Não há realidade que não simbólica

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NÃO HÁ REALIDADE QUE NÃO SIMBÓLICA Roberto Rossellini, na segunda fase da sua obra — a primeira é hoje praticamente desconhecida, tendo ficado ligada às instâncias do poder fascista; a terceira corresponde a uma postura decididamente didáctica —, soube forjar um instrumento único, no qual o "realismo" — lugar na imagem e papel na ficção dos cenários "reais", da neblina do Pó (última parte de Paísà) e das ruínas de Berlim (Alemanha ano zero – Germania anno zero) aos fumos do vulcão (Stromboli) e à luminosidade que redime as paredes leprosas de Nápoles (Viaggio in Italia) — de lugares e tempos escolhidos a dedo se encontra ao serviço exclusivo do símbolo. O símbolo adquire neles não somente um valor existencial e pragmático da ordem da experiência quotidiana, mas também lá ganha a riqueza das contradições inerentes à vida. Assim, em Alemanha ano zero, cada situação — encarnada por uma personagem — se revela simbólica: do pai, enfraquecido pela doença, arrependido de não ter tido coragem de se opor ao Terceiro Reich, ao irmão, antigo soldado da Wermacht que doravante se esconde para escapar a um eventual castigo dos crimes que não assume, passando pela criança em busca de uma regra moral qualquer para sobreviver no meio dos escombros, e pela comunidade, constantemente obrigada a fazer batota, entre a manutenção de uma fachada moral intacta, a nostalgia da ordem hitleriana e a necessidade pragmática de sobreviver graças ao mercado negro e a tráficos diversos. Todas as contradições objectivas da Alemanha vencida estão representadas. O realismo reside na arte de Rossellini de os compreender todos, porque todos são cobardes e fracos, logo humanos. Se, como André Bazin muito bem observou, a criança é tão inquietante, impossível suporte de uma projecção egocêntrica por parte do espectador adulto, é porque é única personagem que vai até ao fim das suas convicções, que revive à sua escala a monstruosidade hitleriana (mata o pai, não por falta de amor, mas por aplicação escrupulosa da lei de eliminação dos fracos) e assume a culpa daí advinda. Edmund nunca mente, obedece, comporta-se como um bom filho, um bom irmão e um bom aluno, e descobre-se monstro. Só é opaco para o espectador porque este último se recusa a partilhar os seus sentimentos — ele nunca é revoltado, desconfiado, implorante; é coerente: culpado, suicida-se —, porém os seus sentimentos não são impenetráveis. Aliás, a criança não desempenha o papel principal no filme, já que o verdadeiro protagonista são as ruínas. E aqui, mais uma vez, o espectador, que mora em casas num estado normal de conservação, não pode colar-se a essa imagem de fim de civilização reservada às antiguidades. O cenário onde a realidade ultrapassa as mais loucas fantasias românticas é a cristalização demasiado real — ou seja não apenas simbólica — da situação que engloba e condiciona todas as personagens humanas e as suas contradições. Deus é para Rossellini a única solução na medida em que o homem se caracteriza justamente pela fraqueza. No meio das ruínas, milagrosamente intacto, faz-se ouvir o apelo do órgão que Edmund não saberá interpretar, pois só pode reforçar o seu sentimento de culpa à vista do carro funerário que transporta o pai. Sem Deus, o homem está condenado. Ao escolher para personagem de destaque esta criança-modelo, que rouba e mata por obediência, para se "portar bem", Rossellini confrontanos com os adultos que o rodeiam e obriga-nos a interrogar-nos, neste décor de apocalipse, acerca do mundo e dos valores que deixamos em herança, onde os pequenos ódios mesquinhos, as cobardias quotidianas sobrevivem aos maiores desastres. Porque Edmund é condenado pela sua própria inocência: todos se aproveitam dele, do cliente ao professor pedófilo, passando pelos adolescentes ladrões. Essa inocência arrasta-o para o parricídio e condena o mundo onde ele veio à luz: em 1945, o Cristo seria um assassino (como em 1951 seria, encarnado por Ingrid Bergman em Europa 51, um louco). A lucidez — Rossellini é o mais lúcido dos cineastas — não é incompatível com a fé, mas a fé confunde-se com o desespero. Saguenail


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