O fantasma partilhado

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O FANTASMA PARTILHADO A imagem cinematográfica tem sempre um carácter onírico. A estética realista do cinema, apesar de ter permitido pôr em causa a própria positividade do real, trabalhou no sentido de reduzir o impacto da imagem através da convencionalização; em contrapartida, a estética do estúdio alimentou uma dissociação entre o espectáculo e qualquer enraizamento no real, fazendo deste uma fantasia inofensiva. Os realizadores que se atreveram a utilizar o parentesco entre o sonho e o cinema dentro da estética realista são relativamente raros; os seus filmes mantêm uma força emotiva que os destaca do quadro geral da produção. Contudo, na maioria dos casos, o recurso ao fantasma procura um álibi, um contexto que permita evidenciar o carácter onírico de tal ou tal cena e tranquilizar assim o espectador — mesmo Fellini e por vezes o próprio Buñuel entram nesta categoria. Ora, a força do fantasma reside no facto de ser vivido como real, no momento em que é sonhado. A eficácia de Bergman baseia-se numa manipulação do espectador que é sem aviso levado a abandonar o domínio das certezas realistas ou das simetrias convencionais para entrar no fantasma de tal personagem. A par de certas constantes temáticas — o isolamento, frequentemente figurado pelo espaço ilha; a representação que se transforma em verdade; a angústia do envelhecimento que prevalece sobre o medo da morte, etc. —, é possível observar, na obra de Bergman, uma evolução na estratégia da encenação do fantasma e da sua integração numa narração realista. O olho de vidro que a velha arranca em ATRAVÉS DO ESPELHO ou o exame em MORANGOS SILVESTRES são dados à partida como cenas de sonho. Se o espectador acede a partilhar esses fantasmas — a participar emocionalmente na ficção —, é por uma espécie de forcing: a surpresa no primeiro caso; a repetição, que faz do exame o objecto simbólico do filme, no segundo. Este tipo de estratégias pertencem à panóplia clássica da narração cinematográfica, elaborada no tempo do mudo — para o qual estes filmes remetem —, a saber: uma composição baseada na escolha do enquadramento e na montagem rápida de grandes planos. Assistimos ao aparecimento duma nova estratégia, com LÁGRIMAS E SUSPIROS, que assenta sobre a perversão da ficção recebida pelo espectador. Tratase, de facto, de enganar o público obrigando-o a reconsiderar o que viu, a pôr em dúvida a veracidade induzida pelo realismo: o espectador vê o marido regressar a casa e suicidar-se; acompanha a heroína no seu sentimento de culpa durante toda a primeira parte do filme na medida em que esta culpabilidade se alicerça num motivo incontestável; mas, na segunda parte o marido regressa, vivo e intacto, porque o suicídio só ocorreu fantasmaticamente no espírito da esposa. Trata-se de um processo de manipulação próximo do «falso flash-back», que valeu a Hitchcock severas críticas pelo seu STAGEFRIGHT: o espectador é privado da sua liberdade de participação e é forçado a assumir uma culpabilidade duplamente pesada por não pertencer à «realidade» ficcional mas ao fantasma. Este esforço de questionamento das imagens apresentadas é inviabilizado pelo próprio jogo da convenção realista. Em O OVO DA SERPENTE, a manipulação atinge um grau superior porque, para além de tocar as cenas representadas, abala as certezas do espectador sobre o mundo que o rodeia fora do filme: o protagonista e a sua cunhada moram juntos num apartamento cedido pelo médico que dirige o hospital; têm uma zanga — cena conjugal na qual qualquer espectador pode identificar-se ou identificar uma realidade íntima —; descobre-se, no fim do filme, que o citado desentendimento era provocado por um gás que o médico testava com personagens-cobaias. Numa primeira fase, o espectador avalia sob outro ponto de vista a zanga-ficcional — a que assistiu —, mas depois deverá reconsiderar as suas próprias relações conjugais ou familiares — reais — assimiladas ao espectáculo da zanga. O filme desenvolve-se «en abyme» — a manipulação do espectador é representada dentro do filme pela manipulação das personagens —, mas transborda do quadro da sua ficção para invadir o real —, e aí o espectador já não tem a desculpa das condições excepcionalmente miseráveis da Alemanha dos anos 30, nem a da experiência de laboratório. Tratase, em todo o caso, de levar o espectador a partilhar uma culpabilidade, ainda que se forneça uma justificação psicológica para o acto condenável.


Assim, em FANNY E ALEXANDRE, se bem que os indícios deixem entender que o assassínio e o incêndio final poderiam não passar de fantasmas — no filme surgem aliás outros fantasmas de assassínio e o violento desenlace é precedido por uma cena nitidamente onírica em casa do velho judeu —, o importante é tornar o espectador solidário da criança e fazê-lo participar emocionalmente no acto criminoso. A gravidade e o rigor dos filmes de Bergman parece-nos resultar mais profundamente deste questionamento do real — tanto o da ficção fílmica como o da outra ficção, na consciência do espectador — do que duma simbologia do espaço tantas vezes simplista e sobretudo repetitiva ou do jogo cio verdadeiro e do falso na representação, que pertence essencialmente à problemática do teatro e que o cinema permite ilustrar mas não aprofundar. Porém, ao manipular o espectador, Bergman tem um papel libertador. Por um lado porque as raízes religiosas — puritanas — e convencionais — burguesas — do meio social que engendram a culpabilidade são incansável e ferozmente denunciadas. Por outro, quando o fundamento activo da culpa é posto em causa, a culpabilidade aparece como ficção: é sobre o peso do fantasma, enquanto ficção que comanda os nossos actos, que os filmes de Bergman nos convidam a reflectir; os filmes contêm simultaneamente o peso da culpa e o desvendar do seu carácter ficcional, revelação esta que poderá permitir ao espectador livrar-se desse peso ou, pelo menos, reagir. S.


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