – Já não sei bem. Só pratico episodicamente. As raízes são para se cortar. JOÃO – Tretas. É mais fácil podar uma árvore do que desenraizá-la. Além disso, elas, as árvores, não caminham. HELENA – E daí? JOÃO elevando gradualmente o tom de voz como se estivesse zangado – São o espelho fiel de tudo quanto está vivo. De tudo quanto vingou, como se diz. Quando um gajo dá muitas voltas ao bilhar grande e se julga livre ou, pelo menos, em roda livre, há sempre uma árvore para nos provar o contrário. HELENA – Não estou a ver... JOÃO quase gritando – A terra, o planeta terra, é, todo ele, terra natal. Gira que gira. A gente só se agita. HELENA – Caíste no poço da sabedoria. Não admira que tenhas de gritar como um desalmado. (Um tempo.) Vocês sois todos assim, lá no reino dos Algarves? JOÃO atónito – Como é... como é que sabes? HELENA – Não é pecado. É sotaque. JOÃO PÊ que se sente excluído da conversa – Trær, trær, trær, tiden kommer mot meg på veiem men den har glemt hva jeg heter. HELENA para João – Talvez, tu, João, conheças a fundo o Verão. O pino do Verão. A pica do Verão. Eu sou feita de Inverno. Alto teor em geada e bruma. Inevitavelmente. Só de abrir a boca, congelam-se-me os afectos. E as intenções esfumam-se antes de serem gestos... JOÃO – Digamos que os extremos... Digamos... que se tocam. Um tempo. JOÃO – O Verão é uma página grande. Mega mega. Mas os amores, os turbo-amores que lá se escrevem, não tardam a dissipar-se. Ficam apenas umas notas de rodapé e, para não te esconder nada, por vezes já nem me lembro a quem se referem. JOÃO PÊ num tom esforçadamente neutro mas autoritário – Podes parar na primeira bomba de gasolina, por favor? JOÃO – Queres mijar? JOÃO PÊ – Não JOÃO – Tão cedo não paro. Agora só na fronteira. JOÃO PÊ – Então encosta na berma. Mete os quatro piscas que eu tiro a mochila da mala enquanto o diabo esfrega um olho. JOÃO agastado mas terno – Que bicho é que te mordeu agora, Johnny? JOÃO PÊ – O Johnny vai fazer holydays noutro planeta. Não tenho queda para pau de cabeleira. JOÃO quase surpreendido – Tás com ciúmes! Não posso acreditar, meu. Tás mesmo com ciúmes... JOÃO PÊ – Eu não tenho ciúmes de galinhas. JOÃO trocista – Que machista de merda me saíste, ó rico. JOÃO PÊ – Olha, vai apanhar no cu. JOÃO – Já fui, já voltei e nunca me cansei. Enquanto isto, Helena colocou de novo os fones nos ouvidos, considerando que o assunto não lhe diz respeito. JOÃO – Não te armes, Pêzinho, não te armes. Nem armes confusão que eu já tive a minha conta. Ontem. E anteontem. E antes de antes de ontem... JOÃO PÊ – Ouve lá, minha bicha de rabiar: comigo não podes dar duas de letra; comigo não consegues ouvir meia frase; comigo não estás na disposição de perguntar ou responder... E até tens
teorias sobre a questão do falo não ligar bem com a fala e outros disparates do género. Chega a primeira ave de arribação que tu nunca viste mais gorda e não é que desatas numa amena cavaqueira. Aos abrigos!!! Imitando uma bicha doida. Aos abrigo que já me cheira a Boliqueime!!! João não responde, mas enfia um cd no leitor da viatura: a «Paixão Segundo S. João» de J. S. Bach. Helena retira os fones. Sacode o cabelo como se estivesse a acordar de um longo sono. JOÃO para João Pê, falando por cima da música – Sabes, Pêzinho, entre amantes, as coisas importantes dizem-se, em regra geral, na presença de terceiros. De testemunhas, se quiseres. Na verdade, sem terceiras pessoas, provavelmente elas nunca viriam a ser ditas. Só na intimidade se mente. Ou antes, só se mente na intimidade. Quer dizer, na intimidade só se mente. Helena solta uma risada de bicho ferido. João pára o carro na berma da auto-estrada. Os rapazes fitam-se em silêncio. Inquieta, Helena passeia os olhos entre João e João Pê. JOÃO para João Pê – Ele há coisas que não passam pela cabeça de um cristão, não é, ó Joãozinho Protestante? JOÃO PÊ – Tudo me passa pela cabeça. As piores suspeitas. As melhores hipóteses. As respostas o que ninguém pergunta. O problema, tás a ver, é que a gente tem a cabeça menos larga do que as costas. E tu és tão absolutamente diferente em privado e em público que às vezes, as mais das vezes, tenho a impressão de estar no filme errado. JOÃO rodando a chave na ignição e arrancando de novo – Mas que filme, Pêzinho de Salsa minha patanisca? Isto aqui não é um roadmovie com móteis e bombas de gasolina de charme no meio do deserto. Isto é a dura realidade dos homens, com engarrafamentos na auto-estrada, coroa de espinhos na mona e muitos espelhinhos à flor da pele. Preferes fechar os olhos? Preferes fechar-te em copas? JOÃO PÊ, desarmado pela súbita eloquência do companheiro não responde. Helena não ousa abrir a boca. 4 Os três como que encostados à balaustrada do ferry que faz a ligação Suécia-Dinamarca. Helena deixou os fones no carro. João enche os pulmões de ar do mar. João Pê tirita de frio como é natural após uma noite mal dormida. JOÃO PÊ – Estou morto de frio. Aqueçam-me!!! JOÃO – Queres o meu casaco? HELENA – O meu cachecol? JOÃO PÊ – Não. Quero que me aqueçam. A Lenita esfrega-me as costas. E tu encostas-te ao meu peito e ficas assim quietinho como se estivesses a chocar um ovo. João e Helena fazem-lhe a vontade. João Pê exulta. JOÃO PÊ contente por estar a ser mimado – A história da sereia... o gajo que escrevia para putos... é da Dinamarca não é? HELENA esfregando-lhe vigorosamente as costas – O Andersen? JOÃO PÊ – Esse todo... Na verdade, a cena da sereia é... é a primeira história transgénero. Helena e João desatam a rir à gargalhada.
JOÃO PÊ – Trocar a cauda por um par de pernas não é assim tão diferente de trocar a pila por um pito... (Reflectindo.) Bem, mamocas já ela tinha. HELENA largando as costas de Pê – Estás-te a esquecer do mais terrível. A sereia do Andersen fica sem voz. De todos os seus atributos, era o mais belo. Que eu saiba, os transsexuais não perdem o pio. JOÃO PÊ – Nããão. Mas, se levarem a sua opção até às últimas consequências perdem... perdem o passado. Silêncio de travessia, com laivos de água espumando e ventania. Ouvem-se longinquamente ecos esfarrapados de cantoria. HELENA – Os gajos, no bar, ainda mal puseram um pé no barco e já estão completamente bêbedos. Fogo! E ainda há quem julgue que os nórdicos são o exemplo da civilização e os meridionais são a quintessência da selvajaria! JOÃO PÊ – Ainda tu não viste nada. Este pessoal não se mete nos copos porque está alegre e em boa companhia. Aqui bebe-se com premeditação. Entra-se no barco para beber a baixo custo. Aproveita-se a travessia para enfrascar até cair. E nem sequer se sai do barco. JOÃO – Amanhã levantam-se e é noite cerrada. Vestem uma camisinha lavada e voltam a ser cinzentos como o céu que os esmaga. (Suspirando.) São vidas... JOÃO PÊ – Ssssim. Eu não mordo a mão que me dá de comer. Se não fossem estes cromos, estava a trabalhar num call center com vista para o olho da rua. JOÃO – E na Escandinávia és menos desgraçado??? JOÃO PÊ – Olha, por incrível que te pareça, foi saindo de Portugal que comecei a dar valor a coisas mais simples como a luz, um café bem curto, um estendal de roupa, um prato de sopa, tocar à porta de um amigo sem prevenir. Então... JOÃO – Então...? JOÃO PÊ – Então, estou duplamente grato aos vikings: por me terem deixado praticar o meu ofício e por me terem aberto os olhos para... para o relativo absoluto. HELENA um pouco como se falasse para si mesma – Que engraçado... Para mim, isso tem mais a ver com a maneira de ser dos portugueses. Também eu aprendi a apreciar coisas quando me vi privada delas. Longe da fonte, choram os olhos, não é? JOÃO – Não me digas que também andas saudosa da sopa? Ó caldinho de cultura, valha-me Deus... HELENA – Não tem a ver com isto ou aquilo, mas sim com a qualidade particular que isto ou aquilo adquirem num determinado contexto. JOÃO trocista – Por exemplo, o azeite, o sabão macaco, o... HELENA – Não. O frio. Por exemplo, o frio. O frio não é igual consoante a gente acorda num lugar com aquecimento central ou num quarto gelado a cheirar a lenha. Portanto, cinco graus negativos, estás a ver, depende de onde... JOÃO PÊ – Onde, quando, como, o quê, porquê. Hvor, hvornår, hvordan, hvad, hvorfor. JOÃO – Depende de onde... Exacto. Quando estou fora de portas e entre portugas, esqueço-me de que quase sempre, quase todos são norte do meu sul. É como se tivéssemos todos andado na costura. É como se vivêssemos todos na mesma rua. JOÃO PÊ – O como depende do onde. O onde depende do quando. O quando depende do como. E por aí fora, em círculos. Helena afasta-se um pouco da balaustrada e faz uma inesperada pirueta. HELENA um tanto sonhadora e mais solta do que até aí – Isso de norte e de sul, à nossa escala – embora eu não saiba bem qual é a minha escala – pode ser enganador... não? Basta a palavra «emigração» para o pessoal pensar «países do sul». Ora... JOÃO – Ora... HELENA – Ora... em Portugal, emigrou-se muito mais a Norte do Tejo do que a Sul do Tejo.
JOÃO PÊ – Muito mais no interior do que no litoral. JOÃO – E ainda mais interiormente do que explicitamente. Pausa. JOÃO PÊ – Pode-se emigrar sem arredar pé do lugar onde se nasceu. JOÃO – Aliás... JOÃO PÊ – Aliás... JOÃO – Aliás, no Algarve, vivemos um fenómeno... com um processo que foi um bocado... quase simétrico da emigração. Enquanto os transmontanos, aos magotes, davam o salto para as franças, os luxemburgos, as alemanhas... as áfricas... nós, na «moirama», levámos com os estranjas. Paletes deles. E com os avós na fábrica da sardinha a fechar portas, não havia como atirar pedras... JOÃO PÊ – Não sejas tão dramático, meu... Tu até costumas dizer que o nudismo abre as cabeças, não é...? De súbito, acende-se uma máquina de fazer vento que faz voar cabelos e cachecóis. 5 Noite cerrada. Helena e João Pê dormem enrolados em sacos cama. João, deitado em cima do capot do carro, não se sabe se um pouco bêbedo ou apenas em maré de devaneio, vai faduchando de olho posto nas estrelas. JOÃO cantando – Ai Lampedusa Já não se usa Ter dó nem tusa Lei do mais forte Pena de morte P'ra quem lá vem Na escuridão Ouve-se o pranto Dos sem mortalha Ó mar maldito Teu grande manto Não agasalha JOÃO PÊ – Amor, vem dormir! JOÃO – Eu estou a dormir. De olhos abertos. JOÃO PÊ – Foi um longo dia, caraças... JOÃO – Pois foi. Estou cá com uma espertina que atravessava a noite a nado. HELENA voz de sono – Eu não me quero meter, mas pegaste no volante a queixar-te de uma noite mal dormida. E aí vão duas... Lembra-te de que só tu é que conduzes. JOÃO – Que sensata esta irmãzinha que a gente arranjou. JOÃO PÊ – Além disso eu detesto fado. Aliás detesto os três efes. JOÃO – Quais efes? A festa, a foda e a fantasia? 6 O suposto veículo encontra-se estacionado numa bomba de gasolina. Os três viajantes desentorpecem as pernas.
JOÃO PÊ – Papá, já deste de comer ao popó. Água, ar, óleo e gasolina: refeição completa. E nós, não vamos papar? JOÃO – Aqui, na bomba de gasolina? JOÃO PÊ – E que julgas tu que se manja na Germânia? JOÃO – Salsichas... Batatas... Couves... HELENA – Isso até soa a Trás-os-Montes. JOÃO PÊ – Ai rica, quanto eu não daria por uma alheira com grelos e um ovo a cavalo. JOÃO – Saia uma sem grelos. HELENA – Saia uma sem ovo. JOÃO PÊ – Mas com batatas fritas, por favor. JOÃO – Foda-se que este jogo ainda dá mais fome. JOÃO PÊ – Então 'tás a ver... A não ser que prefiras comer... na Holanda. HELENA – Realmente, nós, os portugueses, só pensamos em morfar. JOÃO PÊ – Olha... JOÃO – Olho o quê... JOÃO PÊ – A Lenita Gentil disse «nós». JOÃO – Afinal tu não és tão mau como ela te pintava. JOÃO PÊ – Afinal os gays comem e cagam, choram e mijam como toda a gente. Uau!!! Helena vira-lhes costas para não mostrar o que lhe vai na alma. Silêncio demorado. HELENA sem se voltar para eles – Sabeis vós dois o que é ser gaja num mundo onde manda o badalo entre as pernas? Silêncio demorado. HELENA – Desculpem lá. Estou cansada. Dormi mal. Tive pesadelos. Silêncio demorado. HELENA – Isto da estrada traz-me sempre más recordações. Silêncio demorado. HELENA – E boas. Boas também. (Um tempo.) Enfim, quem anda à chuva molha-se, não é o que diz o povo? Helena chora baixinho. Um tempo. João Pê aproxima-se dela, pousa devagar o braço em cima do seu ombro. JOÃO PÊ – Não, Lenita. Quem anda à chuva, traz um chuço de casa. Ou abriga-se debaixo dum beiral. Ou... Helena solta uma risada. Quase infantil. JOÃO PÊ – E agora a gente já não troca a nossa Lenita pelo Apolo em pessoa. JOÃO – Quer chova, quer faça sol. 7 Helena empunha uma câmara de filmar (ou uma máquina fotográfica das que filmam) e está a tentar encenar um plano do tipo «recordação de viagem» com os seus dois companheiros, frente a um coffeeshop. Mas eles não param de entrar e sair de campo, fazendo mil e uma macacadas.
HELENA – Vá que para o ano que vem já não podemos filmar esta cena. Os gajos vão proibir o acesso dos estrangeiros aos coffeeshops. O tribunal de Haia já confirmou e tudo... O gajos não curtem os estranjas. Os outros respondem-lhe continuando a fazer pantominas alusivas ao que vão dizendo. JOÃO – Os estranjas... JOÃO PÊ – Os bárbaros... JOÃO – Os selvagens... JOÃO PÊ – Os meridionais... JOÃO – Os mediterrânicos... JOÃO PÊ – Os mouros... JOÃO – Os clandestinos... JOÃO PÊ – Os marroquinos... JOÃO – Os sarracenos... JOÃO PÊ – Os cafres... JOÃO – Os turcos... JOÃO PÊ – Os turras... JOÃO – Os terroristas... JOÃO PÊ – Barbudos... JOÃO – Mal cheirosos... JOÃO PÊ – Traficantes de carne branca... JOÃO – Os escuros... JOÃO PÊ – Os pretos retintos... HELENA batendo o pé como uma criança contrariada – Portem-se bem, meninos. Se continuarem com as vossas trampolinices, não vos pago os pratinhos de panquecas com manteiga, canela e açúcar pilé. JOÃO lambendo as beiças – Mmmmm... JOÃO PÊ – Uau... HELENA – Então, ponham-se lá juntinhos e sossegadinhos, diante da porta, um à beira do outro... JOÃO – Um ao pé do outro. JOÃO PÊ – Um à beira do outro. JOÃO – Ao pé. JOÃO PÊ – À beira. JOÃO – Ao pé. JOÃO PÊ – À beira. JOÃO – Ao pé da beira. HELENA – Ai os cogumelos!!! JOÃO – Ai a nossa abóbora-menina... JOÃO PÊ – Julgava que já tinha virado Cinderela desde ontem... HELENA – Grrrrrrrrrrrrrr... Ao LADO um do outro. LADO a LADO. JOÃO – Pronto, pronto, a gente posa para a eternidade antes que os diques e as tulipas fechem estas drogarias. E até fazemos «cheese» à holandesa e tudo. Vamos ficar que nem uma tampa de lata de bolachas. JOÃO PÊ voz de falsete – Oh riqueza da minha avó! Posam diante do coffee-shop. Helena filma. HELENA – Ufa... Realmente os indígenas são mesmo pãezinhos sem sal. E bastante racistas. Não é que os gajos querem que os coffeshops sejam reservados exclusivamente aos naturais da região demarcada?!? JOÃO PÊ – É mesmo baixa esta gente dos Países Baixos.
JOÃO – Até parece que os portugas são uns mãos largas com o pessoal que vem das Áfricas. Nós somos os blacks destes caras pálidas, 'tás a ver... JOÃO PÊ – Sim... talvez... quer dizer, nós somos pelintras mas estamos de passagem. JOÃO – Alguns estão de passagem... Outros, nem por isso. Os novos emigras, pelo menos uma boa parte deles, são do nosso género. JOÃO PÊ – Eu cá, sou um emigra. E-MI-GRA Com muito orgulho. Expat, tás a ver? Apátrida – 1 / Patriota – 0. Não fiquei à espera que o céu me caísse na cabeça. Maomé não vinha à montanha? Paciência. Alá deu-nos mirantes para sonhar e pedantes para caminhar. HELENA arrumando a máquina no fundo da mochila – Eu li algures que, nuns poucos meses, emigraram dois mil arquitectos. Para a Suíça. JOÃO PÊ – Ui, primeiro ficaram com o ouro dos judeus. Depois guardaram os dólares dos que chupam os povos do mundo inteiro até ao tutano. E agora roubam-nos os nosso sizas de calção curto. Naughty boys!!! Como é que um país tão limpinho faz tanta sujeira? JOÃO – Ouve lá, meu, achas que foi a vender relógios e chocolates como os vendedores ambulantes que os gajos se encheram de graveto!? HELENA – 'Bora lá dar cabo das poffertjes? É que a conversa da política dá-me fome. Quando penso que o nosso primeiro chamou piegas à malta que não tem onde cair morta, só me apetece comer a mão direita e a esquerda. Como nos desenhos animados. 8 Os três viajantes estão de novo no carro. Atravessam a imensa planura da Flandres. João Pê e Helena esforçam-se por manter viva a chama da conversa para que o condutor não se deixe adormecer. JOÃO PÊ – Já nada se parece com o que era dantes... HELENA – E tu pareces a minha avó a falar. JOÃO PÊ – Pensar que curti em Amesterdão uma das mais belas noites da minha vida, com fogos a serem lançados no canal e cerveja a correr pelas gargantas! HELENA – A mim, os fogos de artifício dão-me calafrios. Lá na santa terra, a cada romaria vai-se uma mata. Prefiro a clorofila às estrelas artificiais. JOÃO PÊ – Ainda viras vegetariana o que, para uma donzela de Trás-os-Montes, seria lamentável. Curto silêncio. HELENA – Será que vamos passar por Antuérpia? JOÃO – Ao largo. É para isso que servem as auto-estradas. Para evitar as cidades, as vias de cintura interna, os jogos de cintura externa, etc. Curto silêncio. HELENA – Julgava que estávamos numa de colar ao mapa como o caracol cola ao chão. Sem pressas. JOÃO PÊ – Espera aí... Afinal ela quase quase se descose, de vez em quando! Esta de Antuérpia traz água no bico. (Como que embandeirando em arco a descoberta de um segredo.) É agora que vamos conhecer o paradeiro do príncipe encantado da nossa cinderela de Vila Real. Temos que a fuzilar com perguntas. Malhar no ferro enquanto está quente... HELENA rindo de bom grado – Não. Não. Os flamengos não fazem o meu género. JOÃO PÊ – Mas não há só flamengos na Flandres. HELENA – Pois não. Neste caso, quer dizer, no caso daquilo que me veio à cabeça, os sujeitos até eram judeus. Comerciantes. Todos reunidos num bairro. Eu estava de visita. Fiquei um tempo a observar o andamento das lojas. E não é que os clientes dos gajos eram, quase todos, tipo 95% deles, árabes!?! Nunca mais me esqueci dessa cena.
JOÃO PÊ – Eu, no meu «álbum Bélgica», tenho um squat em lugar de destaque. Mas um senhor squat. Um ganda palacete a fugir para palácio, minha. Uns tipos herdaram aquela enorme mansão, mas não tinham nota para fazer obras. Então houve uns outros, do género «bricolage e tudo-faço», que lhes propuseram tratar do restauro e partilhar o casarão com os donos. Enfim, é mais uma joint venture do que um squat. Mas é uma cena fixe. Fixe porque se fazem lá muitas cenas fixes. JOÃO – O frio da Noruega congelou o vocabulário do nosso Pêzinho, não foi? O Pêzinho é um fixolas, com bué da cenas fixes para contar. É fixérrimo o Pê, só que se torna um bocadinho minimal repetitivo ouvi-lo. JOÃO PÊ – Olha, para as grandes conversas de fundo que tenho contigo, também não sei o que haveria de fazer com as palavras caras. E já te digo que, se não fosses a 160, ia-te às trombas, meu cabrão! HELENA aflita – Não respondas!!! Não respondas porque vais mesmo a 160. Eeeee... e estás exausto. Eeeee... e não estás a ser muito simpático porque o Pê só me está a dar letra para... para tu não adormeceres. Silêncio. JOÃO caindo em si – Bem... O que o mundo não daria por uma Helena... O que os gregos e os troianos não deram por uma Helena. Nunca pensaste em abraçar a carreira diplomática? Na variante pacificar as hostes gay e fazer reinar a harmonia universal na internacional cor de rosa? HELENA – Julgava que vocês eram todos peace and love? JOÃO trocista – Achas...? Silêncio prudente. HELENA tentando retomar o fio da conversa com João Pê – Isso dos squats... lá na tua terra... no Porto... é que o pessoal devia desatar a ocupar casas vazias. Aquilo já não é um porto, é um naufrágio. Não deve haver nenhuma cidade na Europa com tanta casa a cair. Até dói. JOÃO PÊ – Pois... Mas não sei se reparaste que, «lá na minha terra», é com polícia de choque que se lida com os okupas. Okupas igual a anarcas igual a ciganos igual a terroristas igual a indesejáveis, etc. etc. etc. HELENA – Brandos costumes... Silêncio português, cheio de queixume e fatalismo. HELENA – Os portugueses têm a mania de que não são nada racistas. Mas depois, na volta, os comerciantes põem sapos nas lojas para afastar os ciganos. JOÃO PÊ – Outrora – outrora é uma palavra cara – o ódio de estimação ia todo para os castelhanos. Outrora. Agora... HELENA – Agora estamos na Europa, certo? E o que é a Europa? Os do Norte ostracizam os do Sul e lixam as economias meridionais. Os ingleses detestam os alemães e desprezam os continentais. Os alemães apertam os calos aos franceses e exploram os turcos. Os franceses troçam dos belgas e fazem gato sapato das vítimas das aventuras coloniais. Os belgas também são objecto da chacota dos holandeses e alimentam uma espécie de guerra civil entre francófonos e flamengos dentro de portas. Os Espanhóis não se entendem entre si. Os Italianos do Norte querem a secessão. Os da ex-Jugoslávia quiseram o mesmo e fizeram-no pela força das armas. Os Polacos nunca deixaram de ser anti-semitas e, se não fosse a hipocrisia que é marca dos católicos, transformavam Auschwitz num campo de férias cinco estrelas. Os austríacos, como dizia o Thomas Bernhard, vivem na cloaca da Europa e continuam a produzir pequenos hitler. Os roms não tem terra e comem de todos pela medida grande. Silêncio europeu.
JOÃO – Olha... bardamerkel!!! Se pudesse mandava já uma ducha só de me lembrar que estou mergulhado nessa trampa. (Silêncio.) Ou... ou, como o meu Pêzinho costuma ameaçar, puxava a carroça e punha-me nas putas. Mas fugir para onde? JOÃO PÊ – Vamos fazer como as beguinas, meu amor. Fundamos comunidades fechadas e vivemos para os pobres e para a poesia. Cultivamos hortas. Vendemos conservas e compotas... JOÃO – Que freak me saíste!!! E depois, nada de cama porque só o amor a Deus é que vale. Por amor de Deus, Pêzinho. (Silêncio.) Além disso, acho que que o carro, lançado nestes lugares de ninguém que as auto-estradas são, é o meu escape, a minha ilha, a minha maneira de ser pobre, a minha poesia em movimento. JOÃO PÊ – Assim haja ouro negro para meter no depósito! E nota preta para pagar o ouro negro... Silêncio pejado de violentas passagens de veículos. HELENA pensativa – Uma amiga minha que faz teatro contou-me uma história incrível. Lida numa revista, creio. Parece tirada de de um romance mas é verídica. Passa-se por alturas da Segunda Guerra Mundial. Na Terceira. Noite cerrada. Há um gajo, que é controlador aéreo e que se encontra sozinho na base americana. De repente recebe alerta via rádio. Vinha de um aviador perdido no meio do Atlântico em maus lençóis que ia ter de pousar no oceano. Amaragem perigosa, O controlador, em contacto com o piloto, passa em revista todos os procedimentos para garantir que a operação, apesar de arriscada, tem hipóteses de sucesso. Prevenida a polícia marítima, preparados os socorros, os dois homens conversam um pouco e descobrem que têm em comum o gosto pela poesia. E que conhecem de cor uma data de poemas. Então o controlador, que era novo e pouco experiente, começou a recitar versos ao outro fechado na sua gaiola de metal. Para que ele se mantivesse sereno. E o piloto respondeu-lhe na mesma moeda. A dado momento, a comunicação foi abruptamente cortada. Seguiu-se a amaragem. Perfeita. Mas o piloto levou uma pancada na cabeça. E morreu. 9 Os três viajantes dormem no chão. Um sono agitado. Estão enfiados em sacos cama coloridos. João (dentro de saco cama amarelo) tem a cabeça pousada na barriga de João Pê (dentro de um saco azulão). Helena (dentro de um saco vermelho vivo), tem a cabeça pousada em cima da barriga de João. Enquanto dormem são sacudidos por frases que proferem sem acordar mas com voz ensonada. Essas frases soltas são versos do seguinte poema de Fernando Pessoa: Viajar! Perder países! Ser outro constantemente, Por a alma não ter raízes De viver de ver somente! Não pertencer nem a mim! Ir em frente, ir a seguir A ausência de ter um fim, E a ânsia de o conseguir! Viajar assim é viagem. Mas faço-o sem ter de meu Mais que o sonho da passagem. O resto é só terra e céu. No início, cada verso surge desgarrado e é nitidamente percepcionado. Depois, os versos começam a sobrepor-se até formarem um magma coral. Assim, por exemplo: HELENA – Viajar! Perder países! JOÃO PÊ – Não pertencer nem a mim! JOÃO – O resto é só terra e céu! JOÃO PÊ – Ser outro constantemente...
JOÃO – Mas faço-o sem ter de meu / Mais que o sonho da passagem. HELENA – Viajar assim é viagem. JOÃO PÊ – Ser outro constantemente... JOÃO – Ir em frente, ir a seguir / A ausência de ter um fim, / E a ânsia de o conseguir! JOÃO PÊ – Ser outro constantemente / Por a alma não ter raízes / De viver de ver somente! HELENA – Não pertencer nem a mim! JOÃO PÊ sobrepondo-se a Helena – Ser outro constantemente... JOÃO sobrepondo-se a João Pê que começa a falar pouco depois – Não pertencer nem a mim! Ir em frente, ir a seguir / A ausência de ter um fim, / E a ânsia de o conseguir! HELENA sobrepondo-se a João pouco tempo depois de ele começar a falar – Viajar! Perder países! / Ser outro constantemente, / Por a alma não ter raízes / De viver de ver somente! Etc. por aí fora. Durante uns bons três minutos. Até Helena rematar, proferindo sozinha o último verso «O resto é só terra e céu.». 10 De novo dentro do veículo. HELENA dormita no banco de trás. JOÃO solenemente – La France. Madame la France. JOÃO PÊ olhando de relance a paisagem – Exactamente igual à Bélgica por enquanto. JOÃO – La plaine. (Cita ironicamente «My Fair Lady» de George Cukor, com argumento de Alan Jay Lerner, baseado na sua própria comédia musical e na peça homónima de Bernard Shaw). «The rain in Spain stays mainly in the plain. The rain in Spain stays mainly in the plain. Repeat after me.» JOÃO PÊ ensonado e com um certo enfado – Tu és irrepetível. JOÃO cheio de pica, num crescendo – La France. Marianne. (Faz caras.) Brigitte Bardot. Anna Karina. Catherine Deneuve. Juliette Binoche. Ui! (De novo solene.) La Marseillaise. La République. L'Hexagone. Paris. Pé-risse. The French Cancan. La vache qui rit. La vache espagnole. La capote anglaise. Robespierre. Le Marquis de Sade. Café crème. Café crème. Café crime. Travagem brusca. HELENA em sobressalto, estremunhada – O que é que aconteceu...? JOÃO PÊ – Ele ensandeceu! HELENA – E tu não conversas com o teu namorado-chauffeur, para ele não... para ele não... JOÃO PÊ – Ouve lá minha, ele faz a festa, lança os foguetes e apanha as canas. Está com uma tusa que só pára de acelerar em Paris. HELENA – Mas a gente disse que ia evitar Paris. JOÃO PÊ – Paris era uma força de expressão. Porque o nosso Jão-Jão é a expressão da força. Lá por ser um pau de virar tripas, não... Quer dizer, engana muito. É muito duplo. Triplo. Múltiplo... sei lá bem. JOÃO – Olha quem fala... O moço vai para a Noruega tomar conta de criancinhas loiras e depois conta ao pessoal que é actor. O moço destroça os corações das garinas e depois conta ao pessoal que é gay a tempo inteiro. O moço apanha um charter por mês – a ponto de já conhecer todas as estratégias para ter sempre um lugar de janela – e depois vem-me contar que é muito caseiro e que eu tenho fogo no rabo. Desculpa lá, garanhão, tu me fais tourner la tête... JOÃO PÊ imitando o sotaque algarvio do namorado – A gente não está aqui para apanhar peixe. JOÃO abrindo um sorriso – Ok. Fui apanhado pela cama. João Pê faz-lhe uma festa na nuca. HELENA – Menino Pê e Menino Jê, não se namora num veículo em andamento quando um dos amantes tem o volante entre as mãos. Fazendo-se de agastada. Além disso, a vossa charla é chinês para mim. JOÃO – Ó rica, não és só tu que tens himalaias de cor local. Nós também somos pitorescos quando a língua nos foge para o chinelo.
João concentra-se numa ultrapassagem de camião TIR. João Pê assobia a melodia da canção «Tu me fais tourner la tête»de Edith Piaf. HELENA – A minha avó estava sempre a dizer «chata como a potassa». E sabem que, até muito tarde, eu julgava que potassa queria dizer putéfia?! Nem me passava pela cabeça que a potassa fosse a cena que os antigos obtinham com a barrela de cinzas da madeira queimada que era posta a ferver no caldeirão. Servia para fazer sabão. JOÃO PÊ – Catraia com caca na cabeça é o que dá: vê o mal onde ele não está. JOÃO – A vovó deitou-lhe demasiada pimenta na língua e a catraia ficou... picante. JOÃO PÊ fazendo boquinhas – E sexy. JOÃO – E cheia de glamour. JOÃO PÊ – A marota...! JOÃO – Faz parte da Transmontana Connection. JOÃO PÊ – É uma loba. JOÃO – Mas esconde bem o jogo. JOÃO PÊ – É uma lasciva. Uma libertina. JOÃO – E o andamento que a cachopa tem? JOÃO PÊ – Só pensa em soltar a franga. JOÃO – Em laurear a pevide. JOÃO PÊ – De país em país. JOÃO – De cama em em cama. Helena ri como uma perdida. HELENA tentando conter-se – Parem lá com o vosso número que eu estou cheia de dores de barriga. Vocês os dois... vocês os dois... (suspira profundamente.) deviam fazer um dueto. Uma coisa assim um bocadinho fora de moda, a atirar para o género «vozes da rádio». Um dueto radiofónico, 'tão a ver? JOÃO – E fazemos. Não fazemos? JOÃO PÊ fazendo durar as palavras e acenando afirmativamente – Ganda nóia, ó Helena de Tróia!!! 11 A cena passa-se na escuridão total. Helena vai sentar-se junto dos espectador. João e João Pê concretizam a sugestão de Helena. JOÃO tom neutro e expositivo – O amor. JOÃO PÊ romântico – L'amour. JOÃO – Love. All you need is. JOÃO PÊ – Vamos falar de amor. JOÃO – Sem palavras JOÃO PÊ – Não. Sem palavras não. Isto não é o telefone cor de rosa. Portanto... muita prosa. JOÃO – O amor começa... JOÃO PÊ – Começa com a tomada da palavra. JOÃO – Isto é: liga-se a ficha à tomada e faz... curto-circuito. JOÃO PÊ – Dizia eu... JOÃO – Dizias tu... dizias-me tu que... JOÃO PÊ – Tu que... tu que. Tuc-tuc-tuc. Toc-toc-toc. Está aí alguém? JOÃO – À escuta. Sempre à espreita e à escuta. JOÃO PÊ – O amor começa com a tomada da palavra. JOÃO – E acaba. Porque não cabe nas palavras. Daí que... JOÃO PÊ – Daí que nada. O amor confunde-se com a palavra. «E o verbo fez-se carne.» Lembraste?
JOÃO – Eis uma história que acabou mal. Lembras-te? JOÃO PÊ – Não estava lá para ver. Só conhecemos um ponto de vista. JOÃO – Querias o ponto de vista da serpente? JOÃO PÊ – Não. Queria continuar o meu raciocínio. JOÃO – A palavra é toda tua, meu amor. JOÃO PÊ – O amor começa com a tomada de palavra. Balbuciante. Gaguejante. Depois articulada. Gritada. Enrouquecida. Primeiro a voz morava entre as pernas. Depois passou a morar na nuca. Desvarios. Calafrios. A seguir estrangulou-nos a garganta. Sitiamos e ficamos sitiados. Cada palavra se desdobra em imagens. E as imagens são a maneira humana de Eros. O amor aceita então ser tomada da palavra. Cada primeira palavra é vivida como a última. Como uma tomada de vista – inapagável. Tão definitiva como uma cicatriz. Porque nós, humanos, amamos imagens. Mais as imagens do que os corpos. Mais as imagens dos corpos do que os próprios corpos. JOÃO – O amor é tomada de palavra que é tomada de poder. Quem ficou na mó de cima poderá ficar na mó de baixo. JOÃO PÊ – Não sejas tão explícito. Tão explicitamente sexual... JOÃO – O que quer que isso seja... JOÃO PÊ – Eu falo... JOÃO – Eu falo...? Olha quem fala!!! JOÃO PÊ – Eu falo mentiras de amor. E nunca falo tão verdade como quando as digo umas atrás das outras. Uma fala em fila indiana. Primeiro balbuciante. Gaguejante. Depois articulada. Gritada. Enrouquecida. Dando nomes à coisas e chamando os bois pelos nomes. JOÃO – Disseste que não íamos falar de cama. JOÃO PÊ – No sentido estrito. Mas o amor, a palavra, a tomada da palavra dilatam os sentidos. JOÃO – Até as palavras rebentarem como balões. Como bombas. É o amor contagem a contrarelógio. Explode nas mãos. JOÃO PÊ – Mas eu disponho-me a catar o que resta das mãos, dos nomes, dos dedos, das sílabas. Das mãos. Dos nomes. Dos dedos. Das sílabas. Das mãos. Dos nomes. Dos dedos. Das sílabas. Das mãos. Dos nomes. Dos dedos. Das sílabas. Das mãos. Dos nomes. Dos dedos. Das sílabas. Das mãos. Dos nomes. Dos dedos. Das sílabas... Helena aplaude. A luz sobe. Helena volta a entrar em palco. E, de mãos na cintura, pergunta à queima-roupa. HELENA – E agora? Para onde vamos? 12 Os viajantes estão parados frente a uma máquina de pagamento. Algures numa auto-estrada do País Basco. Do lado francês. Procuram desesperadamente trocos para meter no cesto destinado a esse fim. No fundo dos bolsos, nos sacos, nas mochilas... Em vão. Há já uma pequena fila de carros à espera e os respectivos condutores começam a impacientar-se. JOÃO – Ó pá. Varreu-se-me completamente esta merda... Não tenho trocado, nem tenho nenhum cartão que estas máquinas aceitem. JOÃO PÊ – Viva a civilização! Viva o nosso Jão-Jão. JOÃO – Foda-se, isto é de loucos. Ou a soma certa no cesto ou o cartão certo na boca do bicho. HELENA continuando a procurar – Eu também não tenho nenhum dos cartões afixados. E só... só tenho notas. As últimas moedas meti-as na máquina do café. Quando parámos na bomba. JOÃO – Vou ver ao guarda-luvas. Mas não tenho fé nenhuma. JOÃO PÊ – Ui... Somos tão ricos que nem temos uma moedinha para mandar cantar um cego. JOÃO – Grrrr...
Começam a ouvir protestos dos condutores que formaram bicha. Eventualmente gravados ou, melhor ainda, proferidos pelos três viajantes com o melhor sotaque que conseguirem. CONDUTOR 1 – Eh ducon!!! Tu avances ou tu veux que je te pousse au cul? CONDUTOR 2 – On n'est pas en vacances, nous... CONDUTORA – Dépêchez-vous, les gars. Je n'ai pas que ça à faire! CONDUTOR 2 – Ils sont pas de chez nous, ces nuls. CONDUTOR – Maria, tu as les portugaises ensablées? CONDUTOR 3 – C'est pas possible. Ils se foutent de notre gueule...! CONDUTORA – Ô... les tos... ça commence à bien faire. João enerva-se, ameaça esmurrar as trombas do condutor mais próximo. João Pê tenta acalmá-lo, abraçando-o com ternura. Protestos redobrados. CONDUTOR 1 – Bande de pédales! Foutez le camp ou je vous casse la gueule? CONDUTOR 3 – Vous voulez que je vous crève les pneus? HELENA – Tenham lá calma. Eu vou-me encher de lata, fingir que não pesco nada do que os gajos dizem e... Chego-me ao primeiro filho da puta, abro um sorriso. Saco de uma nota e peço troco. Tá? Eu volto já. Contra a inteligência artificial, a estupidez natural pode muito. Helena afasta-se e faz o que anunciou. Resulta. Ruído de portas a bater. Vários arranques em decrescendo. Um derradeiro comentário. CONDUTOR 2 – Pas trop tôt! Dites donc, les femmelettes, vous avez besoin d'une grosse bite pour vous ramoner la cervelle? HELENA – Ufa! Se o francês é a língua do amor, eu sou a Isolda em pessoa. JOÃO PÊ – Xenófobos. Homofóbicos. Malcriados. JOÃO – São malcriados e fazem gala nisso. Mas, pelo menos, são contestatários quando lhes pisam os calos. Enquanto nós, rico, damos o cu e três tostões quando nos fodem a vidinha, tás a ver? É que a nossa melhor qualidade – que é a capacidade de resistir – é também o nosso pior defeito – que é a capacidade de aceitar tudo e mais alguma coisa. JOÃO PÊ – Resiliência, chamam a isso. É uma palavra muito na moda desde que inventaram a crise. JOÃO – Enfim, a grosseria é o lado b dos franceses. HELENA – Vou-vos contar uma anedota. Francesa e racista. Para desanuviar um bocado. (Pausa. Vê-se que não tem jeito para contar anedotas mas que vai fazer isso o melhor possível.) Sabem porque é que os portugueses usam bigode? (Um tempo de espera.) Para se parecerem com as mães. 13 Os três viajantes saíram do veículo para desentorpecer as pernas. E é isso que estão fazendo, numa qualquer área de descanso de uma auto-estrada que atravessa o País Basco, do lado espanhol. Está uma noite de luar capaz de fazer uivar lobos. De início, os três fazem movimentos que correspondem à necessidade de sacudir e esticar os músculos após longas horas dentro de um automóvel. Depois, essa coreografia naturalista vira dança de fantasmas – mantém-se a lógica do alongamento mas os gestos multiplicam-se, cruzamse, imitam-se criando efeitos de espelho e simetria... Por fim, caem redondos no chão, como que aniquilados pelo cansaço. Ouvem-se passagens de pesados. Violentamente sonoras. Durante algum tempo, nenhum deles abre a boca. João Pê rompe o silêncio. JOÃO PÊ – Caraças, uma pessoa atravessa fronteiras e nem dá por ela. HELENA – É o maravilhoso mundo novo das auto-estradas. A face da Europa está rasgada por mil e uma cicatrizes. São as lost highways. Mais que as mães.
Pausa. JOÃO – Apesar de tudo, entre o País Basco, lado francês, e este Euskadi do lado de cá, vêem-se diferenças consideráveis. Do lado de lá, tudo muito arranjadinho, os prados parecem aparados por uma máquina de barbear, as vivendas coquettes e pintadas de fresco como casinhas de bonecas. Do lado de cá, a paisagem é mais trágica, os campos foram violados pelas fábricas, os rios parecem todos poluídos. Etc. Mesmo circulando a alta velocidade, lê-se a passagem do comboio da história. E os descarrilamentos... As camuflagens também. HELENA – A mim faz-me uma certa impressão demasiada arrumação. Sinto que... sinto que estou numa disneylândia e que, a qualquer altura, podem aparecer os Sete Anões ou o Bambi... Risos. JOÃO – Atão? Prontos para atravessar a Grande Espanha? JOÃO PÊ – Eu quero tapas ao pequeno almoço. Nem que chovam picaretas. E churros, ora bolas! E churros. 14 A Meseta banhada numa intensa luz dourada. Helena dormita. João enxuga o suor do rosto. João Pê está cheio de genica. JOÃO PÊ – Ainda não acabei de digerir os churros. (Imitando o sotaque espanhol.) Caramba!!! JOÃO – Comeste como um alarve. JOÃO PÊ – A minha fome é arcaica. Tem séculos. Estou insaciável. João ri e abranda. Ouve-se um vento de planalto desértico. JOÃO PÊ – Encosta aí o teu Rocinante e vamos brincar. Este sol está mesmo a pedi-las. (Pausa.) Eu te saúdo, Rá. O veículo é estacionado. Ruído de portas a bater. Helena dorme como um anjo e os rapazes não a acordam. JOÃO PÊ – Eu faço de Pança e tu de Quixote. Lembras-te? JOÃO – Se lembro!!! Ora... Tu sentado e eu de pé. (João Pê senta-se.) Certo? (Compondo uma pose «quixotesca».) Huuum... «E que estava fazendo aquela rainha da formosura? Aposto que a achaste a enfiar pérolas, ou bordando alguma empresa com canutilho de ouro, para este seu cativo cavaleiro.» JOÃO PÊ – «Qual? Achei-a a joeirar duas fangas de trigo num pátio da casa.» JOÃO – «Pois faze de conta que os grãos desse trigo eram aljôfares logo que ela lhes tocava. Reparaste, amigo, se o trigo era candial ou tremês?» JOÃO PÊ – «Nada; era dumas alimpas.» JOÃO – «Pois assevero-te que depois de joeirado por ela havia de deitar farinha candial infalivelmente. Mas passa adiante. Quando lhe deste a minha carta, beijou-a? Pô-la sobre a cabeça? Fez alguma cerimónia digna de tal carta? Ou que fez?» JOÃO PÊ – «Quando lha ia entregar, estava ela na azáfama de aviar uma joeirada quase cheia; por isso, disse-me: "Ponde, meu amigo, a carta para riba daquele saco, que não a posso ler enquanto não acabar de joeirar tudo o que para aí está."» Helena acorda e fica a observar a representação. JOÃO – «Que discreta senhora! Havia de ser para a ler com mais sossego e regalar-se. Adiante, Sancho. E enquanto estava nesse serviço, quais foram os seus colóquios contigo? Que te perguntou
de mim? E tu que lhe respondeste? Acaba, conta-me tudo, não te fique no tinteiro nem um pontinho.» JOÃO PÊ – «Não me perguntou nada, eu é que lhe disse como Vossa Mercê ficava para a servir, fazendo penitência, nu da cinta para cima, metido entre estas serras como um selvagem, dormindo no chão, sem comer pão em toalhas, sem pentear as barbas, chorando e maldizendo a sua fortuna.» JOÃO – «Lá nisso de maldizer eu a minha fortuna, enganaste-te, antes a bendigo, e bendirei todos os dias da minha vida, por me ter feito digno de merecer tão alta senhora como é Dulcineia del Toboso.» João faz uma espécie de pirueta que acaba numa vénia a João Pê. JOÃO PÊ – Obrigado, hildalgo. Quando queres és um gajo do caraças. JOÃO – E quando não quero? JOÃO PÊ – Quando não queres és um morcão. Helena começa a cantarolar. Primeiro procura afinar. Sai do carro e tapa os olhos com a mão em pala para se defender da intensa luminosidade. Depois canta a seguinte canção (poema de José Gomes Ferreira, musicado por Manuel Freire). A noite cai durante o cantar de Helena. HELENA – Dulcineia, Dulcineia, volte ao que era: uma plebeia sem primavera Volte aos redis, coberta de chagas − sem espuma nem gomis nem brilho de adagas. Volte ao que foi, pois ainda conserva um cheirinho a boi, um cheirinho a erva... Volte a apanhar pinhas e bosta para os fornos. E a tanger cabrinhas com flores nos cornos. Volte a andar de gatas como os outros bichos... E esqueça as serenatas aos seus caprichos. Esqueça o castelo onde os donzéis se batiam em duelo à século XVI... E volte à aldeia da sua labuta.
Dulcineia, Dulcineia, deixe de ser Ideia e torne-se a carne e a alma da nova luta. JOÃO fitando-a – Dulcineia, Dulcineia... não eras tu que dizias que as raízes são para se cortar? HELENA baixinho – Pois... Não consigo cortar as raízes. Porque elas me faltam. 15 De novo dentro do veículo. Os três de óculos escuros porque a luz da manhã lhes fere os olhos. O pano de fundo sonoro não corresponde à situação vivida: ruído de velhas carroças a chiar, de passarocos a chilrear, de galinhas a cacarejar, de vacas a mugir. Uma insuportável sinfonia bucólico-aldeã. Durante algum tempo, os viajantes mantêm-se silenciosos, como que intimamente corroídos por aqueles ruídos de outros tempos. JOÃO – Vamos a caminho de Tordesilhas. JOÃO PÊ – Estás a pensar a dividir o mundo ao meio? Olha que nós somos três... JOÃO – E que três!!! Três e irredutivelmente três. JOÃO PÊ – Three is a crowd. Is a crowd. Is a crowd. Is a crowd. (Cantarola o refrão do hit de Boy George.) Don't want no more of the crying game. Don't want no more of the crying game. Don't want no more of the crying game. A sinfonia bucólico-aldeã prossegue. JOÃO – Afinal eu tinha razão. A viagem viajou-nos. As paisagens rolaram sobre os nossos nervos como tractores. As estradas fizeram as vezes de bandeiras de... de uma espécie de internacionalismo utópico. JOÃO PÊ – Passámos ao largo das cidades. As reais e as imaginárias. As distantes e as que estavam a dois passos. As imperiais e as provincianas. As negreiras. Berlim. Bremen. Bratislava. Bruxelas. Belfast. Budapeste. Bucareste. Bari. Bordéus. Bilbau. Barcelona... (Imitando os automóveis.) Bbbbbrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrr... Bbbbbrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrr... HELENA – Bragança. (Onomatopeia do frio.) BRRRRRRRRRR... JOÃO PÊ – Passámos ao largo das noites. JOÃO – Das noites não. Das noitadas. Pois foi. Que trio mais bem comportado.!!! (Pausa.) Bem, na verdade, a cena das noitadas já não me diz nada. Estou mais crescidinho. Deixei de ter medo do escuro. A sinfonia bucólico-aldeã prossegue. HELENA – Tordesilhas – Zamora. Zamora – Bragança. Bragança – Mirandela. Mirandela – Vila IRreal. Agora estamos a um pulinho da minha terra mãe. Embora... embora eu não me sinta menos órfã por isso. Permanecem calados por uns instantes. JOÃO PÊ – Sabes (virado para João) de que é que eu gosto em ti? (João abana a cabeça.) Gosto de tu já teres crescido tudo. A teu lado, sinto-me com oito... oito anos anos e meio. Sabes (virado para Helena) de que é que eu gosto em ti? Gosto de tu ainda estares a crescer. Muito devagarinho. A teu lado sinto-me com oitenta e cinco anos. Nenhum dos parceiros aprecia particularmente o comentário de João Pê, mas ambos se quedam na expectativa.
JOÃO PÊ – É que eu... É que eu nem uma coisa nem outra. Não me importava de ser órfão como Moisés. Não me importava de ser vivido e bon vivant como o Casanova. Nem importa, nem adianta. De súbito, faz-se silêncio. JOÃO PÊ – O infantário, as fraldas, o levantar de madrugada, o ter de contar histórias para acalmar os putos e conseguir acordar eu mesmo, o não ter casa-carro-conta poupança – tudo isso me faz sentido. Quando me sinto a morrer de sono e lhes conto a história da Bruxa Catarina, linda de morrer, com muitas pausas e muito suspense para conseguir fechar os olhos entre duas frases, percebo bem, percebo melhor os tempos do teatro do que numa cena, digamos, convencional. Silêncio. JOÃO PÊ – Actor sim, mas não funcionário. A ter de cumprir horários, prefiro estar rodeado de um público que percebe melhor, digamos bem melhor do que a média, o que é o meu desejo de teatro. Silêncio. JOÃO PÊ – Pois, não sei me faço entender. Estes pensamentos chegam-me à cabeça como vapores. São vagos. Mas dão-me asas. Silêncio. JOÃO PÊ – Se não for lugar do jogo, do agora-já e não do talvez-logo, estou-me bem a cagar para o teatro. Silêncio. JOÃO PÊ – Eu não sou uma fortaleza. Tenho muitos bocados de mim por aí espalhados. Ainda não é tempo de colocar todas as peças no puzzle com uma imagem fixa a servir-me de guia. Ainda não é tempo de voltar. Silêncio. João pára o veículo numa berma. HELENA – Mas... JOÃO PÊ – Sim, Lenita...? HELENA – Mas nós estamos pertíssimo da fronteira. Vamos beber um café curto. Procurar a melhor posta da terra fria. Hem ? Com batatas a murro. E aquele sal grosso a estalar debaixo do dente. Dormir em lençóis lavados... e tu? JOÃO PÊ – Eu fico na próxima bomba e arrepio caminho. Regresso ao ponto de partida. À boleia. Ganhei-lhe gosto. E quando o meu amor se cansar dos algarves e dos engates, sabe que a minha porta está sempre aberta. Haverá umas seiscentas mil almas geladas em meu redor, que nos acham giríssimos e exóticos ma non troppo. João roda a chave na ignição e arranca. 16 Luz de poente. João e Helena sentados à chinês. Latas de refrigerantes, restos de sandes, copos de plástico. Fizeram um piquenique mas, visivelmente, não estão em maré de apetite. Helena, absorta, fita uma sande de queijo que encetou a medo como se olhasse para um objecto estranho não identificado.
JOÃO brincando com um lenço de seda que João Pê usava ao pescoço – Acaba a tua sande, Lenita. Silêncio. JOÃO – Cá para mim, o fim do mundo devia abrir o apetite. Enfim... logicamente. Silêncio rasgado pela passagem de um pesado. JOÃO – Enfim, ainda não é O fim do mundo. Infelizmente – ou não – os nossos mundos estão sempre a acabar. HELENA – Tenho dores de barriga. Tenho aquelas dores de barriga lancinantes que sentia na escola quando me julgava abandonada. A empregada era obrigada a levar-me para casa. A arrastarme. Porque enquanto não pusesse o pé em terreno familiar, era como se estivesse agrilhoada. Silêncio rasgado pela passagem de um pesado. HELENA – Nem sei como pedir-te desculpa. Estraguei-te a viagem. Estraguei-vos a viagem. Não podia imaginar que... que ele... JOÃO – Não tem nada a ver. Ele veio... não, não posso dizer que tenha vindo contrariado, mas veio... para me agradar. Para aderir à minha cena. Que doce aquele Pê, ainda assim... Mas a vida não é um palco. Não é um palco único. São muitos... muitos palcos giratórios. Silêncio rasgado pela passagem de um pesado. JOÃO – Além disso, a onda do teatro-jogo, do teatro-logo de que ele falou... parece-me que tem a ver com um... com um défice de infância. Quer dizer, tu e eu, cada um à sua maneira e no seu contexto, brincámos na rua. Tu sujando os vestidinhos numa velha carripana com os ciganos da vizinhança que rapinavam a cave da casa-mãe. Eu zarpando até à noite de Sevilha para me convencer de que o mundo não tem fim e o prazer não tem limites. Brincadeiras inocentes ou brincadeiras perigosas, não interessa. Interessa que inventámos ribaltas e bastidores fora do quadro de uma meninice burguesa... tás a ver? Silêncio rasgado pela passagem de um pesado. HELENA – Sim, acho que entendo. Só que a gente não vive de mitologias. Sejam elas pessoais ou colectivas. A partir de certa altura, não passam de um estorvo. Precisam, no mínimo, de ser esventradas e autopsiadas. Como as velhas e as novas ideologias. Silêncio rasgado pela passagem de um pesado. HELENA – A verdade do meu presente é que o meu pouso é numa cidade. Não brinco na rua e a rua não brinca comigo. Não fico pousada por muito tempo, gosto de pensar em mim como uma nómada, um ser em trânsito. Mas na verdade... Silêncio rasgado pela passagem de um pesado. HELENA – Uma pessoa está sempre a mentir a si mesma. São pequenas mentiras – inocentes ou perigosas como as tais brincadeiras – mas funcionam como uma armadura. As armaduras enferrujam, por muito frescas que as mentiras sejam. Quando as mentiras se organizam numa narrativa completa (ou quase) fabricam mitologias para uso próprio. E eu, à custa desse... desse processo – que é um «solitário andar por entre a gente», lá dizia o velho Luís Vaz – acabei por fazer do sentimento de culpa a minha loucura. Ou seja, acabei por me sentir a toda a hora culpada de um
delito sem nome. De um crime sem marcas a não ser o secreto arrependimento. Sem culpa formada, tás a ver? Silêncio rasgado pela passagem de um pesado. JOÃO grave mas cómico – Afinal nem Cinderela, nem Dulcineia. Eva. EVA. Música das esferas. 17 JOÃO PÊ à boleia. Numa estrada pouco frequentada. De vez em quando passa uma viatura e ele faz sinal. Na verdade, não parece muito apressado. Fala consigo mesmo, oscilando entre tonalidades, como se ensaiasse... JOÃO PÊ – Sei que estais a pensar em mim. Provavelmente estais a falar de mim. Possivelmente a cortar-me na casaca. (Pausa.) Não... não estais. Estais a falar de nós. E mal a palavra NÓS se insinua e, depois, se profere, ferindo os egos até ao osso, há um transbordar. Um abuso. Um abuso consentido. Pois se nenhum eu cabe no mim onde há muitos eus a rabear, menos cabe na decência do nós. Do nós viajante. Ou melhor, do nós que, por isso mesmo viaja. Espalhando-se ao comprido e lançando antenas. Buscando comprimentos de onda. Aproxima-se uma viatura. João Pê enfia as alças da mochila e pede boleia, esticando o dedo polegar. O veículo passa ruidosamente, mas não o apanha. JOÃO PÊ – Obrigado por me fazerdes existir. Esta segunda pessoa do plural é bonita, não é, meu amor? Soa ao Trás-os-Montes da nossa Lenita. A estrada está a aumentar o meu vocabulário e os meus horizontes. O Pê cospe gramática pela boca. Até já se nota. Querias tu que um rapaz moderno não fosse bué da fixe e bué da limitado em sintonia com os seus pares? Nem parece teu, ó meu. És tu, príncipe dos Algarves, grande baluarte da vida mundana que apontas a dedo quando me torno camaleão pela língua, digamos franca, com que me exprimo? Ganda boi, aí magoaste-me à séria. Em frente a terceiras pessoas para te sentires o primeiro do singular e eu me sentir o último do plural. Essa de humilhar pelas falas como quem mede o homem pelo falo ficou-me... atravessada na garganta. Passo a expressão. Aproxima-se uma viatura. João Pê enfia as alças da mochila e pede boleia, esticando o dedo polegar. O veículo passa ruidosamente, mas não o apanha. JOÃO PÊ – Mas obrigada por me fazerdes existir, irmão, irmã. Tão densamente. Pelas palavras e por o que elas subentendem. Quando estava à vossa beira, ao pé de vós, tornava-me inexistente. Sim, sim, a existência passou-me a ser agora proporcional ao afastamento. É a doença da saudade e a cura pela saudade. Curioso mas muito concreto. Não é que estou tornando mais português a cada quilómetro que me afasto do jardim à beira-mar chamuscado? Os meus poros transpiram a cinza de mil incêndios. Levo às costas o quinto império, a nossa quinta parte da Península Ibérica... Pouco maior do que uma quinta. Quase não me pesa. Aproxima-se uma viatura. João Pê enfia as alças da mochila e pede boleia, esticando o dedo polegar. O veículo passa ruidosamente, trava, pára – ESCURO - e leva-o. 18 O escuro prolonga-se. Ouvem-se no ruídos de motor de um automóvel em andamento. O motor sofre se alguma avaria grave. O carro abranda. Os ruídos aumentam. O carro acaba por parar. Abre-se uma porta. E depois outra. João e Helena saem do veículo.
JOÃO – O Pê lançou-me uma praga. HELENA – Não sejas parvo. JOÃO – Capaz disso é ele!!! HELENA – Achas que é grave? JOÃO – Cheira-me a esturro. A junta da colaça... talvez. HELENA – E... JOÃO – O navio afundou-se antes de chegar à praia. HELENA – Ó pá... Estamos a quê??? Dois quilómetros da fronteira? JOÃO – Talvez um bocadinho mais. Não confio em tabuletas espanholas. HELENA – Talvez um bocadinho menos... JOÃO – Em todo o caso... HELENA – Em todo o caso, podemos ir a pé. Está uma noite linda. JOÃO – E a tralha? HELENA – É pouca, a nossa tralha. E o dia não tarda a nascer. Vamos chegar a Portugal ao mesmo tempo que o sol. JOÃO – E depois? HELENA – Depois do exercício físico... saudável, muito saudável, sobretudo para a mona... vamos à boleia até Bragança. Tomar um café curto ao Flórida. JOÃO – Mas antes... Antes um galão. A ferver. E um bolo de arroz. A acompanhar. HELENA – Uma torrada de pão escuro. JOÃO – Que cena! HELENA – Não gostas de imprevistos? JOÃO – Ggggosto. Quer dizer, as avarias dos popós não são os que eu prefiro. HELENA – Antes o popó do que tu papá. JOÃO – Olha-me a gaja... HELENA – A galinha. JOÃO – Saiu-me tudo menos choca... É uma franga de choque. HELENA – Não vamos chorar por um Rocinante de metal... JOÃO – Não. Não vamos. HELENA – Atão 'bora lá. Ruído de passos na gravilha. A conversa vai-se tornando indistinta. JOÃO – Com o sol no encalço. HELENA – E a luz a ferrar-nos as canelas. JOÃO – A estrelas a estalar debaixo dos sapatos. HELENA – A lua a entornar leite nos poços. JOÃO – Com pássaros a chamar pela claridade. HELENA – E as moiras a voltar às suas tocas. Nasce o sol. Mais redentor do que nunca, ilumina um palco vazio. FIM 6 de Dezembro de 2013