O ANO DE TODOS OS PERIGOS Para a sua quinta edição, o Festival de Tróia propunha aos amantes do cinema um projecto aliciante, nem tanto ao nível das «novidades» (das quais sempre se espera que nos surpreendam visto que, na maioria dos casos, se trata dum primeiro contacto com obras de cineastas desconhecidos entre nós) mas decerto no tocante ao lote «retrospectivo» do programa: Rossellini, Sembene Ousmane, Chen Kaige, Charles Chaplin, John Cassavetes, etc., para não falar no enigmático Colóquio sobre Cinema Português de 50 a 74. Nas restantes listas, uma forte presença do «Terceiro» Mundo. Mostrados estes trunfos, o Festival quase parecia resultar do feliz ressurgimento de uma certa cinefilia em vias de extinção: a que conjugava a vontade de se apropriar das formas do cinema-feito e do cinema-facto com o desejo de conhecer o cinema a fazer-se e o fazer do cinema. O Festival real (se é que quem teima em falar de cinema tem direito a empregar semelhante adjectivo), não sendo propriamente decepcionante, conseguiu baralhar as nossas expectativas. Viram-se excelentes filmes em Tróia, mas aproximadamente 50% deles foram projectados numa sala inqualificável. Cito o comentário eloquente dum inadvertido espectador a propósito do subtil AGOSTO de Jorge Silva Melo: «Eu não percebi nada. Nem sequer cheguei a entender se aquilo fazia parte a secção O Homem e a Natureza». Quase todos os Rossellini passaram assim. Em nome da decência, e porque os Festivais não se medem ao número de sessões e filmes, desistam daquele infame «estúdio». A despeito do amável acolhimento, duma relativa estabilidade da programação e — sobretudo — do total isolamento do local, conviveu-se pouco e menos se debateu. Os Colóquios foram mornos e estritamente formais, como se alguma inconfessável doença andasse a «vitimar» o(s) cinema(s) e não conviesse mexer nessas «peles» mortas com que eles se emplumam. Conquanto o Festival tenha contado com a participação de numerosos cineastas, críticos, jornalistas, individualidades, etc. (de Kirk Douglas a Manoel de Oliveira, passando por Marcel Martin e João Bénard da Costa), não se procurou (ou não se encontrou) uma modalidade de convívio em torno das experiências ou projectos de cada qual. A ausência da entidade «público» não é de espantar. É relativamente fácil pôr o cavalo em Tróia mas a verdade é que aquela urbanização não passa duma estância de turismo de praia. Não fica no caminho de ninguém nem para sítio nenhum. Ora, partindo do princípio (no limite admissível por razões fáceis de adivinhar mas longas de expor) que um Festival pode alvejar um número reduzido de participantes «qualificados», julgo possível conceber uma animação mais centrada nas obras divulgadas e no discurso sobre práticas e políticas das pessoas e entidades convidadas. Com eventuais prolongamentos pós-Festival noutros circuitos de exibição (paralelos ou não) mais acessíveis ao público que sem dúvida teria imenso prazer em descobrir filmes como A GRANDE PARADA (Chen Kaige), YAABA (Idrissa Ouedraogo), EL KALAA (Mohamed Chouik) ou LA BANDE DES QUATRE (Jacques Rivette), etc., para não falar de todas as reposições (ó quão raras e benvindas) de Rossellini, Chaplin e Cassavetes. O louvável certame de Tróia — nem mostra, nem mercado de filmes — não se desenrola numa atmosfera competitiva. Toda a gente sabe que o facto de uma fita ser premiada por um júri de Festival pode não ter rigorosamente nenhuma repercussão sobre a sua carreira comercial: muitas das vezes o produto é desdenhado pelos distribuidores, outras mesmo quando adquirido não chega a ser exibido. Um esboço de reflexão sobre a situação e o papel deste tipo de efemérides por parte de quem as organiza e/ou de quem as frequenta parece quase indispensável. Essa reflexão não deixaria de trazer a lume os casamentos e os divórcios que se anunciam no futuro próximo dos media: das muito afloradas questões da co-produção, da distribuição e da Televisão (o cão ladra e a caravana passa?) às menos inventadas alternativas de «união livre» com o público que afinal, algures, SOMOS... R. G.