Sobre «O Bobo», de Zé Álvaro, já escrevi e em várias circunstâncias. Que dizer hoje sem me repetir? Wittgenstein afirma que os filósofos respondem diacronicamente uns aos outros e constroem um diálogo infinito. O mesmo acontece com tudo o que constitui a «cultura», os poemas ecoam de época para época, os filmes também. Mas a história não se repete, aquilo que uma vez se cumpriu de modo trágico só se reproduzirá de modo cómico, o que foi vivido ou narrado no modo épico só voltará envolto nas roupagens debruadas a guizos da irrisão. Em 1963, entre «Le petit soldat» e «Pierrot le fou» que ambos tratam do tráfico de armas e da esperança de uma revolução próxima e de uma libertação dos povos, Godard roda o seu filme mais «clássico» (a sua única adaptação literária, na qual o romanesco psicológico é transformado numa construção trágica), assumidamente metacinematográfico: «Le mépris». Doze anos mais tarde, na urgência de uma revolução que efectivamente se cumpriu mas está exaurida, e na paciência forçada pela retenção do filme no laboratório, Zé Álvaro responde a Godard (referência de todos os cineastas portugueses da nova geração, de Seixas Santos a César Monteiro, passando por APV). Ao nível simbólico, reencontramos os mesmos lugares (o estúdio, o apartamento, e a beira mar, fazendo o Tejo, perante o qual se encara a hipótese de emigrar, ofício de oceano), mas sobretudo reencontramos a temática da traição (dos ideais como dos afectos). Um mesmo questionamento estético e formal dos mitos a fim de os manter vivos (o kitch do cenário de music-hall onde o drama histórico português é encenado responde às estátuas pintalgadas dos deuses e heróis gregos em Godard). Só que já não se trata de construir o lirismo de uma libertação futura mas sim de reconstituir (toda a narrativa do filme é apenas um flashback a partir da conversa entre Francisco e Rita na taberna, depois de o último acto, a morte de João, ter sido representado), simultaneamente de um modo comprometido (por dentro) e distanciado, as contradições de uma revolução falhada. Rita Portugal, de simbólico nome, é aquela que doravante rejeita as soluções tradicionais (emigrar), recusando-se, ao mesmo tempo, a participar na grande ilusão da pátria liberta encenada por par Francisco: o que agora está em causa é sobreviver ao fracasso dos grandes sonhos, o verdadeiro trabalho pode começar. Ela tem de gerir a filiação (não é inocente que Zé Álvaro atribua o papel do pai, João Portugal, ao pai real da actriz) e a memória (rodagem do adeus ao soldado nos décors de tela pintada e frente ao cenário do simbólico padrão dos «descobrimentos», quando a heroicidade revista se revela tão pirosa quanto lírica: o travelling que acompanha a corrida de Rita continua a ser, juntamente com o da cortina aberta para uma alvorada pintada sobre tela, um dos planos marcantes do filme). Ela é aquela que se mantém lúcida quando a amizade turva de Francisco para com João cega o primeiro (a cena da mansarda enquanto o pai se suicida é uma variação da «cena primordial», descrita por Freud, da descoberta do sexo parental): a cena, na cama, do acender e apagar do candeeiro, durante a qual se verbaliza a contradição política central de toda a revolução, apresenta-se-nos como a citação mais explícita do filme de Godard. Zé Álvaro conseguiu, em «O Bobo», entretecer as problemáticas do representado e do vivido, do histórico e do contemporâneo, do mítico e do sentimental, convidando a cada instante, à maneira de Brecht, o espectador a julgar os actos e os actores, à medida que vai colocando as peças do puzzle, sem nunca perder o fio à meada dos enredos múltiplos. Donde o aspecto inextricável e inesgotável do filme, dotado de uma riqueza raramente igualada na história do cinema (e não vou desenvolver aqui toda a reflexão paralela acerca das artes da representação e a construção en abyme graças à qual o cinema se apropria de todas as técnicas cénicas: trata-se de uma tentativa de filme «total»). Enfim, last but not least, Zé Álvaro propõe-nos a imagem mais radical do intelectual português (inesquecível Fernando Heitor): a do bobo da corte. Saguenail, 7 de Maio de 2012