No future

Page 1

NO FUTURE «Pobre no meio dos pobres, agarro-me como eles a humilhantes esperanças e como eles luto para viver dia após dia. Mas na desoladora condição minha de deserdado possuo a mais exultante das possessões burguesas, o bem mais absoluto. Mas, se possuo a história ela também me possui; vivo na sua luz mas para que serve a sua luz?» A poesia de Pier Paola Pasolini sugere sempre o gesto de estender a mão a um potencial leitoramigo que, por não parecer hipócrita como o de Baudelaire, nem pode ser concebido como irmão — esse, Pasolini perdeu-o no sonho de uma morte sangrenta, bem antes de ele próprio ser imolado noutro altar de sacrifício — nem como alma-gémea — posto que o poeta postula a sua contraditória diferença como o grito que tudo engendra e condena. Estamos pois perante uma soma colossal de confidências que todavia nada têm a ver com um desabafo, moldadas que são ora como uma pessoalíssima anti-epopeia, ora como lugar privilegiado da crítica, num sentido a que poderíamos chamar poético-filosófico. Transbordante de amor e da descoberta do amor, esta última intemporal, o poeta quer-se e faz-se lírico, evoluindo num mundo pendular, vaivém incessante entre os arvoredos, as sendas e os torrões férteis duma Itália campestre e bárbara e os sublimes espaços cinzentos, caóticos e suburbanos duma Mátria romana. Pasolini ignora o exílio, inclusive o exílio de classe, na medida em que se vê como eterno adolescente ferido por uma tristeza solar, fisicamente consagrado à vida apesar de todos os dramas que a consciência política instala na sua parte maldita, vizinha de uma hipotética alma. Assim se explica que o poeta conjugue sabiamente (sem contudo abusar do saber-fazer) uma admirável sensibilidade de paisagista, desdobrado em trechos sensuais e retratos humanos (Esboços de filme? Esboços de esboços?) com uma interpretação fúnebre do mundo enquanto morada eleita do mito. Pasolini escreve, como todos os verdadeiros poetas, para os seus mortos, porque as lajes sempre ocultam túmulos vazios. Aos mortos devemos o campo vital e a própria ordenação do viver, ou seja, as duas categorias da consciência que justificam a inútil necessidade da História. Se Pasolini, numa terrível antevisão da sua morte trágica, se confessa deserdado do futuro, se lamenta não assistir ao contágio da sua revolta, é porque julga vislumbrar um mundo em que o homem será alienado da sua própria condição humana, da sua «religião», da sua miséria em suma. Nesta perspectiva, Pasolini é sem dúvida um poeta revolucionário, isto é, afectado por interrogações trans-passionais, habitado por uma palavra que ele sabe profética como a de outros desaparecidos. Ou melhor, como diria Santo Agostinho, a daqueles que só foram quando acabaram de ser. E é no não-futuro do universo que emerge, logicamente, a explosiva perenidade da obra, uma poesia de percurso diametralmente oposta à modernaça «road-art». Como Pasolini, somos obrigados a desconfiar da arcaica perfídia da iniciação e a entregar-nos ao fora do tempo da paixão. «A vida é burburinho e as pessoas que nela se perdem, perdem-na sem arrependimento pois ela enche-lhes o coração...» R. G.


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.