O controlo do olhar

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O CONTROLO DO OLHAR Uma anedota: em 1978, era eu professor primário, levei os meus alunos ao cinema ver LITTLE BIG MAN de Arthur Penn. No início do filme, o herói e sua irmã, vestida de rapaz, são os únicos sobreviventes de uma caravana atacada pelos índios. Estes últimos capturam os dois adolescentes e levam-nos para a aldeia onde serão adoptados. Ora os índios julgam que a irmã é efectivamente um homem até ao momento em que uma velha índia, com um ar divertido, os faz espreitar para dentro das calças da cativa, revelando-lhes a sua identidade sexual. Só o gesto era visível, obviamente, mas quando os índios do ecrã se debruçaram para descobrir a feminidade da personagem, todos os meus alunos do sexo masculino (dos 8 aos 12 anos) se levantaram para contemplarem, também eles, o mistério que as calças ocultavam... Parece-me haver uma lição a tirar desta anedota: os meus alunos não tinham compreendido a essência do cinema que é certamente exibir mas apenas dentro do quadro restrito definido pelos seus canais de circulação. A exibição cinematográfica é sempre cuidadosamente controlada, arranjada, asseptizada. A América mostra regularmente as falhas e as taras do seu sistema, mas sempre de maneira a preservá-lo, na medida em que o remédio provém sempre do próprio sistema. Por outras palavras, o cinema nunca mostra aquilo que os códigos não querem que se veja. Nesse sentido, o cinema movese no limite do exibicionismo mas mantém-se na norma — cada infracção tem sido objecto de escândalo, de O ÚLTIMO TANGO EM PARIS de Bertolucci a O DIABO NO CORPO de Bellocchio, unicamente porque a factura dos tais produtos chocantes não correspondia ao mesmo canal de distribuição que o tema tratado (uma sociedade puritana faz questão de que os assuntos "sujos" sejam "sujamente" filmados, i. e. sem dinheiro e sem preocupações estéticas). O próprio circuito pornográfico não transgride nenhum tabu e, ao mostrar o coito higiénico, não revela nem o abismo do prazer nem o da frustração. O cinema permanece afastado do "mal" tal como Bataille o definiu. Mesmo SALO de Pasolini, penoso de ver, não é exibicionista no sentido estrito. Porém, o prazer cinematográfico passa indiscutivelmente por um investimento da libido no olhar; só que o olhar é justamente limitado a um enquadramento que corresponde ao campo do lícito. Assim, foi unicamente por abuso de linguagem que se assimilou, ao nível da metáfora, o cinema às perversões antitéticas do exibicionismo e do voyeurismo, a pretexto de que a libido nele se investe em pulsão de ver e de mostrar. Ora, para haver perversão é preciso que o funcionamento libidinal "normal" se encontre impedido, que o "proibido" seja revelado pelo exibicionista, que o "íntimo" seja observado pelo voyeur. Isto é, que haja violação, gesto ilícito. Curiosamente, essas assimilações metafóricas abusivas parecem ser frequentemente da laia dos críticos — cuja produção passa por um acto consensualmente imune à perversão, escrever — e não tanto dos realizadores. Raramente a indústria cinematográfica levou à tela, nas suas ficções, figuras de exibicionistas ou de voyeurs. A palavra foi mais brandida do que propriamente composta a personagem ou profundamente analisados os modos particulares dessas perversões. Dois filmes contudo permanecem emblemáticos de uma tentativa de "instalação do desconforto" do espectador apresentando-lhe um "modelo de identificação" de voyeur (sen)tido como inaceitável. Ora Jeffries em REAR WINDOW não é, ainda que a enfermeira Stella lho sugira, um "voyeur" — pois nem sequer o crime vê; induzi-lo-á a partir de indícios fragmentários. Jeffries é um duplo do espectador frente ao ecrã da sua janela e REAR WINDOW propõe-nos uma metáfora metacinematográfica mas não perversa — ainda que o gesso do membro inferior seja simbólico de uma impotência mais lata. Quanto a PEEPING TOM de M. Powell, outra metáfora do próprio cinema, o filme reúne numa só personagem duas figuras heterogéneas, o realizador — Mark ora exprime as preocupações do documentarista procurando acompanhar o inquérito de muito perto, ora age com os maquiavelismos do encenador, condicionando os seus actores e utilizando acessórios e subterfúgios (recordem-se as inúmeras anedotas que correm acerca dos métodos de Godard) para obter o trejeito exacto nos seus rostos — e o "serial killer", avatar de Jack o estripador que trocou o punhal pelo tripé da câmara. Só as fugitivas paragens em fascínio perante os namorados que se beijam — mas trata-se de cenas quase acrescentadas à ficção e, de resto; facilmente suprimíveis — justifica a scoptofilia do título.


Da mesma maneira que o exibicionista descobre o que deveria ficar escondido, o voyeur procura observar aquilo que não deve ver. O voyeur deve pois esconder-se —donde os vidros espelhados dos antigos bordéis —; por isso nunca fica colocado no melhor lugar, contrariamente ao que acontece com a câmara cinematográfica. Mark só ocupa essa posição para rodar as imagens do seu "documentário" — a menos que a rotina policial possa representar o cúmulo do obsceno! —; exibe a câmara diante das suas vítimas — embora a oculte debaixo do casaco na primeira cena, em que aborda a prostituta na rua, revela depois a sua presença no quarto, e o objecto funciona aí mais como o sexo a descobrir/destapar do exibicionista do que como o olho do voyeur. Em suma, a personagem de Mark apenas muito acessoriamente será voyeur e não é decerto essa pulsão que o leva ao crime. O único "voyeur" do filme seria paradoxalmente a mãe de Helen, que espia através do tecto cada movimento de Mark e conhece as suas actividades mais íntimas; mais do que "scoptófilo" Mark tornou-se objecto de observação de um(a) voyeur cega! Com efeito, a figura do voyeur no cinema revela-se, quando examinada de mais perto, por um lado muito afastada da perversão scoptofílica propriamente dita, por outro sempre situada no plano da metáfora: Jeffries é uma representação do espectador de cinema em si — e são os fenómenos projectivos que o filme desmonta —; Mark Lewis é um avatar do realizador que desejaria confrontar o público com o seu próprio medo — com os seus próprios fantasmas, pois o realizador submete-se inconscientemente aos desejos do público, tal como Mark é tão-só portador dos fantasmas inculcados pelo seu pai. Espectador indiscreto em Hitchcock, espectador vítima em Powell — o visionamento de PEEPING TOM é certamente mais desconfortável e incómodo do que o de REAR WINDOW —; o realizador esquiva-se em ambos os casos e manipula impunemente as imagens-reflexos que a sua câmara apresenta ao espectador. Porque o espectador é o único verdadeiro fantasma do cinema. Mesmo em GARE CENTRALE de Youssef Chahine — que se expõe como actor, mas permanece invisível como realizador — a personagem do "voyeur" Kenaoui (que se limita a coleccionar fotografias de mulheres nuas e afixá-las nas tábuas da sua cabana — por esse andar, não haverá cubículo de guarda nem oficina de mecânico que não possa ser apelidada de antro de "voyeurs"... — ora aqui somente se manifestam os recalcamentos e a miséria sexual engendrados por uma sociedade moralmente repressiva) é também metafórica: no universo proletário da estação, ele representa os deserdados condenados à frustração a quem é recusada a melhoria da fortuna que a força permite (o carregador Abou Serih consegue formar um sindicato) assim como a beleza (Hanouna pode pensar seriamente em casar). Chahine defende aliás a sua personagem contra os heróis convencionais (cf. entrevista em «Decifrar o cinema egípcio», Cinemateca Portuguesa). O jovem voyeur de AMERICAN BEAUTY na sua irrisória aspiração a captar uma beleza degradada — um saco de plástico — mas eterna — basta que uma rajada de vento o faça dançar no ar — acaba por nos parecer mais convincente enquanto figura psicológica. Na "sociedade do espectáculo", tudo, por um ou outro canal, é dado a ver, mas o verdadeiro comportamento desviante continua a meter medo. Por conseguinte o cinema não se atreve a encenálo. A verdadeira transgressão é própria de cineastas excepcionais cujos filmes não se limitam a ignorar os tabus nos temas tratados, mas que infringem os próprios códigos da narração convencional — estou a pensar em Stroheim ou em Buñuel... O cinema, fábrica de imagens, não só não viola nenhuma proibição mas — e é essa a sua função social — canaliza o nosso imaginário. A honra do espectador cinéfilo está salva: um filme não se vê pelo buraco da fechadura. Saguenail


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