Nem tanto ao céu nem tanto à terra

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NEM TANTO AO CÉU NEM TANTO À TERRA No seu primeiro filme Rencontre des Nuages et du Dragon, Lam Lê pretende mostrar o Vietnam vivendo em Paris e filmando o seu subúrbio. A ficção é a dum homem que retoca, transformando-as completamente no sentido duma idealização, fotografias dos mortos. Trata-se obviamente duma imagem de Lam Lê, vietnamita exilado, reinventando a sua cultura para dela não ser expropriado. O segundo filme, Poussière d'Empire, é simultaneamente mais complexo e mais didáctico, logo mais simplista: uma primeira parte sobre as forças culturais em confronto num Vietnam «do sempre» — o militar e a missionária versus o guarda das cinzas e o povo em armas dos subterrâneos; uma segunda parte, «realista», mostra os caminhos do exílio e, paralelamente, o amor a perder o seu objecto. O tecido de contradições e de preocupações de Lam Lê é tão rico que todas as suas «achegas» ao filme contribuem para o valorizar. Mas, ao mesmo tempo, relativizam o rigor da realização que compromissos de ordem vária relegaram para segundo plano. Lam Lê torna-se positivamente comunicativo quando fala das condições de fabrico, do «bricolage» subjacente às imagens. Estamos perante uma concepção e uma prática que se opõe às normas de fabrico industriais, ao modelo americano de cinema. A forma de expressão coincide com a procura das soluções expressivas. Em dois dias Lam Lê tentou informar-se sobre a situação do cinema português. As suas constatações têm a evidência da descoberta: por que razão é que os cineastas portugueses se refugiam em ficções baseadas em textos literários? Por que razão é que os cineastas portugueses querem fazer um cinema acima dos meios de que actualmente dispõem, mantendo-se sob a dependência (e a caução) do Estado — e não exploram técnicas mais baratas como a animação? Parece-nos, pese embora a nossa simpatia pela sua prática, que Lam Lê, no seu segundo filme multiplicou as concessões à ideia de grande público. O desejo que manifesta de trabalhar doravante em vídeo é também contraditório: por um lado, vontade de independência (condições de realização menos pesadas, grande latitude de «bricolage» a nível técnico...); por outro, renúncia a afrontar as normas dum espectáculo abafado pela sua própria desmedida e risco de ficar submetido a normas menos denunciadas, porque menos promovidas, mas nem por isso menos severas. Com efeito, já no primeiro filme se sente que Lam Lê está dividido entre os problemas práticos da criação de imagens (a que chamamos bricolage) e a vontade de controlar intelectualmente todos os dados destas imagens. É bem sucedido na medida em que a segunda preocupação não esconde a primeira. A dúvida começa a instalar-se — confortavelmente — a partir de Poussière d’Empire. S.


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