O ALASTRAR DA METÁFORA I. A metáfora anti-rousseauista As obras-primas de Ernest Beaumont Schoedsack têm um cenário comum: a selva. Antes das selvas hollywoodianas de THE MOST DANGEROUS GAME e de KING KONG, ele fora rodar em 1927 na região do Sião um filme intitulado CHANG que à ficção mistura um olhar documental sobre a verdadeira selva. Em CHANG, esta última é ambígua, nem boa nem má, submetida a leis diferentes das que regem a sociedade humana, hostil por um lado, dominável por outro, apresentando-se o filme como um hino aos pioneiros que "turn the jungle's own against the jungle itself" (viram aquilo que pertence à selva contra a própria selva). Ela é antes de tudo reserva de forças que proíbem a vitória total do homem e tornam o combate homem/natureza eterno. O seu traço dominante é desde logo a ameaça — os animais selvagens que nela encontramos não podem ser "enfeitiçados" como nos quadros do Douanier Rousseau, mas somente domados ou mortos. Ela é o domínio do instinto, da luta pela sobrevivência. O pioneiro é obrigado construir a sua cabana sobre estacas e de se fechar todas as noites com os seus animais domésticos. Esse traço manter-se-á nos filmes hollywoodianos, com a agravante de que o bicho mais feroz passa a ser o homem, tanto mais perigoso quanto julga ter construído uma civilização com outras leis e quanto a selva que secretamente cultiva é o exacto oposto dos seus valores culturais de superfície — o Conde Zaroff é um anfitrião extremamente requintado. II. A metáfora freudiana No entanto, já em CHANG as ameaças mais terríveis são de ordem mítica: o tigre pode devorar as cabras, forçar o homem a procurar refúgio nas árvores, mas acabará por cair na armadilha e ser eliminado pela espingarda do homem. O adversário mais temível é "chang", que pode contrariar a benevolência dos deuses espezinhando o arrozal e contra quem as modestas defesas humanas — estacas, escada — nada podem. Mais: a "horda" de elefantes pertence à memória ancestral e os anciãos recusam-se a acreditar na sua existência actual até ao momento em que a aldeia é destruída — exactamente como os convidados se recusam a acreditar na literalidade das afirmações de Zaroff; estranhamente, em KING KONG, uma vez descoberta a ilha, os marinheiros já não se espantam ao lá encontrarem toda a espécie de monstros pré-históricos. A horda poderá, no fim de contas, ser dominada — provisoriamente — e os próprios elefantes participarão na reconstrução da aldeia. King Kong, perante a beleza, refreará os seus instintos selvagens e já só desejará protegê-la — a sua corrida nas ruas de Nova Iorque é motivada por um mal-entendido: o colosso julgou que os flashes dos jornalistas atacavam Ann Darrow. A ilha, bem antes de JURASSIC PARK, aparece como uma metáfora literal do inconsciente freudiano onde sobrevivem as criações mais monstruosas da pré-história e que um muro intransponível separa da pequena zona habitada, se não "civilizada", do território insular — cuja forma é um crânio. E, nesta leitura metafórica necessária, coloca-se a questão das forças que se traduzem em desejo amoroso: Jack Driscoll apresenta-se como um rival de King Kong junto de Ann Darrow, mas esse intrépido marinheiro confessa ter medo de Ann, i. e. adopta em relação a ela uma posição nitidamente infantil — King Kong surgindo atrás da janela do arranha-céus onde ambos têm o seu quarto simbolizaria todo o obscuro do desejo de Jack por Ann. III. A metáfora critica O genial achado de KING KONG consiste em romper o isolamento da selva e da ilha e trazer a criatura descoberta para as luzes da ribalta. A oposição de princípio entre selva e civilização cai imediatamente por terra: os arranha-céus são uma selva de betão que substitui visual e fisicamente árvores gigantescas e penhascos. Aliás, os espectadores do "show" não se deixam enganar e comentam exclamativos: "A kind of gorila? Ain't we got enough of those in New York?" ("Uma espécie de gorila? Será que não temos gorilas que cheguem em Nova Iorque?"). Na cidade King Kong está no seu elemento; só parece aterrorizador porque os citadinos haviam recalcado a sua existência. Aliás King Kong não é apelidado de "monstro" mas sim de "besta" — com todas as
conotações judaico-cristãs ligadas a este termo — e é apresentado como "a oitava maravilha do mundo", facto que denuncia a sua essência cultural, i. e. metafísica. A "beleza" é reconhecida pela "besta" quando, no início do filme, a cidade a reduzira à maior degradação; o olho do cineasta fora o único capaz de a reconhecer e de impedir a sua perdição. IV. A metáfora cinematográfica Carl Denham, o cineasta aventureiro, duplo evidente do próprio Schoedsack, soube imaginar King Kong antes de o encontrar. Soube fazer gritar Ann Darrow premonitoriamente durante os "screen tests" a bordo do barco (com base neste princípio, Brian de Palma construirá o seu BLOW OUT). Ao descobrir o King Kong, ainda pensa em filmar, mas é a "besta" que traz para a América e não o filme. Estamos perante o contrário de uma construção "en abyme": o macaco que vive intradiegeticamente é uma maquinaria cinematográfica, o filme ausente intradiegeticamente é o filme real. Já em CHANG, as tomadas de vista em picado aproximado da destruição da aldeia pelos elefantes estão tão expressivamente enquadradas que só podem remeter para a ficção — enquanto uma boa parte das imagens da selva, embora os aldeãos representem um papel, conserva uni carácter documental. Em KING KONG, observamos o contrário: os cenários e as trucagens são reconhecíveis como tais, mas a justeza e a evidência do seu valor simbólico ultrapassam a função ficcional que desempenham: o muro que cerca a "reserva" da ilha, King Kong erguido no topo do Empire State Building enxotando os aviões com um aceno, etc. King Kong tornou-se pois uma espécie de emblema heráldico da nossa civilização e da capacidade que o cinema tem de criar metáforas — é a esse título que Marco Ferreri fará aparecer o cadáver da figura mítica deitado na praia em SONHO DE MACACO. Depois da metáfora optimista, ainda que esse optimismo seja provisório, em CHANG, da metáfora pessimista em THE MOST DANGEROUS GAME, a selva e as suas criaturas ganham um valor ambíguo em KING KONG: ressurgimento das forças inconscientes recalcadas na civilização mas regresso da inocência primária num universo calculista — Carl Denham pretende, contra o seu costume, introduzir uma personagem feminina no seu filme por necessidade de se submeter ao gosto do público — mais próximo da selva do que o aspecto das fachadas poderia fazer crer. Saguenail