O comboio eléctrico

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O COMBOIO ELÉCTRICO «Eis o mais belo comboio com que um homem jamais sonhou», disse ao entrar nos estúdios onde ia rodar CITIZEN KANE Georges Sadoul: WELLES ORSON, in Dicionário dos Cineastas A famosa frase de Orson Welles, citada em todas as antologias e histórias do cinema é geralmente interpretada como exemplo do comportamento megalómano da personagem. Ora, a «piada» de Welles não só exprime uma reivindicação definitiva do estatuto de «autor», como coloca o trabalho cinematográfico sob o signo do jogo que é sem dúvida um dos traços fundamentais desta actividade e, paralelamente, uma das menos assumidas. Numa sociedade que ainda se rege por noções de economia e rentabilidade, de «utilitarismo» em suma, o trabalhador tem de acreditar no papel positivo da sua actividade, quanto mais não seja ao nível do lucro imediato individual — sob forma de salário. O prazer, cuidadosamente dissociado do trabalho, está ligado ao lazer. Mas a própria ocupação dos tempos livres deve ser levada «a sério» de maneira a providenciar um certo brilho de informação e de cultura geral ou a ter como objectivo o enriquecimento. Não se exige dos cidadãos que acreditem cegamente no logro deste modelo de vida, mas a sociedade assenta na sua aceitação tácita mais ou menos consciente. Proclamar o carácter infantil e lúdico do trabalho de criação é discurso de palhaço ou de histrião. Quando se descreve a «impressão de realidade» produzida pela imagem cinematográfica, conota-se à partida a seriedade da ficção — a tal que nos leva a discutir esta última enquanto imagem, estilizada sim, incompleta também, mas fiel da realidade; seria mais pertinente falar duma «pressão de irrealidade» que organiza de forma coerente a inverosimilhança. O cow-boy, o polícia, o cientista louco, o assassino sádico, a mulher glamourosa, etc., são fantoches movidos pelos arquétipos da ficção; o facto de lhes atribuirmos uma psicologia, uma consistência imitada da realidade, parece um gesto de defesa que permite, por tabela, negar a inanidade da «realidade» onde o espectador se move, bem como a inconsistência da ficção que lha faz suportar. A distinção zelosamente mantida entre realidade — o mundo do trabalho — e ficção — o mundo do espectáculo — serve para limitar as reivindicações concretas do espectador — o happy end pertence ao domínio da ficção, não à realidade — apesar dos mecanismos de interpretação de ambas as entidades numenais serem permeáveis. Ao deslocar a consciência do jogo do espectáculo para a área da sua produção, Welles infringe o estatuto de rentabitidade e de utilidade da indústria espectacular — de facto, inverte-o completamente visto que realiza, sob este auspício, um filme em que a simplificação e a univocação das imagens ficcionais são totalmente postas em causa —, mas ao mesmo tempo revela as motivações profundas desta actividade particular. Nas primeiras décadas do nosso século, muitos profissionais do cinema, sobretudo técnicos, chegavam à sétima arte ao cabo dum percurso acidentado — os maquinistas eram antigos marinheiros, os cameramen ex-furavidas. A rodagem dum filme conserva ainda hoje um carácter «aventuroso» que de certo modo distingue as posturas nos sectores profissionais do cinema e da televisão. Mas a essência lúdica da criação espectacular abrange todos os níveis da produção — os produtores nacionais, para não irmos mais longe, têm uma reputação de jogadores de poker bem estabelecida; o princípio do jogo chega a prevalecer sobre a segurança do investimento financeiro — conquanto as máquinas burocráticas do tipo RTP ou IPC a queiram negar. A mera promiscuidade passageira dum certo número de pessoas, com estatutos sócio--profissionais muito desiguais, reunidas para uma rodagem, só é concebível no âmbito dum jogo em que as distinções ditadas pelo «princípio de realidade» deixam provisoriamente de ser válidas. Durante a realização dum filme, toda a gente deve «fazer de conta» — não há qualquer impressão de realidade por detrás dessas imagens que enquadram personagens sem necessidades corporais, ataviados como no circo, nas quais um filtro representa por convenção a noite («americana») e para as quais o efeito visual, em suma, tem prioridade sobre a representação; os actores fazem de conta que são aquelas personagens convencionais, o director da fotografia faz de conta que a fonte de luz com que trabalha é aquela que o enquadramento justifica, o produtor faz de conta que possui as massas que ainda anda a tentar juntar, etc.


Por outro lado, a rodagem desenrola-se sob o signo do capricho. Os dos actores e os de alguns realizadores são célebres. Mas seja como for, é raro um realizador explicar a escolha da sua planificação, do lugar da câmara, etc. A própria planificação, que retalha as acções sem respeitar a ordem cronológica, impede os participantes de conceberem uma ideia global do filme. A separação entre a rodagem e a montagem — separação essa devida a imperativos técnicos mas reforçada pela ausência do montador no decorrer da rodagem — acentua a sensação de incerteza quanto à utilização de tal tomada ou tal outra. O desfasamento entre a soma de esforços fornecidos para acertar todos os pormenores e as dúvidas quanto à necessidade desses pormenores, logo dos esforços, é raramente tão evidente como na actividade cinematográfica. Paradoxalmente, o resultado do carácter incerto e lúdico das diversas acções no «plateau» — carácter esse que de modo nenhum exclui as altas proezas técnicas na medida em que o aleatório reside apenas na finalidade — traduz-se por uma sobrevalorização do instante para o qual todos os esforços se concentram. Donde o «drama» da rodagem, que é de longe mais intenso fora de campo do que dentro do enquadramento. As tensões resolvem-se por norma na altura das refeições: quantas vezes a comida acaba por funcionar para os técnicos como padrão de avaliação da qualidade da rodagem. O drama da rodagem remete inteiramente para a natureza lúdica da actividade que implica um empenhamento pontual mas absoluto dos participantes — pois o jogo é a única coisa a sério como está patente no comportamento das crianças; todavia, essa seriedade que exige que se vá até ao fim, sem por vezes medir as consequências, está nos antípodas do calculismo e da ficção de responsabilidade dos burocratas. O resto, «mensagem», arte, etc., não passa dum alibi. Se Godard incomoda tanto, é também porque expõe os jogos de palavras de mau gosto que servem de base ao discurso teórico que vai elaborando. Estão sempre a atirar-nos à cara a referência modelar de Dreyer, escamoteando que as qualidades de ORDET são as mesmas que encontramos em VAMPYR ou nas curtas-metragens para a segurança social e para a prevenção rodoviária. Acrescente-se que até mesmo ORDET — se aceitarmos tomá-lo como arquétipo do filme sério, com «mensagem» — assenta na gigantesca fraude de um milagre que só o cinema torna possível. Fala-se de humor a propósito de M. de Oliveira ou M. Scorsese (em A ULTIMA TENTAÇÃO DE CRISTO) mas sublinha-se mais raramente o humor de C. Marker — quando joga com vários comentários sobre uma só imagem em LETTRE DE SIBÉRIE ou quando joga o bluff do «cinemaverdade» numa EMBAIXADA em Santiago-do-Chile-sur-Seine — ou o de E. Olmi — a cena da noite de núpcias no convento seguida da oferenda da criança em A ÁRVORE DOS TAMANCOS, a promessa que se transforma em penitência de bebedeira e fornicação em LA LÉGENDE DU SAINT-BUVEUR. O maior proveito do cinema continua incontestavelmente a dever-se ao facto de ter começado por renovar e reabilitar o cómico — antes de Bergson, em 1919, se ter debruçado sobre «o riso», talvez seja preciso recuar até Rabelais para encontrar o elogio da gargalhada. Os aspectos lúdicos da profissão que acima mencionamos são os mesmos que o espectador investe ao ver o filme. O espectador faz de conta que tem medo, que acredita numa ficção pela qual, profundamente, não é enganado. Presta-se ao capricho de aventuras excepcionais e inverosímeis. No entanto empenha-se até à ponta dos cabelos nesse jogo e não hesita em chorar pela vítima que lhe seria indiferente se a encontrasse na rua ou em viver os pavores de dramas cuja futilidade lhe faz esquecer o horror dum quotidiano de agressões que só a repetição e a perenidade conseguem atenuar. Num país como Portugal, em que a produção cinematográfica não obedece a um modelo industrial — i. e. em que os cineastas só estão submetidos a limitações financeiras —, gostaríamos de encontrar essa vertente de jogo mistificador — que é o traço distintivo dos modelos de referência geralmente admitidos, de Renoir a Welles, passando por Bergman e pela «nova vaga» francesa — com a desenvoltura que lhe é inerente — o cinema pode ser revolucionário, mas não é a revolução — e simultaneamente o empenhamento — a consciência do irrisório não significa leviandade pois nunca se cria uma imagem ou um discurso impunemente. Será indispensável chegar — ou esperar — pela idade de M. de Oliveira para entrar em posse do impudor, da raiva e do desespero que permitem, ao gozar o prazer do jogo, transmiti-lo e partilhá-lo? S.


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