NÓS, TU, EU Nascido no país supostamente mais central, mais neutro e mais «clean» da Europa, Alain Tanner tem vindo, ao longo da sua prolífica obra, a preocupar-se sobretudo com os comportamentos sócioemotivos que caracterizam uma certa apetência pela marginalidade. Pintada por Tanner, essa apetência parece partilhada (ou partilhável) por um número razoável de livres-amadores, livressonhadores e livres-pensadores. Os dispositivos narrativos de Tanner apelam para sombrias cumplicidades de geração e de classe mas, honra lhe seja feita, funcionaram «plenamente» até certa altura — quem não quer sentir-se interpelado pelas mitologias de fim de século? Quem nunca se sentiu tentado por uma inadaptação soft? Pedro Almodôvar, menos sisudo e mais agressivo (ou talvez não) apostou no mesmo tipo de investida e, dirigindo-se à geração seguinte, provou que a receita continua a resultar. Não é surpreendente que as ficções da sobrevivência na hostil selva urbana arrebatem um público que através delas sublima, sem grandes custos emocionais, um malestar que raramente chega a «mal de vivre». Neste quadro — cuja descrição não exclui um misto de simpatia e animosidade da nossa parte — os dois últimos filmes de Tanner, produzidos por Paulo Branco (UMA CHAMA NO MEU CORAÇÃO e A MULHER DE ROSE HILL) constituem uma derrapagem. Conquanto mantenha uma peculiar «leveza» na forma melancólica como trata as suas fábulas, o cineasta vira-se decididamente para temas mais perturbantes, assume visões mais pessoais, embrulha perguntas mais lancinantes e desembrulha respostas menos consensuais. A nova faceta da obra de Tanner valer-lhe-á provavelmente uma perda de velocidade em termos de carreira e de bilheteira, tanto mais que, do ponto de vista estético, o realizador parece não ter encontrado o tom e o tónus que a novidade da postura exige. Os dois filmes, superficialmente muito díspares, encenam um fascínio inesperado por um aspecto pouco glorioso do afecto feminino: a escravatura escolhida. Num mundo em dessexualização galopante, as personagens centrais de ambas as fitas, animadas indistintamente pela insegurança e pela paixão, procuram equilíbrio físico e mental em situações de dependência e de clausura no espaço doméstico. A problemática desenvolve-se em crescendos desconcertantes posto que a masculinidade do olhar se reinventa através dos fantasmas duma feminilidade considerada retrógrada e conotada com valores esvaziados. Tanner não renunciou portanto à abordagem da marginalidade, mas desta feita interessa-se por um sentir ancestral doravante privado de espaço social, i. e. objecto de violenta rejeição. São relatos obscenos, em que as heroínas exprimem a sua rebeldia como cadelas devoradas pelo cio, como cadelas em busca de dono, como cadelas a mostrarem a barriga. A questão da alteridade é virada ao avesso e denunciada enquanto jogo viciado. Mas a inquietação de Tanner está agora mais perto duma intransigência intelectual salutar e necessária ao imaginário europeu. Em nome duma coabitação fictícia, o nivelamento triunfa por toda a parte. O velho mundo lima as suas mais belas arestas para saudar o advento não do diverso mas do informe. Esperemos que as imagens consigam desfazer os nós cegos que já deram. R. G.