Não ver para crer

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NÃO VER PARA CRER Há filmes que, considerados na perspectiva do percurso que a obra dum autor constitui, surgem como ponto de chegada, como momento de recapitulação em que se põem os pontos nos is e se vira uma página. Era o caso de ENTREVISTA de Fellini (cf. o nosso artigo «A resposta às perguntas» in «A Grande Ilusão» nº 6), como também é o caso de CRIMES E ESCAPADELAS para W. Allen. Desde sempre os filmes de Woody Allen apareceram minados de interrogações sobre os motivos dos nossos actos, os motores do amor e a natureza das forças que regem o mundo (ou pelo menos a nossa consciência) e à qual chamamos deus. Mas eram interrogações dispersas — a narração de W. Allen caracteriza-se a maioria das vezes pela descontinuidade — e metaforizadas: a necessidade de a imagem do eu coincidir com o que a rodeia em ZELIG, a presença no céu em ŒDIPUS WRECKS, a idealização do «outro» em a ROSA PÚRPURA DO CAIRO, etc. Desta feita encontramo-las reunidas e abordadas frontalmente. O pessimismo de W. Allen despe-se do humor e aparece como uma constatação: a «lei» Kantiana acima ou dentro de nós não existe, não passa de vestígio duma educação desfasada da ferocidade do mundo — donde a importância da cena da «visão» dos parentes —; a estupidez triunfante acaba por obter não só a submissão como o amor de quem se quer integrar nesse mundo de concorrência. Em suma, o valor moral desapareceu na medida em que desapareceram os valores abstractos. Assim, o filme divide-se em duas aventuras paralelas que só se cruzam quando se revelam equivalentes: para salvaguardar uma família e uma carreira, para prosseguir uma carreira e fundar uma família, duas personagens vão cientemente transgredir os seus próprios códigos. Tal transgressão é possível na medida em que não atinge a imagem de si que cada qual constrói e que o ambiente social e familiar lhe devolve. Aqueles que poderiam alterar essa imagem têm de ser empurrados para o nada (a amante) ou para a sua insignificância (a personagem desempenhada por W. Allen). Todo o filme se organiza em torno das modalidades do ver e do ser visto, do mostrar e do mostrar-se. As personagens situam-se numa escala dentro da qual valores morais se ordenam em função duma estranha dialéctica da visão: do oftalmologista assassino que é obrigado a ocultar uma parte da sua vida ao produtor que da cidade vê tão-somente os cenários convencionais e se limita a utilizá-los para se mostrar, passando pelo realizador cujas montagens nunca serão vistas e que não sabe ver o que se passa à sua volta — o egocentrismo leva-o a misturar a atitude crítica e o ciúme (o produtor é um presunçoso mas não chega a ser um tirano) e a tomar como uma afronta pessoal o suicídio do pensador que andava a filmar —, e, por fim, o rabino que prescinde da realidade visível do mundo graças à profissão de fé. Trata-se portanto duma escala em que ver se opõe a viver e cujos vários graus correspondem a diversos níveis de cegueira. Por outro lado, se bem que o filme obedeça, do ponto de vista narrativo, a uma construção sem falha — a passagem de uma personagem para outra retoma a estrutura de ANA E AS SUAS IRMÃS com uma maior coerência, e as discussões familiares e conjugais parecem menos pesadas do que em INTERIORES, SETEMBRO ou UMA OUTRA MULHER posto que todas se polarizam em torno duma única interrogação ética capital — não deixa de apresentar curiosos desleixos —, a própria figura desempenhada por W. Allen. É porque o corolário dum discurso em que a lucidez anula ora as razões morais ora as razões de viver, em que a felicidade é proporcional à cegueira, incide directamente sobre o estatuto do cinema — mais presente ainda do que em todos os seus filmes anteriores (cf. o nosso artigo «W. Allen teórico de cinema» in «A Grande Ilusão» nº 4), da sala de projecção à sala de montagem —: o oftalmologista conta a sua história como uma sinopse de filme. Logo o cinema só permite viver na medida em que «irrealiza», em que contribui para a cegueira necessária; enquanto imagem fiel, memória, opõe-se à vida. Claro está que W. Allen escolheu a lucidez ao afirmar que, apesar da inexistência de deus, um filme deve responder a uma imperiosa necessidade moral. S.


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