O CINEMA ENQUANTO DIÁLOGO O caso de Paulo Rocha constitui sem dúvida o maior escândalo do cinema português: se Manoel de Oliveira conseguiu, graças ao reconhecimento no estrangeiro — pois ainda nos recordamos de uma época em que os seus defensores se contavam pelos dedos da mão; esta revista nasceu em parte duma vontade de afirmar a importância de Oliveira —, reunir as condições para rodar regularmente, Paulo Rocha, que é o único cineasta do país cujo talento e originalidade estética lhe sejam comparáveis, vê-se impedido de filmar. Não por falta de projectos — do «Naufrágio de Sepúlveda» a «A raiz do coração» passando pela continuação de MUDAR DE VIDA, que devia surgir com «Os olhos vermelhos», e as «Histórias do Douro» —, mas por recusa das cedências e por solidariedade para com outros cineastas nacionais — continua a ser presidente da Associação de Realizadores Portugueses. Portanto, ao ver que o IPACA fazia gala em chumbar-lhe os projectos, Paulo Rocha começou a rodar em vídeo - a sua primeira experiência foi uma peça de teatro sobre Wenceslau de Moraes, algo que lembra o avesso de A ILHA DOS AMORES: O SENHOR PORTUGAL EM TOKUSHIMA —, e a realizar programas de encomenda para a série francesa «Cinéastes de notre temps». Nesta empreitada, realizou duas obras que, esperamos, o público português poderá um dia ver: MANOEL DE OLIVEIRA O ARQUITECTO e SHOHEI IMAMURA. O princípio destas emissões é serem compostas de excertos de filmes dos cineastas dos quais se esboça o retrato — dimensão antológica — e de entrevistas — dimensão confessional. Ora a abordagem de Paulo Rocha, segundo estas duas perspectivas, revela-se original: por um lado, a selecção e a montagem dos excertos ordena-os num discurso coerente — e é assim que se encadeiam as cenas finais de A CAÇA (o mutilado) com a derradeira sequência de OS CANIBAIS (a roda dos porcos) -, por outro, a auto-encenação, tanto de Oliveira como de Imamura, emerge como uma ficção paralela, mimética das sequências que os realizadores haviam dirigido, mas das quais passam a tomar a cargo o aspecto biográfico do fantasma — Manoel de Oliveira criança, fugindo das tias por estar completamente nu, o episódio verídico que inspirou o projecto não-realizado de «Angélica»...; porém, o efeito consegue ser mais extraordinário ainda na cena inaudita em que Shohei Imamura, entre as mãos delicadas duma cabeleireira, relata um episódio particularmente cru da preparação da sua obra O PORNÓGRAFO (incidente reconstituído no próprio filme e que nos é mostrado em paralelo), e, ao fazê-lo, assume ao mesmo tempo o papel do pornógrafo descrito através da agressão/sedução exercida contra a cabeleireira e o papel de mestre que dá uma lição de encenação através do domínio total com que controla o desenrolar da acção (apesar de uma posição de aparente fraqueza dado que o vemos «à mercê» da dita cabeleireira a oficiar). Paulo Rocha procura estabelecer diálogos — diálogos na medida em que as aproximações efectuadas modificam cada um dos elementos entre um filme e outro, entre o realizador e a sua obra, entre o cineasta e o seu mundo — vemo-lo deambular com Manoel de Oliveira no Porto,