O FADISMO NÃO PASSARÁ O FADISMO JÁ PASSOU Embora Deleuze lembre que «a história do cinema é um longo martirológio», embora saibamos que o sucesso de bilheteira recompense quase sempre a mediocridade, assistimos periodicamente ao estabelecimento de consensos críticos em torno de certos filmes. Em geral, o fenómeno é resultado de um mal-entendido; no caso de CINEMA PARADISO é fruto da má consciência. Nestes tempos em que a indústria cinematográfica perde pedalada por razões económicas — i. e., nestes tempos em que as salas fecham não por darem prejuízo mas simplesmente por serem menos rentáveis do que os recintos de Bingo —, ou nestes tempos em que a produção está cada vez mais a cargo dos realizadores (bons ou maus, mas isso é outro problema) e já não unicamente dos merceeiros; ou ainda, nestes tempos em que as contradições entre o estatuto e a realidade comercial do cinema têm acarretado a perda da sua função social, todos aqueles que vivem do cinema começam a temer pelo devir do media ao qual o seu próprio futuro está associado e a deplorar o fim de uma idade do ouro em que o cinema era verdadeiramente um espectáculo «popular» — i.e., enchia as salas. Neste aspecto CINEMA PARADISO tem o mérito de ser claro: esse cinema não era o de Murnau, Welles, Rosselini ou Godard, mas de Keystone, dos «peplums», de Tótó ou dos melodramas exóticos e marciais do tipo PÉPÉ LE MOKO. Que o cinema seja a melhor memória do século, é inegável, que certos realizadores tenham conseguido o tour de force de exprimir uma emoção ou um sentido que escapam ao artifício ou à convenção, é a razão de ser do nosso empenhamento de cinéfilos; em contrapartida, que se possa ser nostálgico desse cinema, parece-me no mínimo perigoso para não dizer reaccionário — exactamente como julgo lamentável a posição de Resnais, no seu último filme, em relação à banda desenhada; precisamente como acho significativo que a televisão volte a passar, para grande gáudio dos saudosistas, os «clássicos» da série TV, sem que ninguém constate que, por este andar, daqui a vinte anos os folhetins brasileiros hão-de retrospectivamente ser tidos na conta de obrasprimas. Quanto ao resto, CINEMA PARADISO é um filme assaz demagógico — a emoção nasce do contágio, explorando o ricochete das reacções da sala fictícia —, fácil — tira partido de todos os chavões, da prostituição dentro do cinema ao aristocrata que cospe do primeiro balcão — e xaroposo — o garoto, irritante menino prodígio, é primo direito de MARCELINO, PÃO E VINHO — conquanto tudo isto não seja muito grave e pelo contrário bastante italiano. Mas sobretudo apresenta-se como uma mistura indigesta de discursos: discurso cultural — sobre o cinema —, psicológico — os dissabores sentimentais do jovem projeccionista —, social — a Sicília, terra de contrastes —, simbólico — o projeccionista mais velho fica cego — e por aí fora, o que evidencia a incoerência do projecto, a desadaptação entre as ambições e os meios. Para além de tudo isto, é um filme mal feito pois contém três ou quatro cenas extraordinárias — cujo sentido transcende aliás o da própria acção: o projeccionista que transfere a imagem para a parede do outro lado da praça porque a partilha da emoção não se pode recusar, o leão que vomita o feixe luminoso e materializa o carácter fantástico do aparecimento da emoção, a destruição do estabelecimento vista como um derradeiro espectáculo e no fundo com a mesma indiferença, e por fim a projecção de todos os beijos censurados, reunidos numa sequência, que indica definitivamente o sentido da exaltação provocada pelo espectáculo cinematográfico — que a realização massacra por incapacidade de as destacar — a película arde justamente durante a projecção desviada para a parede exterior, o focinho do leão é mostrado um sem-número de vezes, mesmo depois de derrubado (intacto, note-se), a explosão é filmada de perto (como documento) e de longe (como espectáculo), os beijos são cortados com cenas de erotismo duvidoso que lhes tiram força e sentido. O que significa que Tornatore talvez seja um bom argumentista mas não é decerto um bom realizador. As ideias, mesmo geniais, não fazem o filme. Não podemos deixar de lamentar que o filme não seja o que houvera de ser, porém não hesitaremos em reconhecer a mediocridade muito pouco edénica de CINEMA PARADISO. A verdadeira crise do cinema vem da nossa necessidade de avaliar um filme deste tipo como referência qualitativamente superior à média da produção europeia. S.