O anjo exterminador

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O LUGAR GRITANTE DA CULPA O interesse de Buñuel pela situação, real ou fantasmática/fantasiosa, daquilo que acontece no teatro – o lugar de ver e ser visto – é recorrente na sua extensa obra. Basta recordar sequências famosas como o jantar em que os convivas, atónitos, se descobrem em cima de um palco cénico (O CHARME DISCRETO DA BURGUESIA) ou, embora mais retorcidamente, esse outro jantar onde os comensais trocam impressões sentados em sanitas mas devem recorrer ao refúgio do WC quando pretendem ter acesso à refeição (O FANTASMA DA LIBERDADE), para reconhecer que, até aos seus últimos filmes, o cineasta se debruçou sobre a experiência e/ou o temor de viver sob a vigilância do olhar do(s) outro(s), explorando assim um terreno que indubitavelmente o situa no laboratório potencial do surrealismo, mas também a esse «algo ligado ao ver» - rejeitado (quase) liminarmente pelos surrealistas - que desde sempre estabelece pontes (nem sempre fáceis de atravessar...) entre o teatro e o cinema. Jean-Claude Carrière, colaborador de Buñuel a partir, salvo erro, do DIÁRIO DE UMA CRIADA DE QUARTO, recordava, em entrevista à revista «A Grande Ilusão» alguns aspectos extremamente reveladores do funcionamento dessa sua colaboração com um artista por quem nutria uma imensa admiração. A propósito da timidez e da modéstia do cineasta, dizia o célebre dramaturgista que a escrita de um argumento com Buñuel consistia tão-só em obrigá-lo a fazer, sem relutância, o filme que ele, efectivamente, queria fazer. Este traço do trabalho com um criador ganha particular relevo se atentarmos na descrição que Carrière fazia das rodagens buñuelianas a que assistiu. Segundo ele, o método de mise en scène do realizador espanhol era muito simples e contudo altamente sofisticado e eficaz: após uma instalação dos actores num décor já iluminado e com toda a equipa técnica a postes, Buñuel filmava e deixava correr a cena até os actores descarrilarem ou perderem o fôlego. Se, por um lado, esta metodologia produz um impacto importante na faceta da sequenciação e da montagem (que não é o objecto deste nosso breve artigo), por outro, reflecte-se na concepção da arte de dirigir (não dirigir, diria Manoel de Oliveira) actores. Ou seja: no plateau de Buñuel respirava-se o mesmo ar do tempo interior que inspira um ensaio teatral durante o qual as figuras em contracena conseguem progredir enquanto são capazes de ver o que pretendem dar a ver. O sistema de interrupção da tomada de vista em função da perda da presença da capacidade de representação confere aos filmes de Buñuel - e muito especialmente a este ANJO EXTERMINADOR - uma qualidade precisa de carnalidade distante e distanciada, dado que os actores, em confronto solitário com o dever de exibição/exposição, se obrigam a ser, inapelável e incomodamente, eles mesmos e mais de eles mesmos, descolando do verniz do seu corpo social e, por conseguinte, retirando ao espectador os mecanismos que lhe permitiriam confortos como a proximidade sem tormento ou a identificação sem reconhecimento do processo de projecção. No cinema de Buñuel, a determinação do espaço de representação - e o que está em jogo é o estabelecimento de uma ilha cortada do mundo, qualquer coisa como o lugar sadiano ou o sítio de Robinson Crusoe (figura sobre a qual ele realizou um filme significativo) - procura simultaneamente traçar um território artificial e um local de fechamento (este último parente do inferno sartriano) onde se está permanentemente confrontado com o olhar dos outros. Aquilo que nos parece de sobremaneira marcante é o modo como Buñuel adopta uma postura não-participativa: a sua câmara, que nunca é subjectiva, não procura furtar-se ao tal olhar dos outros; enquanto que as figuras, submetidas à devastação da exposição, tentam dissimular-se, a câmara nunca o faz, pelo que a imagem se torna escandalosa e perfeitamente legível. A pesada consequência desta opção estética é que, se no absoluto a personagem conseguisse escapar ao olhar dos outros (do ponto de vista intra-diegético) escondendo-se ou porventura saindo, ela não poderia ainda assim subtrair-se ao olhar da câmara. É essa orgânica de omnipresença e de total não-participação da câmara que faz dos filmes de Buñuel, nomeadamente O ANJO EXTERMINADOR, objectos implacáveis. Derradeiro filme da fase mexicana (1962), O ANJO EXTERMINADOR baseia-se numa ficção anterior, do próprio realizador em parceria Luis Alcoriza, intitulada «Los naufragos de la calle de la providencia». O filme abre de resto com um plano onde se declina o nome dessa rua e, portanto, sob o signo de uma inscrição na moral cristã. Embora Buñuel tenha afirmado «A moral burguesa é, para


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