O CINEASTA SEM REDE Fellini escolheu uma forma sui generis de estar no cinema ao instalar o seu trabalho numa brecha histórica do nosso sistema. Herdeiro e «inventor» duma prática de há muito dada como insustentável, tirando todo o partido dos anacronismos que tal prática implica, o cineasta conseguiu resistir aos ventos e marés das novos savoir-faire que as instâncias diplomáticas da produção europeia têm vindo a impor a um exército de autores «vencidos da vida». O cinema de Fellini rejeita a contradição entre intimidade e espectáculo, entre o olhar do aprendiz de si próprio e o olhar do outro que torna cada um inconfundível. As intenções de Fellini são contudo claramente provocatórias: ele embandeirou o beco escuro do neo-realismo e promoveu nesse seu berço estreito o carnaval da má consciência. É a Gioconda de Duchamp com um bigode nas ventas e urna legenda (LHOOQ) a dizer que lhe arde o rabo. Nesse sentido e sua obra é antes de mais memória fabricada e não tanto devedora do tesouro confessional como muitas vezes se tem sugerido. Penso na super-avó das VOZES DA LUA, na sua baudelairiana cabeleira, nos seus músculos lisos como âmbar que desdizem todas as anciãs possíveis, apesar da personagem meter o neto tresmalhado na cama com uma terna autoridade que não admite réplica. O traço distintivo da ficção felliniana que melhor contribui para produzir o simulacro de memória é a fragmentação. Neste aspecto, o criador mantém, com os padrões que modelam a escrita fílmica, uma relação de exemplar vanguardismo. Como em todos os textos romanescos decididamente modernos, a força dos motivos é centrífuga, a estruturação espácio-temporal ora inqualificável, ora imputável a uma inspiração onírica. Filmes sem centro, em que os protagonistas se des-hierarquizam, em que os narradores se exibem para logo se substituírem e se confundirem com as emoções que relatam e participarem nas peripécias da ficção, os momentos deste cinema impenitentemente exuberante e caudaloso são como excursões desorganizadas e, por isso mesmo, feitas de excepção. Fellini assume com rasgo a perda de candura e, por conseguinte, encena enormidades. Ainda no recente AS VOZES DA LUA, reincide em vários passos: confrontado com visões inexplicáveis, um clarinetista resolve pegar a morte pelos cornos e vai morar para uma gaveta do cemitério no fito de se ir habituando à futura condição de cadáver, no aconchego do túmulo recebe as refeições que a mulher lhe prepara, as visitas dos amigos fiéis, etc., i.e. prossegue sem sobressaltos a vida física e social. Todavia ., os efeitos mais contundentes são obtidos quando o realizador aposta no literal acontecer do impossível: ao perdernos no seu devaneio, o narrador ouve efectivamente os vozes vindas de alhures; a lua é realmente capturada com uma vulgar grua. O ecrã é assim entendido como espaço do chamamento verdadeiro (o espectador partilha a dimensão poética da alucinação sonora) e do desejo realizado (o público decifra que é lícito exigir a lua). Ora, a lua, enfim descida à terra, será adiante significativamente objecto de um acolhimento mediático que transforma o mistério acessível num grotesco talk-show. O imediatismo felliniano tinge-se quase sempre do desencanto secundário que é crisol da fantasia. No meio duma alvoraçada sequência de rua, o duplo do autor é interpelado por uma figura inquietante que discorre sobre a perfeição das máscaras, afirmando que o médico e o filho não passam de belas imitações de supostos médico e filho ideais. Não se trata, como é óbvio, da despropositada intrusão dum doente mental numa narrativa expressamente «desequilibrada» mas sim de um questionamento sobre o demasiado rigor com que filhos, médicos, etc., compõem os seus papéis (no cinema como na realidade). Por outro lado, será pertinente concluir que os loucos só não têm razão por se excluírem da razão que têm. O fascínio pelo universo circense não explica cabalmente estes coelhos que Fellini tira do chapéu, posto que o desarticular da ilusão não funciona como truque do discurso: embora o espectador não se sinta solidário da desconfiança do paranóico, o excesso de compenetração dos seres «normais» não deixa de o perturbar. Poluída pela inflação de imagens prontas-a-vestir de egos tirânicos, a imaginação rarefaz-se. O cinema de Fellini constrói-se como um hino aos muitos que nos fazem únicos, ao direito de cidadania de todos em todos. R. G.