O corpo em campo

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O CORPO EM CAMPO Após o nascimento técnico do cinema, foi preciso esperar mais de dez anos o seu nascimento estético. Com efeito, no princípio o campo é determinado pela acção — o enquadramento de L'ARROSEUR ARROSÉ é de corpo inteiro; depois, logo que o cinema adopta como modelo de representação o palco teatral ou de music-hall — como acontece com Méliès — o enquadramento corresponde ao cenário na sua totalidade; as opções estéticas só intervêm ao nível dos elementos filmados: a representação dos actores, os cenários, o guarda-roupa. É consabido que só com Griffith o cinema vem a conquistar um espaço autónomo, quando o cineasta americano imagina deslocar a câmara durante a filmagem duma cena. O espaço cinematográfico é doravante o da montagem — já não de «cena» a «cena» mas de plano a plano — e abre-se com a descoberta de um enquadramento inédito — nunca até então explorado, nem mesmo nos domínios da pintura e da fotografia: o grande plano e o muito grande plano. No seu livro O Cinema ou o Homem Imaginário, E. Morin foi o primeiro a considerar esta aquisição não como uma etapa dum processo evolutivo mas como uma transformação radical — a passagem do cinematógrafo para o cinema: Morin, depois de Balazs, descreve o novo espaço onde, graças à dilatação da imagem projectada no ecrã, um rosto se torna paisagem e a acção transita de um espaço exterior para um espaço interior ao homem. A montagem deixa de corresponder a uma mudança de cenário — passa então a ser mudança de espaço e os «actantes» modificam-se, do corpo aos traços faciais. A partir daí, a estética do cinema desenvolvese segundo dois eixos — o trabalho dos actores e a montagem — em geral analisados separadamente embora sejam de facto interdependentes. Parece-nos pois pertinente examinar as relações entre estas duas coordenadas da criação cinematográfica — tanto mais que os cineastas que se dedicaram à pesquisa no plano formal (pelos quais nunca escondemos as nossas preferências) não raro são implicitamente acusados de desleixar a direcção de actores; ora, é justamente ao nível da direcção das «stars» que o trabalho destes realizadores foi, à partida, inovador: lembremos Hitchcock e J. Stewart, Godard e J.-P. Belmondo, Rosselini e I. Bergman, Bergman e M. von Sydow, etc. Os outros parâmetros estéticos, exceptuando o som, só sofreram uma evolução técnica — sensibilidade da película, mobilidade da câmara — e, do ponto de vista teórico, só trouxeram um alargamento das possibilidades já abertas de semantização do campo para além da ficção narrativa traduzível verbalmente. A primeira consequência da exploração de um espaço autónomo do cinema incidiu sobre os actores. Os actores, até então filmados em plano largo, limitavam-se a apresentar qualidades padronizáveis — gesticulação e expressividade facial sublinhada pela maquilhagem contrastada. Em grande plano, surge uma nova qualidade dificilmente racionalizável: a fotogenia, a capacidade de sugerir sentimentos por detrás da máscara facial. O cinematógrafo trabalhava com actores de teatro e de music-hall; o cinema vai descobrir novos actores aos quais se pede um outro tipo de performance, cuja expressividade deve aparecer em imperceptíveis movimentos de pele e pelo olhar — o terceiro olhar da câmara inverte o sentido tradicional do olhar que, de «janela aberta sobre o mundo», passa a interstício através do qual se penetra na «psique». Os progressos técnicos — substituição da película ortocromática pela película pancromática — permitiram uma ousadia cada vez maior na encenação do rosto — assim, em A PAIXÃO DE JOANA D' ARC, Dreyer foi até à supressão da maquilhagem. O rosto não é evidentemente o único campo do cinema — o grande plano nem sequer é o enquadramento mais utilizado — mas é aquele que magnetiza os outros espaços, com o qual os outros espaços se relacionam e confrontam. Neste sentido, é legítimo continuar a defender que o «efeito Koulechov» constitui a experiência fundamental da estética do cinema. Revela a faculdade de identificar convencionalmente os mantimentos exprimidos pelo rosto, não em função da «representação» mas em função da justaposição, e permite compreender, por um lado, como a montagem elaborou uma gramática (cf. o nosso artigo «Para uma teoria da montagem» in A Grande Ilusão nº 8) de progressão dramática convencional, por outro, como a representação dos actores se codificou. A fixação de padrões de representação levou a que, até à aparição de novas escolas de formação — como o «Actor's Studio» — ou de novas práticas de direcção — como Renoir ou, no extremo oposto, Godard —, o desenvolvimento do «star system» se saldasse tão só pelo primado


dos critérios de fotogenia das caras independentemente da qualidade de desempenho e da expressão. Com efeito a perda de qualidade ao nível da representação correspondia simultaneamente à mudança de espaço — cujo tamanho dilatado ultrapassa os códigos adquiridos pela experiência extra-cinematográfica do espectador e dota o rosto de uma carga simbólica que prescinde de uma maior verdade ou subtileza da expressão dramática — e à estandardização crescente das ficções e dos sentimentos a exprimir. A questão do «porquê?» — por definição insolúvel visto que as respostas se limitam obrigatoriamente à constatação histórica ou à especulação metafísica — i.e. porquê essa força do rosto, porquê esse papel histórico do grande plano, porquê esse fetichismo que o «star system» explorou mais do que na realidade inventou, não pode ser contornada e exige um parágrafo de psicanálise barata. A sexualidade, entendida como Freud, comanda o trabalho do inconsciente, desenvolve-se através de actividades lúdicas e intelectuais — a curiosidade, o desejo de conhecimento —, e realiza-se no contexto social mediante uma satisfação simbólica — transferência, sublimação — ou, se recalcada, pode engendrar a neurose. No plano afectivo corresponde à consciência infantil de ser um «objecto de amor». A formação da personalidade está ligada à substituição de um «sujeito de amor» parental — cuja perda é necessária para que o indivíduo não fique enclausurado numa situação infantil — por transferência ou sublimação. As respostas sociais — casamento, religião — são insatisfatórias na medida em que exigem uma contrapartida: um comportamento submetido às necessidades do sistema, i.e. a critérios de utilidade, de rendimento, e sobretudo de recalcamento das preocupações individuais forçosamente narcísicas. O cinema veio propor imagens simbólicas extraordinariamente valorizadas — pelo tamanho como pela ficção — nas quais cada um pode projectar a imagem de si — enquanto objecto de amor — que não consegue apreender na «realidade». O cinema veio satisfazer uma necessidade, criada ao nível da super-estrutura — das mentalidades —, de reconhecimento duma imagem de si — mesmo transferida para outros, assim elevados à categoria de ídolos, ou mais precisamente semi-deuses vivendo entre os homens — da qual a maioria da população estava privada. É aliás precisamente em relação a esta função que a televisão logrou apresentar um modelo mais satisfatório do que o cinema — cujo carácter artificial, doravante muito divulgado, dificultava a transferência imediata e impunha um mínimo de sublimação por parte do público — ao fabricar emissões em que o espectador vê mesmo uma imagem de si — telejornais, concursos, etc. Que a tal imagem de si se reduza essencialmente ao rosto é facilmente compreensível num contexto sócio-cultural que oculta e escamoteia o corpo. O cinema, pelo contrário, erotizou imediatamente o rosto. Voltando ao problema do tratamento do actor na estética cinematográfica: em relação a uma gramática submetida à acção que privilegia o actor enquanto único actuante, é possível definir grosso modo os formalismos — que diferenciaremos adiante — conforme o papel atribuído à câmara, logo ao enquadramento, que obriga a personagem a representar num campo virtual — não delimitado no espaço, mas no visor — e já não num cenário real. O «plano médio» e o «plano americano», concebidos para deixar ao actor uma margem de deslocação imposta pela acção a efectuar, dominam na gramática que Hollywood gradualmente fixou. Os enquadramentos mais largos ou mais apertados dominam nos outros filmes, ora porque o cenário desempenha um papel tão importante como o actor — é a grande tradição americana, de Ford ao recente DANÇAS COM LOBOS de Kostner — ora porque a direcção exige uma participação diferente da mera execução dos gestos necessários à acção. Conquanto esta primeira distinção se possa verificar, do ponto de vista estatístico, no apogeu da industrialização da produção hollywoodiana, deixa todavia de ser pertinente à medida que essa produção industrial evolui e absorve as inovações estéticas dos outros cinemas. Mas a intervenção da câmara não se limita à escolha do quadro. Assim, a prioridade pode ser dada ao enquadramento — caucionado pela referência pictórica. É neste aspecto que o cinema tradicional se mostra menos inovador: as escolas de pintura tomadas como referência são anteriores ao cubismo e a tentação de fazer coincidir o enquadramento com o palco volta a sentir-se — como no cinematógrafo e nos pintores académicos do século XIX (cf. o nosso artigo «O cinema não é uma arte» in A Grande Ilusão nº 1). Este tipo de formalismo é notório em Kubrick e nos vários «Padrinhos» de Coppola. Os enquadramentos mais ousados e


menos convencionais — em Godard ou Antonioni —foram pouco explorados nos Estados Unidos, excepto por Fuller e Scorsese — e a possibilidade de preencher um campo novo que o «cinemascópio» representou foi decerto determinante no caso destes dois cineastas. O formalismo ao nível do enquadramento só permite jogar com figuras padronizadas da narração cinematográfica — por exemplo, a montagem paralela em Coppola — na medida em que se baseia num significado intrínseco do plano, intacto mesmo quando isolado do resto das imagens. A prioridade pode ser dada aos movimentos de câmara, i.e. à passagem no mesmo plano dum campo para outro. Hitchcock é porventura o exemplo mais conhecido. Os movimentos adquirem um valor semântico excepcional porque é sempre nesses planos que se faz — O DESCONHECIDO DO NORTE EXPRESSO: os sapatos que se encontram no comboio; VERTIGO: o beijo durante o qual K. Novak é identificada — e se desfaz — a saída de C. Grant e I. Bergman em DIFAMAÇÃO: a descoberta do culpado em JOVEM E INOCENTE — o nó do enredo e os outros planos devem conduzir a esses momentos fortes. (O deboche de movimentos em certos filmes esvazia-os de sentido: passam então a funcionar como elementos decorativos sublinhando uma aceleração da acção — a carga dos helicópteros em APOCALYPSE NOW — ou acabam por contradizer uma tensão interior — veja-se o caso de A PAIXÃO DE CAMILLE CLAUDEL. Muitas vezes, os movimentos de câmara têm como consequência imediata o desregulamento momentâneo — o copo de leite em SUSPEITA — ou definitivo — o plano-sequência do início de A SEDE DO MAL — da gramática codificada em termos de escala de planos. O movimento de câmara pode ainda adquirir um significado intrínseco enquanto modificação do objecto captado no campo. Os travellings em contra-picado para acompanhar os actores em Scorsese — ou mesmo a utilização do trans-trav que, sem alterar o enquadramento, muda a perspectiva, como acontece em A ÚLTIMA TENTAÇÃO DE CRISTO — funcionam como questionamentos das personagens e do sentido dos seus gestos puja finalidade deixa de ser unívoca — De Niro dirigindo-se para o bordel em TAXI DRIVER ou Nick Nolte observando os quadros em HISTÓRIAS DE NOVA IORQUE. A prioridade pode ser dada ao lugar da câmara. Para além dos processos grosseiros em que se atribui à câmara um papel «humano» — a câmara subjectiva —, a câmara pode desempenhar outros papéis que condicionam a sua colocação em relação aos actores. A perspectiva de testemunha omnisciente, invariavelmente colocada no ponto de vista ideal, não chega a definir um papel dado que nesse caso o lugar depende da acção que a câmara vai registar. Em contrapartida, a fixidez que obriga os actores a posicionarem-se perante ela — em Straub, por exemplo — ou que estabelece hierarquias em função da proximidade das personagens que se deslocam em relação a ela — é o caso da exploração da profundidade de campo como em O QUARTO MANDAMENTO ou A REGRA DO JOGO — transforma-a numa espécie de juiz no seio da diegese. Por último, a câmara pode assumir verdadeiramente o papel do espectador face ao filme enquanto representação e já não só face à acção representada. Não se trata dum jogo de «mise en abyme», mas duma atenção privilegiada às condições de recepção no momento da filmagem — M. de Oliveira optou por esta posição extrema na sequência da sua reflexão sobre as relações entre teatro e cinema (cf. o nosso artigo «A impureza das origens» in A Grande Ilusão nº 7). A prioridade pode ser dada à distância entre a câmara e o objecto, quer esta seja mantida — em Jarmush, cujas personagens, seguidas passo a passo, ganham uma dimensão parabólica; em Keaton, cuja gesticulação chega a parecer desumana graças à escolha sistemática dum enquadramento largo — quer seja abolida — em A PAIXÃO DE JOANA D'ARC, evidentemente, mas sobretudo nos filmes de Cassavetes em que a câmara executa proezas para acompanhar as personagens num enquadramento o mais apertado possível. Em todos os casos, a adopção de uma figura formal implica a escolha dum papel específico para a câmara e é sempre portadora de sentido — o formalismo não é decorativo. Em última análise, está em causa a construção dum espaço fílmico que não corresponde ao cenário, mimético do «real». A maioria dos cineastas supracitados recorrem a várias figuras simultaneamente — Godard trabalha ao mesmo tempo a profundidade de campo, o enquadramento e o movimento de aparelho em certas sequências de VIVER A SUA VIDA ou de O DESPREZO; Fuller explora o enquadramento e o


movimento de aparelho em PARK ROW; Jarmush calcula os travellings em função da distância. etc. O tratamento «formalista» não se acrescenta à acção, como aparentemente julgam alguns cineastas americanos do género de Pollack ou Lumet, introduz, isso sim, um novo parâmetro, o «ponto de vista», que determina ou modifica o sentido dessa acção. Mas o aspecto que aqui nos interessa é a incidência da escolha estética na relação com o actor, posto que as opções formais acima definidas alteram aquilo que lhe é pedido. Aparentemente, a delimitação do campo deveria traduzir-se por uma redução da sua liberdade criadora. Ora a variação situa-se a outro nível: o actor não pode continuar a fazer de conta que ignora a presença da câmara. Qualquer tentativa de «compor» um papel mais não faz do que evidenciar a falsidade da representação — falsidade essa que pode aliás ser utilizada como contraponto revelador ou cómico pelo cineasta. O actor não se limita a representar, tem de ser e estar perante a câmara em situação de constrangimento. A expressividade do actor vem-lhe de dentro e deve manifestar-se em todas as partes do corpo, visto que o gesto, a acção, são apenas pretextos para encenar uma relação entre o actor e a câmara. Já não há alternativa: ou o actor se funde com a personagem — segundo o método Stanislavski — e altera a sua própria personalidade — o exemplo de Robert de Niro nos filmes de Scorsese é o mais conhecido — ou deixa transparecer aquilo que o ofício de actor permite esconder — A. Karina nos filmes de Godard, Cassavetes nos seus próprios filmes, etc. Dois corolários: primeiro, os cineastas em causa não hesitam em trabalhar com amadores visto que não exigem papéis de composição — alguns, como Bresson, deixaram de recorrer a profissionais; outros, como Rohmer ou Scorsese constituem aos poucos uma espécie de família de actores, nem sempre profissionais, que se juntam de filme para filme: outros ainda recriam nos filmes o círculo de amigos ou de família, tais como Cassavetes ou Woody Allen; segundo, qualquer que seja o tipo de direcção (questão que não examinaremos aqui, na medida em que depende de inúmeras variáveis, desde a personalidade do realizador ao tempo que o orçamento lhe concede, e vão do conflito declarado — Godard — à frieza — Straub — e à cumplicidade dentro e fora do plateau — Renoir), o actor, envolvido num relacionamento heterodiegético com o fora de campo que é a câmara, representa, mais do que o seu papel na ficção, mais do que o seu estatuto profissional — competição com os outros actores, preocupação duma imagem já feita —, a sua relação com o realizador do qual é o duplo, ou até o objecto amoroso. Assim, podemos distinguir o desempenho de James Dean em A FÚRIA DE VIVER e em GIGANTE, para além de uma avaliação qualitativa, em função da necessidade maior ou menor de se despojar. Não faltam exemplos de desdobramento do realizador num actor — e não num papel —, de Fellini/Mastroianni a Godard/Belmondo, passando por Coppola/Al Pacino, etc. Os casos de relações amorosas ou maritais também abundam. Duas constatações: tendencialmente, esses cineastas acabam por passar para o outro lado da câmara, i.e. por assumir, sem intermediários simbólicos, o verdadeiro tópico dos seus filmes, a saber a elaboração de uma imagem de si; por outro lado, a paixão que sentem pelos actores inclui a consciência da imagem ideal de si que eles incarnam, o que os leva a tratar as grandes vedetas no segundo grau: Godard não filma uma personagem representada por B. Bardot ou Alain Delon, mas Bardot e Delon, «stars» que não simplesmente actores, perante a câmara. Idem para Coppola com Marlon Brando, Wenders com Peter Falk, etc. Dizer que o formalismo é a ostentação de um segundo grau de leitura não basta. Todas as ficções podem ser lidas no segundo grau, a maioria só se revela minimamente interessante no segundo grau, muitas evidenciam a necessidade dessa leitura através de meios estritamente diegéticos (Mamet, os irmãos Coen, etc.). O formalismo coloca o segundo grau em primeiro plano, i.e. os filmes que consideramos formalistas são os únicos que devem efectivamente ser lidos no primeiro grau, porque a emoção provocada, por intermédio de actores que não podem refugiar-se na convenção ou na composição histriónica, provém no fim de contas da sinceridade do cineasta. O papel da câmara é, manifestando formalmente a sua presença, tornar sensível o olho que está por detrás. S.


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