Como se situa o cinema na produção cultural? Será o cinema uma arte? Ou ocupa antes um outro espaço mais próprio à sua sobrevivência? Neste número, TEOREMA inicia uma discussão que por certo se irá prolongar.
O CINEMA NÃO É UMA ARTE Todo o discurso sobre o cinema parte dum postulado mais ou menos tacitamente aceite: o cinema é uma arte. A maioria dos críticos não se dá ao trabalho de o demonstrar: «Sessenta anos de cinema produziram um número suficiente de obras-primas para que se possa afirmar que o cinema é uma arte» 1. «O cinema não deixa de fazer parte da história da arte» 2. J. Mitry é um dos últimos críticos a ter tentado efectuar uma verdadeira demonstração mas viu-se obrigado a «considerá-lo como tal a priori» 3. As reflexões mais recentemente conduzidas — semiologia do cinema, abordagem psicanalítica, etc. — presumem este dado corno adquirido, determinando este o teor das conclusões: conceito de modernidade, selecção dos filmes segundo o critério da qualidade, etc. Os próprios historiadores do cinema adoptam padrões estéticos: «Fiquei surpreendido com a beleza e a novidade de autores menores e decepcionado com obrasprimas recomendadas» 4 De facto, é o estatuto de arte que justifica plenamente a existência da crítica: «A obra precisa da crítica, ou seja, dum olhar que a penetre»... ...« Sem a operação do crítico a obra corre o risco de permanecer invisível» 5. Ao promover o cinema, o crítico autopromove-se: «O crítico será um pequeno génio, o artista um grande génio, mas a natureza de ambos deve ser a mesma» 6. Esta tomada de posição revelou-se positiva enquanto factor de reconhecimento da importância do cinema, e, em menor escala, na medida em que tornou justificáveis certas reivindicações dos fabricantes face aos financiadores; mas de facto não se ajusta a nenhuma realidade, quer ao nível da produção, quer ao nível do consumo. Constitui apenas um critério de distinção — no sentido analisado por Pierre Bourdieu 7 — capaz de seriar o público; por último, contribui inegavelmente para uma morte próxima do cinema, imputável à sua insuficiente rentabilidade. Lembremos que o rótulo de arte não passava primitivamente dum slogan publicitário imaginado pelos irmãos Lafitte; para além de que o próprio conceito de arte, na actual acepção do termo, apesar de oriundo das filosofias da Antiguidade só se fixou — corno aliás o de literatura — dois séculos atrás. Não designa uma actividade mas sim uma função ideológica. O estatuto de arte é contraposto aos de espectáculo, de indústria, de distracção. Vulgarmente, distinguem-se os filmes de autor dos filmes comerciais, o que leva os críticos a excluir, do seu campo, no mínimo, 80% da produção. «Desde as origens do cinema, dificilmente se poderia contar mais do que uns cinquenta cineastas de quem se possa dizer que são — ou que foram — autores, criadores, estilistas em toda a acepção da palavra. Nem que fossem apenas vinte ou trinta são apesar de tudo esses que nos interessam — e só eles» 8. Julgamos todavia que a nossa paixão cinéfila eclodiu com a visão duma mão cheia de filmes francamente carentes das qualidades estéticas com letra grande, mas que modelaram a nossa representação do mundo e até o nosso comportamento. É nosso propósito aprofundar as pretensas taras do cinema e descobrir alguma razão mais condizente com as condições de produção que explique o «preferir» certos filmes a outros. Foi Astruc quem inicialmente opôs cinema-linguagem (funcionamento intelectual) a cinemaespectáculo (funcionamento emotivo). A noção de intelectualidade subjacente a Astruc corresponde à de raciocínio e opõe-se à de Eisenstein que é definida como interacção do efeito emotivo e do significado produzido.
O espectáculo, técnica do gesto, tem origem nas cerimónias religiosas, isto é, para a sociedade ocidental nas cerimónias cristãs, por um lado, e populares (de origem pagã), por outro. Altamente codificadas, exerciam estas uma função pedagógica de transmissão de mitos a um público analfabeto; baseavam-se na reiteração de figuras arquetípicas imediatamente identificáveis. É possível nelas detectar e avaliar uma função negativa de alienação e condicionamento — através da imposição de figuras míticas — e outra positiva posto que a sua economia emotiva assenta na participação activa do público que pode tirar proveito das representações propostas para a satisfação das suas reais necessidades — quando o público se torna produtor do espectáculo, o cenário abre-se ao mundo; a isto se chama revolução. No entanto, enquanto a Igreja nunca conseguiu proibir o espectáculo de cariz popular (cf. estudos de Bakhtine sobre o carnaval), o cinema encarna o aparecimento duma cultura de massas, distinta da cultura popular, na medida em que se afirma uma separação total entre produtores e consumidores, própria do poder burguês. Edgar Morin constrói o seu conceito de cultura de massas (in L'Esprit du Temps) a partir duma investigação sobre o cinema (Le cinéma ou l'homme imaginaire). A participação figurada do espectador no espectáculo cinematográfico — que lhe impõe imagens prontas-a-vestir — reproduz uma organização social em que a participação do cidadão é igualmente figurada. Enquanto espectáculo, o cinema implica uma recepção colectiva — que o distingue de outros meios de comunicação de massas, cuja recepção pode ser individual, apesar da mensagem ser idêntica para todos os receptores. A esta recepção colectiva corresponde um modo de produção colectivo. A noção de autor, ligada à aparição do conceito de arte no seu actual sentido, não nos parece aplicável às condições de realização dum filme. A este nível, a crítica aplica a todas as fitas um esquema de análise que só é válido para uma ínfima proporção de filmes que um único indivíduo escreve, encena, roda, sonoriza, e monta, Ora, o trabalho do realizador, dado como autor (cf. Mitry), na maioria dos casos compreende apenas aquilo que os críticos analisam: a diegese é da autoria do argumentista; as imagens são obra do realizador, do decorador, do director da fotografia e do operador. Aliás, identificamos mais facilmente um estilo de imagens correspondente a um estado de evolução das técnicas de iluminação em épocas diversas, do que o dum realizador que, na máquina hollywoodiana, devia ser bastante versátil. A promoção do papel do realizador — que é fruto dum modelo mais europeu do que americano, mas que os críticos dos Cahiers du Cinéma foram paradoxalmente colher no pós-guerra da produção hollywoodiana — reflecte frequentemente uma origem social diferente da dos técnicos; hoje em dia, curiosamente, observa-se, paralelamente à obrigatoriedade duma formação superior para os directores da fotografia, uma reabilitação deste ofício (as iluminações de Henri Alekan, Sacha Vierny, Nestor Almendros ou Pierre Lhomme passaram a ser objectos de estudo e critério de qualidade na escolha dos filmes). Os realizadores defendem obviamente o seu estatuto de artistas ainda que este não se ajuste ao perfil das suas práticas. Enquanto técnica do rasto, o cinema bebeu no cálice de todas as artes que o precederam e o rodeiam. Assume e retoma sobretudo uma função ideológica. As técnicas do rasto (literatura, pintura) fixam os modos de expressão que pertenceram às técnicas do gesto (o teatro escrito provém da mímica, o romance dos contos da tradição oral, a pintura de cenas religiosas dos quadros vivos dos mistérios medievais — Malraux tratou longamente este aspecto). A vocação das técnicas do rasto é criar uma ficção, ou seja, uma ilusão de realidade no dizer de Genette. O espectáculo implicava uma participação activa dos espectadores (o público era parte activa do espectáculo, tanto nos mistérios medievais como no carnaval ou nas festas rurais), não havendo dicotomia entre produtores e receptores. O domínio das técnicas realistas coincide com a tomada de poder efectiva da classe burguesa sobre a infra-estrutura socio-económica (Renascimento). Em pintura, os burgueses querem ser retratados fazendo-se passar por algo diferente do que são. Em literatura, criam uma diegese, um mundo fictício, cujos dados espaciais, temporais, causais, etc., condicionarão a representação dos mitos. Este realismo, muito anterior ao movimento que adoptará a etiqueta homónima, deve deslumbrar, ofuscar, tecer a apologia do modelo burguês de sociedade.
No seu auge, vai produzir a primitiva ópera italiana, a estética barroca... As técnicas do rasto assumiram pois como função social a perpetuação dos mitos estruturantes de uma cultura através da representação de um modelo ficcional único: o do mundo burguês. Quando o poder da burguesia se torna legítimo, a infra-estrutura começa a ser dominada pela introdução da máquina. A super-estrutura e as formas estéticas transformam-se. A ideologia burguesa, ao aceder à verbalização, segrega a sua contra-ideologia. Os artistas estão doravante separados do público. O romantismo, e depois o realismo, enquanto movimentos literários, erguemse contra a ficção. As figuras populares (a vulgaridade) são representadas, mas a inserção na classe burguesa leva os artistas a veicular a ideologia da classe, ficcionalizando não só o modo de vida burguês mas todos os modos de vida possíveis à luz dum só padrão. A ficção é dirigida às classes laboriosas (paralelamente, a escola vai permitir-lhes a recepção desta ficção). Na era da reprodutibilidade técnica dos objectos artísticos cria-se uma cultura artificial, concebida por alguns para todos — a cultura de massas — à escala duma difusão infinita. Cria-se igualmente uma nova forma de espaço para a reprodução da força de trabalho com participação figurada: a distracção. O cinema nasce e precocemente desempenha esta função, social, de distracção e, ideológica, de transmissão da ficção (isto é, de ocultação da realidade). A derrocada da infra-estrutura em consequência da lª Guerra Mundial permitiu atribuir uma nova função social ao cinema, doravante pedagógica. O cinema só retomará definitivamente a sua função social inicial com o aparecimento do sonoro e o estabelecimento duma infra-estrutura própria: a institucionalização dum modelo, Hollywood. A dimensão espectacular do cinema foi explorada principalmente pelos cineastas soviéticos do mudo (Eisenstein escolhe, para referências privilegiadas, técnicas do gesto — cf. montagem das atracções. A ficção é rejeitada, a montagem mostra a construção do filme). O revival da ficção com Hollywood caracteriza-se pela «invisibilidade da montagem» 9. A mediação da máquina engendrou duas estéticas diferentes: o cinema de dominante espectacular explorará as distorções da óptica fotográfica; o cinema de dominante ficcional vai reduzi-las. No cinema de dominante ficcional, que é o modelo nosso contemporâneo, o ponto de vista é determinado por uma lógica interna. A continuidade é o seu princípio primordial. Mesmo quando surge uma elipse narrativa permanece a imagem dos protagonistas. Esta persistência dos objectos filmados, que se baseia num funcionamento narrativo interno e não no impacto emotivo sobre o espectador, corresponde a um fetichismo. Fetichismo que ultrapassará os limites da ficção fílmica com a invenção da star, retomando e explorando um mecanismo muito particular do sistema de representação ficcional — a promoção publicitária. Toda a evolução da estética do cinema ficcional assenta nas técnicas publicitárias. A técnica publicitária é a realização lógica do funcionamento ficcional pois formaliza o valor de troca atribuído à imagem. O processo é idêntico: fazer acreditar na realidade do simulacro proposto. Toda a técnica fotográfica utilizada no cinema tende a apresentar dos objectos filmados (rostos ou cenários) uma imagem sobrevalorizada. Já em 1946, Adorno e Eisler analisavam o funcionamento estritamente publicitário da música de cinema. «Hoje, o rugir do leão da Metro Goldwyn Mayer revela o segredo de toda a música de cinema: o sentimento de triunfo de que o cinema existe e até de que a música de cinema também existe. É como se a música induzisse no espectador o entusiasmo em que o filme o deve mergulhar. Manifesta-se essencialmente sob forma de fanfarra, coisa que o ritual dos acompanhamentos do genérico exprime sem o menor equívoco. Mas a sua maneira é absolutamente idêntica à da publicidade: aprovadora, designa tudo o que se vai passar no ecrã, antecipa, apresentando-o como já realizado o efeito que mais tarde o filme irá realizar, e chega até por vezes a explicar, aos espíritos mais néscios, o sentido dos acontecimentos, dado o seu carácter normativo unívoco, um pouco como hoje em dia é costume juntar aos reclamos de produtos higiénicos, explicações objectivas pseudo-científicas. Todas as formas de linguagem da música de cinema corrente, provêm da publicidade: o tema corresponde ao slogan a orquestração à variedade estandardizada e os acompanhamentos dos desenhos animados promocionais já inventam gracejos de marca: muitas
das vezes é como se a música substituísse o nome dos produtos que o filme não se atreve a gabar de maneira directa» 10. O cinema, ao adoptar técnicas filiadas tanto no espectáculo como na ficção, ficcionalizou os elementos espectaculares, estereotipando-os (da encenação à codificação de certos processos de distorção óptica). Todavia é possível detectar as qualidades espectaculares ocultadas mas presentes sob o manto diáfano da ficção. As potencialidades de impacto emotivo (qualidades espectaculares) estão por explorar (a estereotipação da ficção decorre da necessidade de rentabilização ligada à essência industrial do cinema). Ora o desenvolvimento do vídeo caracteriza-se pelo gradual abandono da ilusão de realidade, pela passagem da ficção estereotipada à esquematização da imagem. Neste processo perdem-se tendencialmente as qualidades espectaculares (o que se verifica através da desritualização do espaço e do modo de recepção). Resumindo: O cinema desempenha uma função social de distracção e uma função ideológica de transmissão da ficção (podemos definir esta última como representação ilusória do mundo que a burguesia elaborou e tenta propagar como única e perene, para assegurar a reprodução do seu sistema social). A arte desempenha uma função social e ideológica diferente; dirige-se aos membros da classe dirigente e constitui-se como capital cultural. Bourdieu mostrou de que forma o privilégio da disposição estética (capacidade de percepção estética) se revela critério de distinção social. Por outro lado, foi atribuída à arte uma função pedagógica cada vez que se tentou derrubar o modelo de sociedade (o cinema nestas condições estava, de facto, integrado no domínio das artes). Mas na nossa sociedade ocidental o cinema não reúne nem as condições constitutivas de produção de obras de arte, nem as funções sociais de distinção e delimitação dum capital cultural. Todavia observa-se uma promoção do cinema tendente a distinguir artificialmente filmes de arte e filmes comerciais, enquanto se mantêm análogas as condições de produção e distribuição. Podemos pois elevar o cinema a arte modificando o seu espaço, por exemplo, introduzindo-o no museu. «Dirigimo-nos a um público restrito cuja óptica é a do museu. A que título condená-la? Um filme não é nem mais nem menos feito para a antologia do que Gioconda pintada para o Louvre. Se ainda não existem no mundo museus do cinema dignos desse nome, a nossa tarefa é alicerçá-los» 11. Convém saber se o cinema está vivo ou se pertence já a um património arqueológico. Brecht propunha o abandono do conceito de arte. «Se já não pudermos aplicar a noção de obra de arte à coisa que nasce quando a obra de arte é transformada em mercadoria, torna-se então necessário abandonar essa noção com prudência e circunspecção mas sem temor, se não quisermos ver liquidadas simultaneamente a função e a coisa» 12. R.G. e S. 1
Marcel Martin, Le langage cinématographique Gilles Deleuze, Cinéma, l'image-mouvement 3 Jean Mitry, Esthétique et psychologie du cinéma 4 Francis Lacassin, Pour une contre-histoire du cinéma 5 Jean Rousset, Forme et signification 6 Benedetto Croce, Estetica como scienza dell'espressione e liguistica generale 7 Pierre Bourdieu, La distinction 8 Jean Mitry, obra citada 9 André Bazin, «L'évolution du langage cinématographique» in Qu’est-ce que le cinéma? 10 Adorno e Eisler, Musique de Cinéma 11 Eric Rohmer, Le goût de la beauté 12 Brecht, Sur le cinéma 2