O GRÃO DE AREIA A retrospectiva da obra de Paradjanov ter-nos-á permitido perceber a inovação estética dos seus filmes, a partir de A COR DA ROMÃ, como consequência de um percurso no decorrer do qual Paradjanov acompanhou as experiências da vanguarda europeia, por vezes mesmo adiantando-se em relação a elas. Exceptuando o primeiro filme, ANDRIECH, para crianças, no qual retrospectivamente vislumbramos algumas escolhas que mais tarde servirão de base à elaboração da sua estética — da temática, forças míticas em presença, à técnica, utilização do plano-sequência —, Paradjanov parece, à partida, perfeitamente integrado na produção média soviética — argumentos indigentes, glosando o estafado «boy meets girl», em que o «happy-end» só é possível quando o herói se alia às hostes da ideologia produtiva Komsomoliana. O único aspecto dissonante e susceptível de gerar alguma surpresa é a diversidade estilística de filme para filme — distanciação e amplitude em O PRIMEIRO RAPAZ, contrastes violentos de luz e composição eiseinsteiniana dos enquadramentos (com uso e abuso do contra-picado engrandecedor) em A PEQUENA FLOR NA ROCHA — neste último, o evidente domínio da gramática «clássica» revela-se, infelizmente de todo em todo gratuito. Apesar de um desenlace visivelmente imposto, a RAPSÓDIA UCRANIANA é já um trabalho de outra envergadura: toda a narração é construída, a partir de um flash-back inicial, sobre uma sucessão não-cronológica de momentos das duas aventuras paralelas de amantes condenados, desde a primeira separação, a não mais poderem juntar-se; a passagem de um trajecto para o outro acontece a cada regresso cíclico de uma viagem — os carris são vistos da parte da frente do comboio. A este retalhamento narrativo sobrepõe-se uma estrutura de pot-pourri musical: cada etapa do percurso individual dos amantes é caracterizado por um trecho de música clássica, o único meio de comunicação que transcende a separação física, ela mesma reflexo da condenação de um mundo em que a guerra surge como indício fiel da mundana precariedade. Neste filme observamos também certos movimentos de câmara excepcionais que anunciam o fogode-artifício de AS SOMBRAS DOS ANTEPASSADOS ESQUECIDOS, certas sequências de montagem puramente repetitiva — os «papéis» de ópera da heroína — bem como a tentativa de atingir o máximo de concentração semântica num só plano — culminando talvez com a cena da sinfonia nas ruínas. Todavia, RAPSÓDIA UCRANIANA faz parte do conjunto das fitas renegadas por Paradjanov após AS SOMBRAS DOS ANTEPASSADOS ESQUECIDOS, que se impõe como filme de ruptura na sua obra. A posteriori, com AS SOMBRAS DOS ANTEPASSADOS ESQUECIDOS, Paradjanov parece ter esgotado todas as possibilidades de movimento de câmara — uma mobilidade tão excepcional implica uma encenação rigorosa em que a distância é transferida circularmente: os travellings são, de facto, panorâmicas com tele-objectiva. Toda a construção da obra obedece a um esquema musical ritmado por uma figura narrativa, a morte, e por uma figura visual, o travelling vertical de grua, as quais, confundidas no primeiro plano do filme — queda «subjectiva» da árvore — só voltam a reunir-se no fim, na hora da morte do herói. Esta estrutura é reforçada — tornada visível — pela divisão em capítulos, que Paradjanov adoptou sistematicamente de então para cá. Enquanto a mobilidade inaudita faz de AS SOMBRAS DOS ANTEPASSADOS ESQUECIDOS um dos filmes mais líricos da história do cinema, o enredo situa-se para além do próprio trágico, na medida em que os mortos se sucedem de tal modo que a revolta e o amor não são condenados mas imediatamente massacrados e só podem ser vividos de forma nostálgica: o pai morre mal pronuncia a primeira palavra, a noiva afoga-se antes de chegar ao encontro... Paradoxalmente, a prisão, a perspectiva de nunca mais voltar a rodar, parecem ter trazido a Paradjanov não só a libertação de todas as convenções históricas que pesam sobre o cinema e a opção por uma estética submetida a uma lógica estritamente poética, como uma certa serenidade. Existe uma grande proximidade entre os últimos filmes de Paradjanov — A COR DA ROMÃ, A LENDA DA FORTALEZA DE SURAM e ASHIK KERIB —, não só a nível formal — exclusividade do plano fixo (conquanto não se trate de um parti gris absoluto quando o movimento desencadeia um sentido novo, Paradjanov não hesita em recorrer ao travelling, como no último plano de PIROSMANI), referência pictórica dos enquadramentos, restituição de ordem etnológica dos costumes e dos ritos, acompanhamento musical
tradicional exaltando e ritualizando a acção, divisão em capítulos autónomos mas que funcionam por correspondência segundo uma estrutura de simetria na composição de conjunto do filme (da partida de Ashik Kerib afastando as romãs pretas ao seu regresso afastando as romãs brancas) — mas também ao nível de algumas recorrências temáticas: da omnipresença da romã, simbólica do coração humano, à estrutura geral inspirada nos contos populares, com o herói submetido a uma série de provas que incluem o exílio, à identidade musa/noiva, passando pela necessidade de enterrar o pai adoptivo ou espiritual, etc. A escolha do plano fixo indica qual o campo explorado por Paradjanov: para além das origens, trata-se de redescobrir o poder de fascínio — captação do olhar e paralisia — do cinema. Cada plano é uma composição pictórica em torno de objectos simbólicos, mas qualquer objecto pode tornar-se simbólico. Paradjanov recorre a uma iconografia tradicional — presente sobretudo no guarda-roupa e nos cenários — misturando-lhe livremente as suas próprias imagens, os objectos da sua simbologia — ou evidência poética — pessoal que se hieratizam em contacto com os outros. Esta mistura de elementos tradicionais reinterpretados e de figuras próprias do autor coincide de facto com o princípio da «colagem» surrealista, e não é surpreendente encontrarmos verdadeiras citações: a rosa que toma o lugar do rosto (Magritte) e a mão estendida em primeiro plano a indicar a direcção (Ernst: «Une semaine de bonté») em A COR DA ROMÃ. A tensão resulta do encontro no mesmo plano do peso respectivo dos diversos elementos e resolve-se no decorrer do próprio plano. A duração substitui a mobilidade — evolução nítida na obra de Paradjanov da «imagemmovimento» para a «imagem-tempo»: a passagem da moça à mulher ao tomar a sucessão da vidente em A LENDA DA FORTALEZA DE SURAM. A composição dos planos funciona por depuração dos elementos — dotados de um forte peso simbólico: detecta-se aliás um forte parentesco, apesar da oposição estilística, entre o trabalho de Paradjanov e o de Tarkovski, do valor da duração à presença de elementos idênticos (a água a escorrer em A COR DA ROMÃ, as abóbadas desmoronadas); ASHIK KERIB é significativamente dedicado a Tarkovski — sem hierarquia convencional: em ASHIK KERIB aparecem metralhadoras-brinquedos de plástico que têm uma carga equiparável ao beijo no bico da pomba. Paradjanov atingiu nos seus filmes uma liberdade comparável à de Picasso na pintura — em ASHIK KERIB acrescenta-lhe a distância e o humor e deixa a porta escancarada para um cinema despido das convenções. S.