O militante

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O MILITANTE Todo o discurso se situa, implícita ou explicitamente, num contexto histórico e sócio-económico, i. e. todo o discurso é político. Todavia, o poder é obrigado a manter uma imagem de integridade, de postura ao serviço do eleitor que o leva a não assumir abertamente esta dimensão — a TV nunca diz: «ouçam o discurso do poder» mas sim «mantenham-se informados». Logo, o rótulo «político» só é reivindicado pelos discursos de oposição ao poder. Por outro lado, na medida em que o jogo «democrático» reduziu a participação dos cidadãos no processo de governação ao simples acto eleitoral, a palavra «político» passou a estar tão indissociada da actividade partidária que o conceito tem vindo a ser rejeitado por todos os autores de discursos ciosos de preservar um mínimo de independência. O político, que constituía uma dimensão inegável de qualquer discurso, de qualquer prática, parece doravante reservado a uma «classe» e transformou-se numa «ciência» especializada. O abandono de um conceito não pode contudo justificar-se pelo mero facto de o poder o ter desnaturado e a dimensão política deve continuar a ser analisada e reivindicada. Brecht encarava a hipótese de renunciar ao conceito de «arte» submetido no nosso sistema sócio-económico a um mercado... e os críticos dos Cahiers do Cinema não hesitaram, há uns anos atrás, em disputar a Fellini o seu estatuto de «artista»! Assim, o cinema que se assume como político é um cinema de combate. A par de um cinema de intervenção que possui um circuito próprio, o cinema «político», utente do circuito do cinema standard, caracteriza-se acima de tudo pela negação ou recusa das normas da narração cinematográfica convencional: sendo certo que a câmara ficcionaliza qualquer objecto filmado, trata-se de eliminar um ou mais suportes dessa ficção que indirectamente glorifica de maneira sistemática o poder que permitiu o seu aparecimento — esses suportes podem ir do herói diegético à invisibilidade da montagem, passando pelo estúdio, pelos modos de produção, etc. Os filmes desse tipo denunciam a manipulação que vigora no cinema standard com o qual estão em concorrência. Em contrapartida, o político intra-diegético não passa dum tema entre muitos outros e o empenhamento dos autores uma mera convenção anulada pelo segundo grau de leitura: do ponto de vista estrutural, Costa-Gavras só realiza filmes policiais — ingredientes idênticos (inquérito, fuga ou confronto mortal) móbil emotivo igual (descobrir a «verdade» intra-diegética, assistir à evasão ou à captura do perseguido...) —; A. Joffé dirige filmes de guerra, embora o herói seja o jornalista e não o soldado — os perigos e as proezas são os mesmos —; S. Lumet aborda sobretudo as relações familiares e o contexto «político» poderia facilmente ser substituído. O cinema político identifica-se principalmente em termos estéticos em relação a uma estética dominante. Esta atitude assenta aliás no reconhecimento da força do modelo convencional; lembremos que Godard ou Fassbinder começaram por admirar e até copiar os processos narrativos hollywoodianos antes de passarem a desmontá-los e a elaborar uma estética crítica. Por outro lado, salvo raras excepções — Wiseman, Rogosin, documentaristas —, o cinema político que conhecemos é essencialmente europeu, i. e. obra de cineastas que pertencem a uma cultura dominada. Todavia, em Fellini não encontramos essa negação, essa recusa inicial. Deparamos muito pelo contrário, com uma afirmação, com uma adição, com um excesso. Ora, se analisarmos tal atitude, constatamos que a denúncia, o empenhamento e o discurso político são tão intrínsecos na obra de Fellini como na daqueles que sentem necessidade de verbalizar essa dimensão. Aliás, a contradição aparente vai-se atenuando ao longo do percurso do cineasta, à medida que o cinema que Fellini pratica e defende, com todos os seus suportes convencionais de ficção, surge como actividade ameaçada (não queremos retomar aqui as questões abordadas no nosso artigo «Contradição não ambiguidade» in A Grande Ilusão n' 6, pelo que deixaremos de lado alguns aspectos relevantes). Ao adoptar deliberadamente o modelo do circo, Fellini põe de parte a estrutura romanesca que rege a narrativa cinematográfica standard sem tentar desmontá-la ou pô-la em causa de forma directa. Fellini conta histórias que obedecem mais ou menos a uma cronologia — a despeito da abundância dos «flash-back» e das cenas oníricas — como protagonistas acompanhados em continuidade — apesar da dispersão provocada pela multiplicação dos lugares e das personagens — utilizando todos os recursos do estúdio —, i. e., no quadro duma produção demasiado cara para não ser estritamente


controlada pelo menos ao nível do discurso. Mas Fellini derruba o modelo dominante que aparentemente escolheu, minando-o por dentro, pervertendo-o pelo excesso. A diegese perde a força ficcional de base que advém da «impressão de realidade» devido ao carácter visivelmente onírico das cenas; Fellini vai mais longe, não se contenta com o esplendor feérico das comédias musicais — o seu cinema revela que a «magia espectacular» se obtém com pedaços de plástico, telas pintadas, etc. — não se limita a mostrar os bastidores, como em O NAVIO, GINGER E FRED e ENTREVISTA, não esconde o artifício — exibe oceanos e gelos plastificados em CASANOVA, céus pintados em SATYRICON; chega ao cúmulo de des-realizar os elementos «naturais» que intervêm nos seus filmes misturando-os aos elementos artificiais sem delimitar fronteiras. Fellini subverte o código narrativo através do excesso de sentimentos expressos que podem mudar dum momento para o outro — do desespero ao sorriso de Cabíria, da censura à obsessão do funcionário em BOCCACIO 70, do cagaço à vaidade de Ginger, etc. — e infringe as regras de produção quando se recusa a respeitar uma planificação ou até um plano de trabalho, procurando figurantes nos matadouros de Roma e contratando dezenas de desempregados em cada rodagem, indiferente perante o risco de levar os produtores à falência. Note-se que o excesso vai sempre no sentido da afirmação dos valores sentimentais contra a miséria do quotidiano, dos valores pessoais, quando não narcísicos, contra uma ficção socializada dos valores culturais — i. e. locais, italianos — contra um padrão desenraizado, etc. Neste contexto, parece «natural» que as instituições políticas — o fascismo em ROMA e AMARCORD, a igreja em AS NOITES DE CABÍRIA e ROMA, as classes dirigentes em LA DOLCE VITA, os meios cinematográficos em OITO E MEIO e TOBY DAMMIT, a televisão em GINGER E FRED e ENTREVISTA, as autoridades partidárias em AS VOZES DA LUA, os encontros feministas em A CIDADE DAS MULHERES, os machistas em CASANOVA e A CIDADE DAS MULHERES, etc. — sejam arrasadas pela força do ridículo. É certo que Fellini não propõe qualquer análise, mas nem por isso as ataca com menos veemência, na medida em que, ao evitar o discurso verbal, ignora os preceitos do pudor. Além disso, Fellini só fala daquilo que conhece, daquilo que o toca directamente, assumindo que o cinema é um microcosmos mimético do mundo «real» com a única diferença de que vivemos no segundo. A exuberância de Fellini é comunicativa: os seus filmes são recebidos como convites insistentes a obedecer apenas ao princípio do prazer — que a ambição de Casanova aniquila quando o gozo do amante passa a ser mecânico, ritmado por um metrónomo; que a máquina televisiva mata ao promover a sucessão de números sem deixar o menor tempo para que os artistas partilhem a emoção (GINGER E FRED); e que está obviamente na mira de destruição do poder submetido a uma lógica de traição constante abrindo caminho ao massacre (O NAVIO). Por último, Fellini é um cineasta que sempre reivindicou a maior liberdade para o autor, centrando os seus filmes sobre fantasmas onde cada qual se reconhece embora se apresentem como puros caprichos pessoais, não hesitando em mandar construir um cenário para do mesmo só filmar ruínas, multiplicando os movimentos de câmara num desrespeito absoluto pela gramática fílmica, guiado tão-somente pela lógica da materialização pontual de um impulso — de fascínio, de emoção ou de riso. O «inclassificável» Fellini aparecenos, no fim de contas, como talvez o mais político dos cineastas, um dos únicos a ter procurado perceber a sua própria atracção pelo cinema, a ter tentado encontrar razões para uma criação tão irrisória — cf. o nosso artigo «A resposta às perguntas» in A Grande Ilusão nº 6 —, a ter sentido necessidade de justificar aos seus próprios olhos o amor por uma arte de pacotilha, que constitui um dos derradeiros espaços sociais onde o sonho e a utopia ainda têm lugar e cuja defesa e perpetuação representam uma luta tão urgente e impiedosa como as grandes causas políticas que os media ao serviço do poder nos apresentam periodicamente. S.


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