NÚMEROS REDONDOS NÚMEROS PARABÓLICOS Muitos se queixam de que as palavras dos sábios mais não sejam do que figuras, inutilizáveis na vida quotidiana, a única que temos todavia. Quando o sábio diz: «Passa» não significa que devemos passar para o outro lado, coisa que até poderíamos fazer se o resultado valesse a pena; está a falar de algum além lendário, de algo que nós não conhecemos e que ele próprio não é capaz de designar com mais rigor, de algo portanto que de nada nos serve aqui. Todas estas figuras, no fundo, só querem dizer que o inacessível é inacessível; e isso já nós sabíamos. Ora, aquilo com que nos preocupamos todos os dias vem de coisas bem diferentes. E nessa altura, alguém disse: — Porque é que vos defendeis? Se vos submetêsseis às figuras, tornar-vos-íeis vós próprios figuras e assim ficaríeis livres das preocupações quotidianas. Outro disse: — Aposto que isso é também uma figura. O primeiro disse: — Ganhaste. O segundo disse: — Sim, mas infelizmente só ganhei no plano das figuras. O primeiro disse: — Não, no da realidade, no das figuras perdeste. F. KAFKA, das figuras (Dada a natureza do texto e a pouca fidelidade das traduções disponíveis, optámos por uma versão muito literal procurando dar conta da originalidade dos conceitos propostos por Kafka, em detrimento porventura do equilíbrio formal...)
1. O FORA DO TEMPO Todo o desenvolvimento da narratividade cinematográfica consistiu em ocultar a estrutura de «conto moral» inerente a todas as «histórias» relatadas pelos filmes — pois a duração limitada de um filme opõe-se à complexidade romanesca ou ao fôlego épico —: A estética realista situa a fábula num tempo fictício mas datado, o cinema ignora a indeterminação temporal do «era uma vez». Por isso, o filme de Chen Kaige A VIDA POR UMA CORDA surpreende imediatamente pela sua estrutura de parábola: já tínhamos perdido o hábito de as decifrar. 2. O FORA DO LUGAR A cena inicial desenrola-se num espaço indefinido, nocturno, que corresponde à ausência de referências espaciais dos dois protagonistas: dois cegos. Mais tarde, na planície desértica, o templo, a cidade funcionam como arquétipos, enquanto o albergue e a cascata representam