Descobrir a longa curta-metragem NEM PÁSSARO NEM PEIXE, primeira ficção de Solveig Nordlund realizada no contexto do pós-PREC e no âmbito das actividades da cooperativa Grupo Zero, é antes de mais fazer, voluntariamente ou a contra gosto, uma viagem nostálgica e amarga. Uma viagem a um tempo de pesadíssima ressaca, com as esperanças nascidas da revolução de Abril a esfarraparem-se dia após dia, e, força do perfume oblige, aos nichos de resistentes que, nesse negro quadro, continuaram por alguns anos a considerar as práticas colectivas um imperativo categórico e o questionamento das formas, nomeadamente narrativas, uma necessidade básica do artista engagé. Servido por um elenco e uma equipa técnica e artística de primeira água – da poetisa Luiza Neto Jorge no argumento a Acácio de Almeida na fotografia e Paola Porru no som, passando por Luís Miguel Cintra e Lia Gama como protagonistas e pelas participações de Robert Kramer e Glicínia Quartin – NEM PÁSSARO NEM PEIXE mergulha-nos num ambiente de aquário (explicita mas também indirectamente citado no filme, através do estúdio de televisão e dos ecrãs dentro ou fora de campo) onde no entanto as personagens são ao mesmo tempo peixes fora de água e pássaros de asas cortadas. Os actores do filme encarnam seres nem-nem, nem carne nem peixe, nem intensamente envolvidos com a tormenta da história, nem a ela indiferentes. Por isso dão consigo a falar sozinhos, como se verifica em vários momentos do filme, nomeadamente na cena do restaurante em que, após a saída de Luís Miguel Cintra, atolado no discurso de um sujeito que tece loas a um exemplo de «comunismo real», a câmara enquadra uma mulher que tagarela frente a uma cadeira vazia. E fala-se muito neste filme, está-se literalmente submerso pelo discurso, o que aliás é marca de certas grandes obras dos idos do terceiro quartel do século XX. Todavia, a par de raras cenas em que a erupção da palavra produz, de facto sentido – exemplo: Lia Gama traduzindo automaticamente as deixas de uma fita americana –, na maioria dos casos temos a impressão de estar perante uma espécie de palavra compulsiva, sem que se crie propriamente uma paisagem de palavra (como acontece em Gestos e Fragmentos). Goradas as ilusões de assistir e participar no amadurecimento do processo revolucionário – «eu estava lá...» –, as figuras de Solveig Nordlund são esfíngicas no seu desesperado desencanto (porventura, pelo menos em parte, à imagem da autora e da sua entourage), a tal ponto que, no desenlace do filme, a tensão do casal locutor/tradutora parece por um instante aliviar-se graças ao simples facto de... ter sido possível sossegar o filho asmático e insone. De resto, tanto a asma da criança como as alusões aos problemas ecológicos e também a insistente evocação de Lovecraft (o filme é dedicado a este escritor de ficção científica, um bocado na berra em setentas, para quem o ser humano é um alien divorciado do universo e irremediavelmente estranho à sua própria condição) apontam para a trágica despossessão de que o mal-estar das personagens é imagem e reflexo. Lia Gama diz a dada altura: «Já só consigo traduzir palavras»... Ora, se por um lado, a realizadora privilegia decididamente uma energia de rupturas – tanto ao nível da escolha da escala dos planos, como da sua inserção no tecido da montagem e até por vezes das opções estéticas de luz e enquadramento –, um pouco à maneira de um Godard (na época incontornável), mas de um Godard asténico e exangue, por outro o resultado (não sei se o projecto...) é um filme mortiço, percorrido por pequenos lampejos que logo se extinguem, com a voz bem timbrada de Robert Kramer a evocar outras referências ainda: a sua pessoa e obra militante, obviamente, experiências de valorização da voz off como Alphaville ou La Jetée, etc. No plano das ascendências e descendências, NEM PÁSSARO NEM PEIXE filia-se nos Brandos costumes de Seixas Santos (na altura companheiro de Solveig) e anuncia Ninguém duas vezes de Jorge Silva Melo (com quem Solveig tem vindo a manter colaboração). Atrevemo-nos a dizer que este é um filme de família, um filme com um ar de família, onde se fala contudo (e obsessivamente) de falta de ar. Por fim, talvez faça sentido sublinhar que a presença e a importância dada à criança – pequeno exilado aqui na terra, cativo de uma uterina e gélida barreira de vidro... – anunciam um dos filões mais férteis do cinema de Solveig Nordlund (a situação da infância, abordada de maneiras sempre radicais) e lembrar que a cineasta vai de seguida realizar um dos mais belos e comoventes filmes ancorados em Abril, Dina e Django (e aí já não se trata de gente «nem-nem», mas antes de um casal
«ao lado-à margem»), que está para o cinema português dos anos 80 como Bonnie em Clyde para o imaginário cinéfilo made em USA na década de 60. Saguenail e Regina Guimarães