Não há brincar sem fogo

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NÃO HÁ BRINCAR SEM FOGO Foram precisos os estragos da estética realista para nos fazer esquecer que a grande tradição do teatro é tomar-se a si próprio como objecto diegético. Hamlet continua a ser o arquétipo dessa postura reflexiva, mas todo o teatro clássico gira à volta da necessidade de «desempenhar um papel» para resolver uma situação. Esta «mise en abyme» que parece fazer parte da essência do espectáculo não é gratuita: o teatro, que durante muito tempo reivindicou um papel pedagógico — mostrar os defeitos duma sociedade era uma forma de contribuir para a reformar; cf. as declarações de Molière —, não pode atingir o seu objectivo de consciencialização enganando o espectador com uma «ilusão realista». O espectáculo só é eficaz se tiver noção dos seus limites e se partilhar essa lucidez com o espectador. O cinema, pelo contrário, levou a ilusão até ao ponto de fazer esquecer ao espectador que as fitas são ficções. Um filme como HOMICIDE de David Mamet desmonta o funcionamento ficcional através de uma sábia encenação dos mecanismos projectivos que permitem ao espectador aderir à ficção e simultaneamente dos códigos que a regem e lhe conferem um papel social de manutenção da ordem estabelecida. David Mamet vem do teatro. Todos os seus filmes se constroem em torno de personagens que, a dado momento, são forçados a abandonar o seu papel social, a pisar o risco. A «outra vida» parece realizar os desejos dessas personagens — por vezes leva-as a descobri-los, corno acontece com a psiquiatra de HOUSE OF GAMES — ou, pelo menos, trazer uma resposta às suas interrogações, preencher uma lacuna interior — a identidade em HOMICIDE. Em todos os seus filmes, as personagens enveredam pela via da infracção por causa de uma «culpa» que porventura desejam redimir, muito embora saibam que não podem apagá-la — o mafioso de THINGS CHANGE e o polícia de HOMICIDE são postos em quarentena. Ao representarem um papel, ao penetrarem no tal «outro mundo», as personagens julgam descobrir a sua verdadeira personalidade, o seu verdadeiro caminho. HOUSE OF GAMES, com a sua encenação muito estilizada, desenrolava-se como uma golpada em espiral em que, a cada etapa narrativa, a complexidade aumentava um grau, em que cada um enganava o outro até esse jogo vertiginoso desembocar na perda de controlo dos sentimentos e dos impulsos — a psiquiatra pretendia estudar o «jogo compulsivo» —, logo a demonstração, que parecia uma farsa inofensiva, do género THE STING, acabava numa viagem sem regresso — a psiquiatra intrujada matava voluntariamente aquele a quem tinha pedido para ser iniciada na arte de enganar, mas ficava psicologicamente prisioneira do jogo, incapaz de resistir mesmo à benigna tentação cleptómana. Em relação a HOUSE OF GAMES, HOMICIDE representa um passo em frente na medida em que, por um lado, este tipo de construção permite agora a Mamet abordar assuntos tão graves — i. e. longe do simples «jogo» — como o racismo ou o terrorismo e suas ligações com a problemática da identidade, social e psicológica; por outro, a «lição» de HOUSE OF GAMES — a saber que a partir do momento em que há transgressão, o jogo deixa de ser impune e acarreta consequências para além da ficção projectiva — é aplicada à própria diegese, na manipulação da ficção imposta ao espectador que não coincide com a perspectiva do protagonista: embora no tocante aos resultados do inquérito em si — whodunit — o polícia se tenha enganado redondamente, as organizações neo-nazis ou terroristas que encontrou no decorrer da sua investigação são incontornavelmente denotadas pelas imagens e correspondem aos momentos de clímax de violência do filme, por conseguinte serão memorizadas, apesar de aparentemente não terem ligação nenhuma com a «verdadeira» solução do crime; a força dessas imagens de choque afecta sobretudo o espectador que não aceita de bom grado ter sido ludibriado, ainda que por mera solidariedade projectiva com a personagem principal. Todavia a segunda dimensão vai mais longe porque a escolha dum género codificado — o filme político-policial à Costa-Gavras —, e respectiva desmontagem através do jogo de ilusões, permite focar o fundo da ideologia na qual assenta toda a codificação, a saber que a função e a situação criam a identidade. Ora a conclusão do filme é justamente que a instituição, enquanto estrutura social, não cria essa identidade e, mais ainda, que a «raça» ou o empenhamento político também não definem identidade nenhuma; com efeito, o indivíduo é obrigado a renunciar à identidade para conseguir integrar-se. Essa identidade implicaria que a acção correspondesse ao sentido que quem age lhe atribui; ora a atitude sistematicamente «heróica» do polícia é suicidária, a sua capacidade de


convencer é manipulada por estratégias que lhe escapam e, mesmo quando muda de campo e passa para o «outro lado», os seus actos são condicionados — como os «reflexos» — e arrastam-no para uma armadilha cuidadosamente programada. Em HOUSE OF GAMES, a psiquiatra quase pedia para cair na armadilha, ao pretender passar duma posição de «voyeur» para uma participação activa; em THINGS CHANGE, o mafioso despoletava involuntariamente o mecanismo da armadilha através do não-dito do seu discurso — na cena em que apresentava o seu «protegido» ao colega; em HOMICIDE, Mamet desmonta o mecanismo de projecção — que engendra uma ilusão que só se revela armadilha quando o protagonista se apercebe do desfasamento entre o seu comportamento condicionado e o papel que julgava desempenhar — mostrando que a palavra cria uma «história», veicula uma série de representações através das quais a realidade se deforma, como através dum prisma, como através da objectiva duma câmara, para se adaptar à ficção que o protagonista elabora. A palavra «judeu» surge desde a primeira cena como um insulto e activa o mecanismo de defesa «ficcional». As palavras mudam de sentido conforme a ideologia — ou melhor conforme os códigos — do grupo no qual se enunciam; era já o caso da «família» em THINGS CHANGE. Além disso, certos objectos, certas acções têm um valor estritamente simbólico, logo absoluto — a moedinha siciliana em THINGS CHANGE; em HOMICIDE, a destruição da lista (apesar de o polícia não hesitar em cometer um acto de puro terrorismo). Portanto, as palavras, os gestos, mudam de sentido e de valor conforme a ficção do grupo onde se inserem. O perigo não reside na arma — que não passa dum instrumento — mas no distintivo do polícia. E a escolha que resta ao indivíduo reduz-se a optar por um grupo particular do qual adopta a ficção, sendo certo que nenhuma ficção de grupo pode coincidir totalmente com a ficção — a identidade — do indivíduo. Donde a necessidade, para as personagens de Mamet, de mudar radicalmente de código, a partir do momento em que as contradições entre a sua identidade individual e a do grupo se revelam — muitas vezes por simples acaso, outras pelo jogo de tensões e rivalidades no seio do grupo. A ilusão da identidade social perde-se para sempre, a transgressão leva à exclusão. O erro dos protagonistas é sempre devido a um conhecimento incompleto dos códigos do novo grupo em que tentam integrar-se. Em HOMICIDE, este desconhecimento gira em torno duma marca de alimento para pombos — e a própria palavra «pigeon» é programática pelo seu duplo sentido — marca essa que, pela diferença duma simples letra, conduz o polícia à descoberta duma história — uma ficção — paralela: de «GROPAZT» desliza-se para GROPAZ, e das inofensivas sementes para pássaros passa-se para os inquietantes grupos neo-nazis. A partir da altura em que um objecto, uma palavra, não entra na ficção pré-estabelecida, que a infinita variedade do real surge como um enigma, a decifragem desse elemento só pode ser ficcional. Ora, a criação de uma ficção activa todas as pulsões e angústias recalcadas do indivíduo, donde a impossibilidade de dominar o curso dos acontecimentos cujo significado é obscuro, na medida em que intervêm na interpretação os dados mais ocultos da história individual (sem saída) e do grupo; são esses dados que modelam os comportamentos contraditórios: mentira dos polícias, terrorismo dos judeus, etc. A grande qualidade dos filmes de Mamet reside no desfasamento entre a ficção diegética — forjada pelas personagens — e a ficção induzida pelo espectador, embora o processo de génese e os indícios que lhe servem de base sejam os mesmos: assim, THINGS CHANGE desmontava subtilmente os sonhos de fortuna ilimitada e HOMICIDE mostra os fundamentos bem reais da paranóia da comunidade judaica. Não só o espectador é obrigado a pôr em causa a sua própria projecção do enredo do filme — uma vez que, tal como o protagonista, foi induzido em erro —, mas também a manipulação de que é alvo, enquanto espectador de qualquer filme, ou até a sua integração num grupo — e os recalcamentos que essa inserção implica — na vida vivida fora da sala escura. S.


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