O CONFITEOR DO CINEASTA O pintor é aqui, notoriamente, um duplo do cineasta; o filme poder-se-ia ter intitulado "O cineasta e a cidade", se não fossem as duas sequências de abertura e de fecho, em que as artes medem forças: Cruz pretende captar, na sua tela, objectos em movimento — comboios, barcos — e aí o cineasta derrota-o sem margem para a dúvida, pois não só regista o comboio, na sua aproximação ou afastamento, como consegue, graças a uma rápida rotação da câmara sobre o tripé, passar da aparente imobilidade da cidade de pedra, que eternamente contempla o rio, para a fuga veloz do comboio que a faz viver. Porque mais do que de casas, a cidade é composta de habitantes, que nela penetram e dela saem, que a percorrem. Na sequência final, o pintor mede forças com o tempo, ou seja com a velocidade da luz que não pára de declinar à medida que o sol se põe; o pintor começa por sobrepor camadas cada vez mais escuras que, aos poucos, apagam os contornos até a uma quase-escuridão, e depois, numa derradeira pincelada, dilui os blocos de sombra que se abrem a uma ténue luz e deixam reaparecer a silhueta das torres, sobre um céu nocturno destacada; o cineasta, que filmou as etapas do processo sem que a mão do pintor apareça — trata-se de combates metafísicos: o pintor contra a luz, o cineasta contra a imagem, onde o humano só está presente "fora de campo", atrás da câmara — e o enquadramento, inteiramente ocupado pela paisagem a ser pintada, faz-nos passar da imagem quadro do pintor para a imagem-tempo do cineasta. Porém, face à vitória do pintor sobre a escuridão, o cineasta apenas pode contrapor uma irrisória vista nocturna, na qual distinguem apenas os néons, e dar-se por vencido. Entre estas duas sequências, o pintor somente está presente como transeunte, tornando-se por vezes pólo de atracção no seio da multidão, mas mais frequentemente surgindo como solitário e percorrendo a cidade em busca "do lugar e da fórmula" — António Cruz pinta à vista. Desde a primeira sequência, aparece acompanhado por uma música celestial que indica o sentido da sua missão: revelar os indícios da presença divina no visível. Vê uma fachada de igreja e pinta uma pomba a planar por cima de uma madona — claro está que é Oliveira que constrói este sentido através da montagem. Captar pois o visível da cidade a fim de o interrogar. Oliveira faz um retrato da cidade. Estabelece uma primeira divisão entre a parte de baixo — a massa de peões, automóveis, eléctricos nas ruas — e a parte de cima — fachadas de igrejas em contrapicado. Esse cimo de alguma maneira ordena o movimento do que passa em baixo — ruas em picado — e o dedo a apontar das estátuas é reforçado, na sua tarefa, pelas apitadelas dos agentes. Por outro lado, esse cimo encontra-se ameaçado — os planos de arquitectura moderna são acompanhados de acordes dissonantes ao piano (e, no entanto, a cidade ainda não começara a desenvolver uma suburbanidade centrípeta como viria a acontecer a partir da década seguinte: a tal ameaça tornou-se bem real e, de 1956 aos nossos dias, a cidade foi desfigurada). A ordem à qual estão submetidos os habitantes-peões é ambígua, ao mesmo tempo eterna e secular — a arte desempenha o seu papel a esse nível, e passamos assim, em alguns planos, do concerto no coreto do jardim de São Lázaro à fanfarra da Guarda Nacional Republicana e depois às crianças que brincam aos soldadinhos (premonição de um futuro próximo, gerado pelo regime salazarista?). O percurso faz-se em espiral, do centro para os confins da cidade — casebres de madeira rodeados de hortas, farol da foz. Oliveira deseja não esquecer ninguém neste retrato — curiosamente, só estão ausentes as residências ricas da alta burguesia, defendidas do povo e proibidas ao público, que não pertencem verdadeiramente à cidade. Filme sobre as fachadas, filme-interrogação do visível, O Pintor e a Cidade — produzido por Oliveira, para quem produzir não significava encher os bolsos — remete-nos, em última análise, para o impulso irresistível do gesto artístico, testemunho e interpretação do presente. Saguenail