O mostrador de marionetas DÍPTICO in memoriam João Paulo Seara Cardoso
A organização do espectáculo decompõe-se em duas partes distintas: uma de natureza sonora, outra de natureza visual. A primeira, por razões essencialmente técnicas, deve ser pré-gravada: uma só pessoa, modificando a sua voz, deverá proferir as deixas de todas as personagens, exceptuando o público. À medida que a peça se vai desenrolando, como a acção se vai acelerando, as personagens devem poder ser brutalmente interrompidas umas pelas outras, ou mesmo falar ao mesmo tempo, de maneira a que, a partir do fim da cena 7 (a guerra), o ambiente seja confuso, sem que o texto deixe todavia de ser perceptível. Exemplo: no início da cena 8, a mesma voz, deve também soltar os gemidos dos corpos em agonia. A segunda é uma espécie de coreografia de costas, cada vez mais veloz e virtuosa, porque o mostrador tem de manipular, além das personagens principais, pedaços de cenário, figurantes, etc., dos quais só vemos a introdução no palco / entrada em cena. É durante o fornecimento dos adereços e das personagens secundárias que os dois ajudantes do manipulador se enganam, correm incessantemente para cima e para baixo, sempre aos encontrões um com o outro. O cenário representa as traseiras e a trave superior de um teatro de marionetas (castelet em francês). O cenário é pois constituído por complicados mecanismos (uma espécie de mini-teia, cruzetas, ganchos, roldanas, etc.) visíveis quando habitualmente o não são num espectáculo de marionetas. As cruzetas das marionetas de fio estão pousadas nos ganchos (só elas se vêem e não os bonecos). Durante o espectáculo, a dada altura, uma marioneta pode saltar. O marionetista-manipulador, é imponente – muito grande ou muito gordo –, de venerável barba branca, comporta-se como Deus Pai. Quer, pode e manipula. Os seus ajudantes-aprendizes são criaturas franzinas e ágeis. Um deles, de aparência angélica (asas, túnica acetinada de cores claras) e comportamento bajulador, não pára de correr dum lado para o outro porque tem de preparar marionetas e adereços mas não conhece de antemão o espectáculo. O segundo é um diabrete (asas de morcego, porventura cauda pendendo entre as nádegas, vestido de cores escuras) e, ao tempo que vai ajudando o espectáculo a avançar, não deixa de pregar partidas e de lançar apartes que revelam uma espécie de agenda escondida.
I. O PRINCÍPIO: AQUI NA TERRA O JARDIM Murmúrios entrecortados de silêncios e risadinhas. O Anjinho e o Diabrete examinam duas bonecas nuas: são marionetas que representam as figuras míticas de Adão e Eva. PRÓLOGO O JARDINEIRO – Este é o meu jardim. Posso dizer-vos que ele saiu de mim. Mas não fiz o meu jardim para meu uso. Apenas para meu bel-prazer. E é meu prazer olhar para os que se deleitam no meu jardim. São quase sempre crianças. São os meus anjos, furiosamente felizes como bichos à solta. O meu jardim está pejado de árvores de fruta. A fruta que aqui cresce dava para matar a fome à terra inteira. A fruta que aqui se colhe alimenta a barriga, os olhos e o coração. Soa bem debaixo do dente e enche a narina de perfumes delicados. São pomos e bagas e cachos tão bem crescidos e criados que apetece acariciá-los com a palma da mão. (Pausa) Oh... Mas que vejo eu? O senhor Adão a caminhar nesta direcção...!!! Até parece que me ouviu falar... CENA 1 O Anjinho vai apressadamente entregar a marioneta Adão ao Manipulador. O JARDINEIRO – Bons olhos o vejam, senhor Adão. Entre... Faça como se estivesse no seu quintal. Aqui toda a gente entra sem ser convidado. Há anos que o vejo partir e voltar e sempre achei que um dia o senhor viria dar dois dedos de conversa ao seu velho vizinho... ADÃO – É que eu não tenho a sua santa vida, caralho! O JARDINEIRO – Sim, claro, mas sobra sempre um tempinho para a boa vizinhança. E aproveita-se para arejar a cabeça, respirar fundo, mudar de ideias... ADÃO – Isso é bom para quem não tem de fazer pela vida. O JARDINEIRO – E a senhora dona Eva, como tem passado? ADÃO – Oh, anda c'os azeites. (Hesitando) Sabe, ela também esteve para vir, talvez ainda pinte por aí. Coitada, não há que não lhe pegue. Mas boa sim. Boa como o milho, caralho!!! O Anjinho e o Diabrete contemplam a marioneta Eva. O Diabrete arranca a folha verde que, colada ao nível do púbis, dissimulava o sexo da boneca. O Anjinho quer voltar a colocar a pudica parra, mas o Diabrete atira a folha para longe. Então o Anjinho vai arrancar uma folha a um ramo de vinha que se encontra arrumado no
meio dos adereços e cola-a no corpo da marioneta, porque o Manipulador já está a dar sinais de impaciência. O JARDINEIRO – Estimo muito, estimo muito... ADÃO – E duma raça!!! EVA – Já estás a dizer caralhadas por essa voca fora, num é, meu morcom? Então num cumbinámos que binhas aqui acertar o passo ao belho? O Diabrete quer levantar as saias do Anjinho que reprime um grito e se vai refugiar aos pés do Manipulador. O JARDINEIRO (sem perder a calma, nem elevar o tom de voz) – O velho sou eu, está visto. O Manipulador tenta fazer com que o Diabrete se porte bem. Os seus gestos são firmes e ameaçadores. EVA (sem ouvir o comentário, aos berros) – E não é que benho dar contigo na paleta como se o cabrão fosse felor que se cheirasse...!!! O JARDINEIRO – Sossegue, dona Eva, sossegue. Eu é que estava a atrasar o seu marido... EVA (para Adão) – E tu, só porque o sujeito é assim cheio de nobes fora, até já nem dabas cuonta do recado, ó minorca. O JARDINEIRO – Não se apoquente, dona Eva. Eu ia convidar o seu homem a dar uma voltinha pelo jardim. Tenho todo o prazer em convidá-la a si também. Não que seja preciso convite ou autorização. Mas faço questão de os acompanhar. As árvores estão carregadas de fruta. Quanto mais a criançada colhe e come, mais elas dão. EVA (tom de desprezo altivo) – Comtidade num é colidade... E num pense que é com fruta e falinhas mansas que me bai amansar. O JARDINEIRO – E o senhor Adão que acha de colocarmos um baloiço na cerejeira? Os galhos são rijos e já dão boa sombra... EVA – Olhe, inbez de os botar a valoiçar, não seria mais milhor amandar podar a ramage e cortar a relba? Num era eu que punha os cotos neste matagal, caraças. É que num debe faltar covras por aí... O Anjinho e o Diabrete estão sentados frente a frente, cada um na sua extremidade. Com ar de poucos amigos, quedam-se a olhar um para o outro. O JARDINEIRO – Nem cobras, nem lagartos, nem lacraus, nem ratazanas... nenhum bicho que possa perturbar o bem-estar dos meus anjinhos. EVA – Tem a certeza? Olhe que as covras som muito traiçoeiras...
O JARDINEIRO – A certeza absoluta. Ninguém mais do que eu quer zelar pela segurança dos meus anjinhos... ADÃO (para Eva, tom melado e submisso) – Eva, minha pomba doce, não me queres deixar tratar desta empreitada e ir adiantando a janta, que eu tenho treino logo à noite? EVA – Se queres morfar, faz-te à bida. Olha, pede ó belho que te faça uma seladinha de fruta...! ADÃO – Achas-me com cara de vegetariano, ó ganda vaca? O JARDINEIRO (conciliador) – Não querem mesmo dar um passeiozinho? Assim como velhos namorados...? É que, até certo ponto, eu fiz este jardim a pensar em vós. E é delicioso ver os meus anjinhos a correr, brincar, trepar, baloiçar por toda a parte. Quanto mais se sujam mais patuscos e comoventes são. E quando querem comer... basta-lhes estender a mão. O Diabrete vai buscar um pau muito comprido. O VIZINHO ADÃO – Cambada de bandalhos. Não param de berrar como bezerros desmamados. Malcriados, mal cheirosos, mal vestidos. Esfarrapados. Os seus anjinhos parecem bandidos em ponto pequeno, caralho. O Anjo e o Diabrete estacam, estarrecidos, na posição em que se encontram. Depois, percebendo que os berros nada têm a ver com eles, retomam a sua azáfama. A vizinhança começa a estar farta deste filme. É uma porra duma pouca-vergonha. Um mau exemplo para os nossos. Eu sou um gajo bem intencionado. Não fico a remoer vinganças atrás da cortina. Sou um gajo que dá a cara – O Diabrete levanta as saias do Anjinhos com a extremidade do pau. O Anjinho foge. O JARDINEIRO (interrompendo e apontando para um dos miúdos) – Reparou naquele mais pequenito que os outros? Reparou como ele trinca na maçã? Vê-se que está deliciado e é um deleite vê-lo, senhor Adão... O VIZINHO ADÃO – E o meu ganapo mais novo que passa a vida a reclamar como gente grande? Enquanto o filho da puta do anjinho enche o bandulho, o meu reclama porque a mãe já não tem leite, a fruta está pela hora da morte e as nossas árvores secaram todas. Ora foda-se, isto não é justo. Uns até se cagam de comerem tanta fruta a toda a hora, enquanto que outros ficam a ver navios. Cada maçã que o seu chavalito come é uma que o meu nem cheira. O JARDINEIRO – Eu fiz este jardim para todos colherem todos os frutos sem ninguém ter de se vergar ou de amargar... Por que é que não deixas o sangue do teu sangue vir para o meu jardim, divertir-se com gente da idade dele? Eu tenho olho na canalha, sabes disso, não sabes?
O Anjinho, perseguido pelo pau do Diabrete, tropeça. O VIZINHO ADÃO – Até diabo se ria!!! Um filho meu...? Misturado com estes maltrapilhos ranhosos? Aqui só aprendia a rapinar e a mandriar, caralho...! E eu tenho outros planos para a minha prole. EVA – Num queremos que eles tenhum de bir mais tarde a suar para ganhar a porcaria do pom nosso de cada dia. Fuoda-se!!! O VIZINHO ADÃO – O seu jardim é uma escola do vício. O JARDINEIRO – Não vejo em quê... Na verdade, são os inocentes, as crianças, que mais aproveitam as horas de sol e nunca lhes vi fazer nada que não fosse inocente. O VIZINHO ADÃO – Isso é porque o vizinho não vê para além do que se vê... O Manipulador dá uma bofetada aos seus ajudantes entre duas deixas. O JARDINEIRO – Acha? O VIZINHO ADÃO – O vizinho tem falta de visão. Em vez de deixar o terreno ao deus dará, eu, se fosse a si, fazia-lhe uma tosquia, cercava o jardim com uma sebe... ou melhor, com um muro e... e depois arame farpado a toda a volta. EVA – Botava-lhe uma cancela... O Manipulador agarra no pau do Diabrete e, como uma professora com o seu ponteiro, bate em ambos os ajudantes. O VIZINHO ADÃO – Uma cancela não, mulher, um portão. Um portão e um muro com arame farpado reforçam o carácter... o carácter dissuasivo. É isso: digamos que uma cercadura e um sistema de vigilância – e um guarda é o sistema mais simples que existe, caralho – chegavam para repor a ordem... e a justiça. Acabam-se as baldas, acabam-se as mamas. Sem falar dos estragos que um gajo pode evitar: ramos partidos, fruta desperdiçada ou mal empregue, caganeiras, joelhos esmurrados, narizes partidos, braços ao peito, pernas no gesso. O JARDINEIRO – Portanto eu teria de passar a vida a abrir e fechar portas... O senhor quer-me transformar em porteiro, mas eu tenho mais que fazer e – O VIZINHO ADÃO – Se for só esse o seu problema, não me importo de aceitar o emprego, caralho. Até lhe fico grato. Mais grato do que esses vadios a que o senhor chama anjos. Foda-se... EVA – O bizinho já biu as tromvas da sua canalha...? Se o hávito faz o muonge, nem o diavo os quer lá nas profundezas do inferno, caralho...
O JARDINEIRO – Ai, eu sou pouco de fechaduras e cercaduras. Mas o senhor Adão sempre me pareceu, lá no fundo, no fundo, boa gente. Tente-se pois a experiência. Só quero que se tire o melhor proveito possível do meu jardim... O Anjinho e o Diabrete vão buscar bocados de sebe, tapume, arame farpado e outros acessórios. O Anjinho arranha-se. Tentam passar os adereços muito depressa ao Manipulador, mas alguns caem. CENA 2 Obras. Ruídos de máquinas em movimento. Barulho de estaleiro: marteladas, machadadas, perfurações, etc. Ao cabo de algum tempo, ouve-se um apito estridente. O Anjinho e o Diabrete estacam quando soa o apito. O GUARDA ADÃO – Gandula! Agora não me escapas...! Bandalho! Rufia! Insurrecto! Indigente! Ladrão! Delinquente! O PUTO – Eu não queria... O GUARDA ADÃO – Vai para o caralho...! O PUTO – Eu não sabia... O GUARDA ADÃO – Ui... O menino não sabia e eu sou a Virgem Maria. O PUTO – Mas eu não imaginava... Eu não estraguei nada, só – O GUARDA ADÃO – Tu não... tu não... Só quebraste um ramo... Só roubaste uma arroba de maçãs... O PUTO – Uma arroba?????? Um quilo se tanto... O GUARDA ADÃO – Não importa... Quem rouba uma maçãzinha com a tua idade, rouba um banco com a minha. O JARDINEIRO (entrando em cena, tom de pessoa transtornada) – Mas, caramba, não faltam maçãs e outras frutas no meu jardim...! Como que para fazer as pazes com o colega, o Diabrete oferece-lhe uma maçã. O Anjinho aceita e trinca o fruto que é de espuma. O Diabrete escangalha-se a rir. O GUARDA ADÃO – Ó patrão, é uma questão de princípio! Se um mariola roubar a fruta de uma árvore, de uma árvore que é suposta contribuir para o bem comum, significa que há outro puto, outros putos, noutra parte, noutras partes, que ficam a ver navios. O Manipulador bate com o pau em ambos os ajudantes. O Diabrete troça do Manipulador e faz-lhe continência para escarnecer da sua autoridade.
Ora, a árvore servia, segundo vossemecê me explicou, para acabar com a desigualdade entre os que comem e os que não comem. O JARDINEIRO – E onde está a igualdade neste teu sistema? O GUARDA ADÃO – Para já, ó chefe, se não comer este, nem comer o outro, já se restabeleceu uma igualdade à partida, c'um caneco. Se alguém tem de distribuir maçãs somos nós, somos nós a gente. Está a perceber chefe? Isto aqui não é self-service. Isto aqui não pode ser um ver se te avias. Tem que haver regras, porra! O Manipulador, de dedo em riste, ameaça o Diabrete. O JARDINEIRO – Tens um muro de três metros. És guarda. Com farda e arma e tudo. Que mais queres? O GUARDA ADÃO – Ó patrãozinho não se enerve que nem parece seu. Um guarda... um guarda é como uma árvore de fruto, assim especada, a criar varizes... só que inspira um bocado mais de respeito. Na vez de carregar fruta, carrega munições. Mas os humanos sendo como são... não chega. O JARDINEIRO – Vê lá o que dizes. Este jardim é a menina dos meus olhos. Fi-lo para agradar a todos os sentidos e em todos os sentidos. O GUARDA ADÃO – Blá, blá blá... A gente experimentou a segurança... Mas até um rufiazito salta a sebe, caralho! Já não há respeito pelas forças da ordem. Eu tenho andado a matutar no assunto, chefe. Enquanto faço a ronda, matuto, porra, muito matuto eu... É que, bem vistas as coisas, a fruta proibida é a mais apetecida. Ou seja: isto do muro, por si só, não resolve. Agora, se um gajo em vez de macieiras tivesse feijoeiros, um bom batatal, nabos e couves, algum cereal... nenhum filho da puta trepa a vedação, lhe garanto eu... O JARDINEIRO – A propósito de filhos... que fazemos com este que tu tratas se não fosse gente? Pomo-lo a distribuir maçãs porta a porta? É um correctivo adequado, acho eu... O Diabrete foi-se colocar a um canto, como se aceitasse o castigo do Manipulador. O GUARDA ADÃO – Correctivo? Julgava que o chefe sabia mais de pedagogia. Isto não vai com correctivos. Um cachopo não é como uma frase que se emenda, riscando e escrevendo por cima. Se pomos este morcãozinho desgrenhado a semear maçãs por aí, na volta recolhemos mais umas dezenas de rufias. E temos o caldo entornado. Não é de correctivo que estamos a falar, caralho! Estamos a falar de castigo porra! E há que chamar os bois pelos nomes. Um castigo, e o chefe devia saber isso melhor do que ninguém, é aquilo que ajuda o sujeito que prevaricou a pensar duas vezes antes de agir. Então vamos nós também pensar em voz alta. Será que os paizinhos do gaiato são melhores que ele? Resposta: não; quem sai aos seus não degenera. Será que podemos confiar a educação do gaiato aos progenitores? Resposta: não; junto dos maus, fica-se pior. (Interrogando o público) Para onde mandamos o pirralho ranhoso? O Diabrete, cochichando, sugere ao público as deixas que a assistência profere em coro.
PÚBLICO 1 – Para a tutoria! Para a tutoria! PÚBLICO 2 – Para a cadeia! Para a cadeia! PÚBLICO 3 – Para a tortura! Para a tortura! TODO O PÚBLICO – Não!!! Para o inferno! Mandem o fedelho para o inferno? O JARDINEIRO – Mandamos o miúdo para o inferno por ter, digamos, surripiado um quilo de maçãs? O Manipulador bate com o pau na carola do Diabrete. O GUARDA ADÃO – Qual inferno qual carapuça, patrãozinho...! A pestezinha vai directinha para a escola, que é bastante mais eficaz do que o inferno, o caldeirão e os bodes que por lá há. Aliás, podemos mandá-los a todos para a escola. Quero dizer: todos os badamecos, bandalhos, bambinos, donzéis e mancebos... Má raça não tem emenda. A escola faz essa canalhada toda entrar na linha. Chegam lá diabos e mafarricos e saem de lá anjos e meninos de coro. Vai ver que não nos arrependemos... O JARDINEIRO – Seja, seja. E onde vais tu buscar braços para tratarem do meu jardim à beira mar plantado... do meu pomar milagroso, do meu...? O GUARDA ADÃO – Dividida em talhões, ainda lhe rende uns trocos a sua horta... O JARDINEIRO – E quem te diz que eu quero pôr seja o que for a render? O Anjinho prepara os acessórios (ferramentas de jardinagem em miniatura) para a cena seguinte. O GUARDA ADÃO – Ó chefe, não seja mula, caralho. O chefe, com a sua bondade, não percebe um cu de natureza humana e de natureza natural. A natureza agradece quando a gente saca dela o que ela pode dar, porra! Eu trago uma fisgada, que eu cá sou como me fizeram: penso para caraças e não dou ponto sem nó. O JARDINEIRO – Desembucha que já me está a cheirar a esturro. Quem trata do meu jardim? Alguém em quem eu possa confiar, alguém – O GUARDA ADÃO – A minha Eva... quem melhor de o que ela? Tem mau feitio, mas é uma moirinha de trabalho. E o patrãozinho conhece-a como se a tivesse feito. CENA 3 Barulho amplificado de enxada a cavar a terra. A cadência da enxada a rasgar os torrões é interrompida por um grito de Eva, seguido da sua corrida ofegante. Até que, como se tivesse conseguido apanhar alguém, Eva estaca e fala quase aos berros.
O Diabrete transforma o adereço mangueira em serpente para meter medo ao Anjinho que não consegue reprimir um grito de pavor (que se confunde com o da adolescente apanhada por Eva). EVA – Onde está o teu mânfio, minha ganda puta...? Eva não obtém resposta. O Manipulador bate mais uma vez no Diabrete. EVA – Tu num te armes comigo que eu tenho pêlo na benta e memória de paquiderme. O Diabrete corre atrás do Anjinho. Ambos se envolvem numa luta. Choro convulsivo de uma adolescente. EVA – Bamos. Mexe cuzinho e as gâmbias. Bou-te alebar ao meu Adom e ao patrom dele. O patrom é um vananas, mas o meu ome – que agora é comissário, podes dovrar a língua se ele te fizer palrar – não gosta nada que o interrompum quando está a jogar às damas co senhor cura. Choro convulsivo da adolescente. Passo estugado de dois pares de pés. A agarra na marioneta vestida de padre e, gesticulando, faz como que um sermão mudo ao Diabrete. EVA (gritando estridentemente) – Adom! Adom-ooom! Adoooooooooooooooooom! O COMISSÁRIO ADÃO – Caralho mulher!!! Não sabes que eu não quero ser interrompido quando estou em reunião com as autoridades religiosas? EVA – Unde está o patrom? O COMISSÁRIO ADÃO – Está lá dentro. Que lhe queres? EVA – Num bês que bos trago uma gaija que apanhei ali devaixo das arbens? O COMISSÁRIO ADÃO – O patrão não é putanheiro... O Anjinho, apressadamente, vai entregar a marioneta do padre ao Manipulador. O Diabrete aproveita para enfiar a mão debaixo da saia do Anjinho. O Manipulador bate no Diabrete e agarra na marioneta do padre. EVA (num tom de voz quase gritado) – Ai ome que tu num tens entendimento que encha esse corpanzil, caralho!!! A gaija estaba devaixo das arbens cu mânfio dela a fazer poucas bergonhas. Tibe eu que andar atrás dos porcalhões para bocemecezes tere tempo de enrabar moscas, caralho! O JARDINEIRO (entrando acompanhado de padre) – Que tens Eva? Viste bicho bicho ou viste bicho homem?
EVA – Num escarneça de mim que eu num lhe mereço palabrões. Muita lávia, muita lávia, mas quem anda de olho posto nos fornicadores sou eu, a Eba, uma serba que travalha de sol a sol. O JARDINEIRO – Falas das borboletas, dos caracóis, dos bichos da conta... EVA – O patrunzinho é um poeta, nisso ninguém lhe chega aos calcanhares... Estou a falar desta lamvisgóia. O mânfio pôs-se nas putas. Nunca mais lhe bemos a sombra. O JARDINEIRO – A menina andava a caçar borboletas...? EVA – Acha, patrunzinho? A menina estaba enrolada com o chabalo. Uma sabida. Não sei há quanto tempo passarum na marmelada. Mas lá que marmelabam, marmelabam... O PADRE – Marmelavam, marmelavam até onde marmelavam os marmelos, minha filha? EVA – Marmelabam que até lhes custaba respirar, carago... O Anjinho e o Diabrete, cada um retirado no seu canto, arvoram uma expressão de amuo. O Anjinho presenteia o Diabrete com um gesto que representa um par de cornos. O COMISSÁRIO ADÃO – Este aqui estava aninhado junto ao muro a ganir... Foi ele que deu de frosques quando avistou as trombas da minha Eva. Mas torceu um pé. (Rise. Para Eva) Quer-me parecer, ó Evita Parola, que te baralhaste um bocado. Aqui o gajo assevera que nunca foi ao pito da pequena, porque não tem posses... O PADRE – Pois quer haja ou não haja acto consumado, foi-se para lá dos limites aceitáveis da decência. O Diabrete, mais uma vez, vai ditar ao público as respostas que se seguem, sussurrando como um ponto. O COMISSÁRIO ADÃO – Claro... isto assim não pode ser. Não vivemos em terra de ninguém. Não estamos num... num vazio legal... (Para o público) Que lhes fazemos, gente? PÚBLICO 1 – A tutoria! A tutoria! PÚBLICO 2 – A cadeia! A cadeia! PÚBLICO 3 – A tortura! A tortura! TODO O PÚBLICO – Não!!! O inferno! Mandem os badalhocos para o inferno? O PADRE – Houve comprometimento, compromisso, promessa, violação com consentimento, perversão sem arrependimento, comprazimento no vício. Só o santo sacramento do matrimónio pode lavar esta mácula e acalmar os ardores da carne. O
matrimónio é a nossa ferramenta legal para meter nos carris a carne e o espírito dos que descarrilam... O JARDINEIRO – Então o senhor cura acha que o casamento é o mais indicado nestes casos. O Anjinho experimenta colocar um véu de noiva na cabeça e faz uma série de poses como se sonhasse com o casamento. O COMISSÁRIO ADÃO – Ssssim. Ele há vezes em que a gaiola amansa a fera. Mas outras há em que a fera... O PADRE – Senhor Comissário Adão, se ocorreram situações de intimidade entre estes dois adolescentes, devem ser unidos pelos laços do casamento, de modo a evitar que se precipitem para os braços do abismo. O JARDINEIRO – E vamos casar duas crianças por terem dado uns beijos às escondidas? O Diabrete escarnece, soltando risadinhas. O PADRE – Agora dão beijos às escondidas, daqui a nada dão beijos às claras. Em nome da decência e a título de exemplo devemos casá-los quanto antes. O COMISSÁRIO ADÃO – O chefe lá sabe se dá mais ouvidos ao cura, quando quer curar o mal – era só uma brincadeira, o peso das responsabilidades dá-me vontade de desopilar. Mas o que eu quero mesmo dizer é que o bem bom do casamento não endireita a cepa que caminha para torta. Gente de bem, achais que o casamento chega para castigar a carne viciosa porque ociosa? O Diabrete, murmurando, indica ao público as respostas a proferir. TODO O PÚBLICO – Não!!! O COMISSÁRIO ADÃO – Então, com havemos de lidar com este casal de perversos? PÚBLICO 1 – Mandem-nos para a tutoria! PÚBLICO 2 – Espetem com eles na cadeia! PÚBLICO 3 – Metam-nos nas mãos dos torcionários! TODO O PÚBLICO – Não!!! Pró inferno! Pró inferno! Pró inferno! O COMISSÁRIO ADÃO (imitando o estilo dos políticos profissionais) – Se queremos que estes manjericos sejam gente de bem, há que dar-lhes trabalho. Trabalho para se tornarem cidadãos honestos, criarem família, respeitarem a autoridade. Trabalho para ganharem bons hábitos, noções de disciplina, gosto pela ordem. O JARDINEIRO – Não te conhecia essa retórica, Adão.
O Diabrete vai buscar o adereço tractor. EVA – É para que beja. O meu ome é um vocado sorna para umas coisas e sonso para outras. Mas cultiba-se que inté mete dó. Incanto ando eu bergada a mundar e alimpar os canteiros, o gaijo aprobeita para se cultibar... O JARDINEIRO – Reconheço que os seus talhões são... são... muito geométricos. O Anjinho e o Diabrete lutam. Ambos querem levar o tractor miniatura ao Manipulador. O Anjinho consegue desferir um golpe baixo ao Diabrete e ganha a disputa. O COMISSÁRIO ADÃO – A minha Eva precisa de um tractor para continuar a dar conta do recado. Isto de trabalho manual é muito catita mas é nas cantiguinhas. E ela, ainda é noite cerrada, já aí anda dedicada às couves... EVA – Às coubes e aos navos e às feijocas e ao vatatal. Trato da sua hortaliça como se a tivesse parido... Cum tractor, até a cornadura do Adão eu labrara, sinhor... O JARDINEIRO – Não julgues, Eva, que fico insensível à tua competência. O COMISSÁRIO ADÃO – Pois, o proveito é seu, mas a mulher é minha. Portanto, sofrer para parir um filho ainda é como o outro, agora parir na dor as cenouras, os pimentos, os pepinos, os tomates, as favas, as feijocas, as batatas, as abóboras, as ervilhas..., não estou a ver porquê... CENA 4 O barulho do tractor quase cobre a última parte do discurso de Eva. O Diabrete imita o barulho do tractor. O COMISSÁRIO ADÃO – Caro patrão, estamos com um problema de distribuição. Os celeiros já estão a abarrotar de batatas e grão. E quanto às hortaliças, não há rede do frio que nos resolva o problema. O JARDINEIRO – Não eras tu que falavas de pôr a render? Repara onde nos leva a mania do rendimento...? O COMISSÁRIO ADÃO – E não era o senhor que enchia a boca com a ideia de matar a fome à terra inteira? É agora que essa utopia começa a... a concretizar-se, enfia a cabeça na areia e... O JARDINEIRO – Tenho ido atrás das tuas soluções e és tu que te dás mal com elas. Ou não? O COMISSÁRIO ADÃO – Estamos na era do progresso. Progresso quer dizer arranjar soluções para os problemas que as soluções nos arranjam.
EVA (entrando furibunda) – E está-me este par de jarros na paleta encanto eu lixo os costados e as cruzes a puxar por uma carroça!!! Nem um mexe um dedo para dar uma mom...? Ora bão-se mas é foder. O COMISSÁRIO ADÃO – Dobra a língua Evita. Estávamos a falar de assuntos sérios. EVA – E eu quero que os bossos assuntos se fodum. Já olharam vem para a filha da puta da minha pessoa? Desgranhada, unhas partidas, pele seca e a escamare? O que é que a minha pessoa tem de menos ca das outras gaijas? O COMISSÁRIO ADÃO – Ó rica, tu tens tudo no sítio e ainda te sobra espaço... O Anjinho e o Diabrete desatam a fazer exercícios de ginástica. EVA – Atão explica-me lá, meu cavrão, por que raio de carga de água é ca minha pessoa num tem direito às mordomias das outras gaijas: caveleireiro, manicura, pedicura, depilação, esfoliação, massages, aeróvica, acupunctura, fisioterapia, fitoterapia, vanhos de lama, máscaras do pepino, jacuze, salão de chá, jantar à luz da bela, alta da costura e o caralho que me foda... O Diabrete estafa-se a fazer elevações, enquanto o Anjinho se prende a um cordel que lhe permite fazê-las sem esforço. O Diabrete descobre que o Anjinho está a fazer batota e quer agarrá-lo. Porém o Anjinho voa... O COMISSÁRIO ADÃO – Para o caralho estamos nós aqui, quanto ao resto... O JARDINEIRO – Adão, não sejas grosseiro com a esposa que é tua metade e mais de metade de ti e duas metades fazem uma pessoa. Parece-me a Eva também tem direito a algum respeito, a algum passatempo, a... O COMISSÁRIO ADÃO – Ora isso é que é falar, patrão. A Eva tem direito a alguma compensação. Todos temos. Não é só trabalhar trabalhar. Há que dar rumo ao fruto do nosso trabalho. A Eva está pelos cabelos e põe-me os nervos em franja. Os armazéns têm produto até ao tecto. Fazer circular a mercadoria – eis a via do progresso. E depois diversificar, para garantir um crescimento sustentado. O JARDINEIRO – Mais carrinhos de mão? Mais carroças? Uma besta de carga? Uma bicicleta... O COMISSÁRIO ADÃO – Não seja assim tão antiquado, patrão A gente tem de transformar o jardim num grande parque de intercâmbio. Numa espécie de feira permanente. Barraquinhas para os tomates 100% biológicos. Uma tenda para o pão cozido em forno de lenha com a nossa farinha de primeira qualidade. Um estaminé onde se vendam compotas, marmeladas, frutos cristalizados. Um outro para as aromáticas. EVA – A cena é passar as vatatas a patacas, ó chefe. O COMISSÁRIO ADÃO – E, com as patacas das batatas, podemos – e devemos – investir noutras mercadorias que nos permitam dar resposta a todas as necessidades
humanas. Desde os trapos aos remédios, passando pelos cosméticos e pelos brinquedos, sei lá... O Anjinho aterra. O Anjinho e o Diabrete vão buscar adereços e voltam com os braços carregados de legumes. Depois brincam a atirar os legumes um para o outro. O JARDINEIRO – Ou seja: o jardim, que era um lugar aprazível e gratuito vai-se transformar num inferno. Não sei se o Comissário Adão me consegue convencer desta mudança de gestão. O COMISSÁRIO ADÃO – Ora, ora, no inferno só há boas intenções, não há boas acções... Pense na ordem natural das coisas. Viver em harmonia com a natureza é explorar, até às últimas consequências, os potenciais benefícios que dela decorrem. Logo, de todas as matérias, em bruto ou já não, que ela põe à nossa disposição. Por outro lado, quem faz e desfaz e forma e transforma, sente necessidade de trocar o que fez por qualquer coisa feita por outra pessoa... Não é o patrão que está sempre a falar do prazer que sente quando alguém tira proveito daquilo que criou? O JARDINEIRO – O Comissário Adão mistura alhos com bugalhos. Partilha com troca. Dádiva com comércio. O Comissário Adão já não é apenas eloquente. Creio que está a tornar-se demagogo. EVA – Olhe que num tem grande razom de queixa destes dois serbos, carago...! Que a gente desunha-se para trazer o seu jardim num vrinco. A caveça do Adom está sempre a magicar. Às bezes, até tenho medo que os parafusos lhe saium pelos oubidos. Ontem explicaba-me ele que a rebolução no jardim bai dar travalho a muitos moços e moças, a omes feitos e a gaijas na necessidade. O JARDINEIRO – Bem... esta mercadoria toda, esta acumulação medonha, do corpo te tem saído, Eva. Só espero que a emenda que o teu homem propõe não seja pior do que o soneto. EVA – Eu do seu neto nada sei, mas o patrom que é um pai para nós tem de nos dar oubidos. Porque ninguém lhe quer milhor ca nós, ninguém é mais leal serbidor ca gente... Ninguém, nem padre, nem professor, nem polícia. CENA 5 Esfuziante concerto de vozes de feirantes lançando pregões. O Anjinho e o Diabrete apanham os legumes que juncam o chão e gritam pregões de feira. Do género: «Quem quer figos quem quer almoçar?» «Limões ó limões» «Leve é laranja da nossa», etc. Um gesto irado do Manipulador põe abruptamente fim à gritaria. Uma sirene de polícia cobre os ruídos de feira. A sirene pára. Barulho de carro a estacionar. Resta apenas um burburinho.
O COMANDANTE ADÃO – Patrão, temos que ter uma conversa muito séria. Ultimamente não lhe pomos os olhos em cima... O JARDINEIRO – E como queres tu que a gente se cruze neste caos? Encontrar uma pessoa neste... neste jardim é mais improvável do que achar uma agulha num palheiro... O COMANDANTE ADÃO – O patrão tira-me as palavras da boca. A situação está-se a tornar intolerável, incontrolável... Nem a Eva, que leva tudo a pontapé e a toque de caixa com aquele estilo de carroceiro, aguenta mais. E olhe que ela é da raça que antes quebrar que torcer! Os fatos do Diabrete e do Anjinho estão sujos na sequência do jogo de bola com legumes. Ambos despem as fatiotas. Por baixo têm fatos iguais, mas com slogans pintados. No caso do Diabrete: O CÉU PODE ESPERAR. No caso do Anjinho: O INFERNO SÃO OS OUTROS. O JARDINEIRO – E que sugere o Senhor Comandante? Não foi por vontade minha que vocês transformaram este lugar aprazível num antro de mercadores. Se lhe parece que a coisa descambou e deu para o torto, a quem senão a si próprio imputar os prejuízos, a derrapagem? O COMANDANTE ADÃO – O patrão não me está a perceber. O que está em causa não é exactamente o lucro, embora o balanço pudesse ser-nos muito mais favorável. Os dos ajudantes entram disputa e desfazem as fatiotas um do outro (trata-se de fatos preparados para o efeito). Por baixo têm fatos iguais com outros dizeres. No caso do Diabrete: OS ANJOS CAEM, OS DIABOS CURTEM. No caso do Anjinho: CADA UM TEM O INFERNO QUE MERECE. O JARDINEIRO – Estás então arrependido de ter cortado árvores e arrancado flores para instalares vendas, tendas, tascas e barracas de diversão...? O COMANDANTE ADÃO – Também não. Ou melhor: antes pelo contrário. Está provado que o negócio rende e que as vendas rolam sobre esferas. A questão tem a ver com... a ética comercial, digamos. O JARDINEIRO – Queres baixar os preços praticados? Por mim, tudo bem. Eu não vivo disto e sempre quis que as pessoas pudessem ter as belezas e as riquezas do mundo ao seu alcance. E que não tivessem de pagar para viver. O COMANDANTE ADÃO – Nisso discordamos. Em absoluto. O que não se paga não tem valor. O que se paga barato tem um valor desprezível. O JARDINEIRO – Achas? O COMANDANTE ADÃO – Tão certo como eu me chamar Adão. (Suspirando) Mas será que o patrão não se tem apercebido da barafunda que por aqui reina? A gente tem que se livrar desta ciganagem, desta cambada de pés descalços sem eira nem beira que tomaram conta do mercado e não desgrudam.
O Anjinho e o Diabrete utilizam os fatos caídos no chão como projecteis e lançamnos à cara um do outro. As roupagens voam. O JARDINEIRO – Que tens tu contra os ciganos? São gente do mercar e do feirar, lá isso é verdade, mas não és tu que gostas do comércio...? O COMANDANTE ADÃO – Eu não tenho nada contra essa gente. Quando tocam e cantam até são capazes de animar e dispor bem. Mas eu tenho tudo contra eles. Não pagam o aluguer das tendas, devem a mercadoria aos fornecedores, aldrabam a clientela nos pesos, vendem gato por lebre, quando não põem a filharada a roubar carteiras e jóias. E depois, se é verdade que uns são mesmo da etnia cigana, os outros são aciganados, sem etnia nem o eterno pretexto da tradição... Ora que se foda a tradição se ela nos dá cabo da reputação. O Manipulador bate na carola do Anjinho e do Diabrete e, com o pau, empurra-os cada um para seu lado. O JARDINEIRO – A reputação... Que reputação? O COMANDANTE ADÃO – A nossa pois então!!! Têm que ir todos pregar para outra freguesia. Enchi o saco. Não me peçam paciência, nem benevolência. Nem prazos, nem compassos de espera. É preciso pô-los daqui para fora! O JARDINEIRO – Tanto ódio, meu filho! Até parece que te foram ao bolso... O COMANDANTE ADÃO – E foram. Pela frente são só salamaleques porque o respeitinho é muito bonito. Mas pelas costas querem ver-me morto. (Suspira.) Minha gente, que se faz com esta gente? Como se faz com que eles desamparem a loja? Mais uma vez, o Diabrete indica ao público, murmurando, as respostas a fornecer. PÚBLICO 1 – Mandem-nos para a cadeia! PÚBLICO 2 – Espetem com eles numa masmorra! PÚBLICO 3 – Metam-nos nas mãos dos torcionários! PÚBLICO 4 – E enfiem-nos na câmara de gás! TODO O PÚBLICO – Não!!! Pró inferno! Pró inferno! Pró inferno! O Manipulador bate na carola do Diabrete. O COMANDANTE ADÃO – Para o inferno? Isso é que era doce... O inferno está na moda. Até já há quem sonhe em fazer das profundezas do inferno uma rota turística. Nãããããã... Vamos mandá-los para a pe-ri-fe-ri-a. Arrabaldes e companhia. Cinturas industriais. Cidades dormitório. Um lugar onde os gajos se vão poder acumular à vontade do freguês, viver uns por cima dos outros e andar à porrada o tempo todo se lhes der na real gana.
O JARDINEIRO – E não vão sentir falta do... da envolvente verde, do... O COMANDANTE ADÃO – O patrão não está mesmo a ver a marca das criaturas. Qual verde, qual envolvente...? Os gajos são mais do género ponta e liga, faca e alguidar, vermelho sangue... O JARDINEIRO – Mas, a tua periferia é... uma figura absurda. Completamente desajustada. Tens a mania de que eu estou sempre ao lado, agora és tu que... O COMANDANTE ADÃO – Não me parece... O JARDINEIRO – Para haver periferia, tem de haver um centro. O COMANDANTE ADÃO – E vamos ter um centro, claro está. O Anjinho já começou a reunir os adereços que vão ser necessários: paredes, gruas, tapumes, andaimes O JARDINEIRO – E onde fica esse centro, se não é indiscreto? O COMANDANTE ADÃO – Aqui mesmo. O JARDINEIRO – Aqui? No jardim? O COMANDANTE ADÃO – Sim. É aqui que vamos instalar o centro. É aqui que vamos construir um grande, um enorme centro comercial. CENA 6 Ruído de máquinas em movimento. Estridência de perfuradoras. Explosões. Martelar insuportavelmente regular, entrecortado por barulho de manobras mecânicas. O Diabrete ameaça o Anjinho com uma perfuradora-brinquedo de plástico. O Manipulador bate com o martelo. As martelas formam um ritmo regular. O JARDINEIRO – Eva... Eva... Onde vais com tanta pressa? Já no outro dia te vi, te chamei e tu nem te viraste...? EVA – Por quem sois patrom. Se num me birei é porque num oubi, porra! O JARDINEIRO – Com esta barulheira, ninguém se ouve, verdade seja dita. O teu homem fala de construir para aqui, erguer para acolá. Mas o que eu vejo é só destruição e desmoronamento. Demolições e requalificações. Implosões e explosões. O Diabrete volta com um balde de tinta e pinta nas traseiras do teatrinho. Uma frase do tipo: DEUS É UM CHATO. EVA – E onde é que já se biu fazere prédios sem deitar avaixo?
O JARDINEIRO – Ao tempo que esta fúria dura, só param quando tiverem esventrado a terra inteira. EVA – Num seja assim, patrom. O meu Adom é um ome incansábel, num merece a sua descunfiança. E tem tido tantas preocupações cum esta empreitada. As ovras som uma dor de caveça e bocê está vem colocado para saver disso. O Anjinho fica em pânico por causa da grossa asneira do companheiro. Mas o Diabrete tenta amansá-lo, convidando-o a pintar também. O JARDINEIRO – Só sei do que vejo. E o que vejo do progresso, como o Comandante lhe chama, é muito desencorajador... EVA – Se houbesse moral, as coisas num erum o que som e o resto é cumbersa. Gente ruim num tem emenda. Os inquilinos num pagum os sinhorios. Os sinhorios num faze ovras. Os fornecedores num cumprem prazos nem à lei da vala. Os das lojas num pagum aos fornecedores. Quando avre uma loja noba, vonitinha e tal, bêm logo os filhos da puta dos chineses e dos áraves dar cavo do negócio. A escola num educa a canalha e os pais inda menos. Ele é só olhar para as paredes, caralho, e lere as porcarias que esses mariolas escrebem por tudo canto é muro... O Diabrete em presta o pincel ao Anjinho que pinta uma florzinha. O COMANDANTE ADÃO – Mas aqui o patrão está muito acima dos reles negócios deste mundo. O Diabrete fica fulo. Arranca-lhe um pincel e escreve: DEUS É UM CABRÃO. EVA – Omessa!!! Se está acima debia vaixar à terra. A ber se ele gostaba de ler DEUS É UM CAVRÃO numa esquina e SE DEUS É UMA TRINDADE VAMOS TIRARLHE OS TRÊS devaixo da montra do caveleireiro. O Manipulador torce o pescoço para tentar ver, entre duas deixas, o que Diabrete escreveu. Em vão. O COMANDANTE ADÃO – O patrão não se rebaixa a apoquentar-se com coisas desse género. Para ele são todos anjos um pouco estouvados que hão-de voltar ao bom caminho. EVA – E aquela que onte pintarum nas traseiras da esquadra? SE DEUS É VOM EU SOU A BIRGE MARIA... O Manipulador acaba por arrancar toda a banda de papel que servia para forrar a parte inferior do teatrinho. O JARDINEIRO – Palavras... Palavras leva-as o vento. O que conta é aquilo que muda as pessoas e as coisas para melhor. E esta selva de cimento só conseguiu pôr as pessoas ferozes.
O COMANDANTE ADÃO – O problema – e é isso que o patrão não quer ver, porque seria meter o nariz na... na m... na caca – o problema é a concorrência. Desleal. Estrangeira. Dessas terras onde a mão-de-obra é ao preço da chuva. Ou antes: mais barata que a chuva, porque, normalmente, nesses países chove pouco. O problema é o inimigo interno: os chinocas, os sarracenos, os selvagens da Índia, do Paquistão, da Indochina e do diabo a quatro. São peões, são espiões que as potências económicas nossas adversárias espalham por este território. Fazem-nos a vida negra. Estragam-nos o negócio. E são péssima influência... Contaminam os nossos concidadãos porque são porcos, badalhocos, preguiçosos, bárbaros. O Diabrete afasta-se. O Manipulador vira-se de vez em quando. O Diabrete imobiliza-se. Jogo das estátuas. EVA – E os mais arrebezados são os anjinhos, como o patrom lhes chama. Raça de vandalhos. De bândalos. Partem as bitrines. Roubum as lojas. Assaltam as cabes. Pintum as paredes cum dizeres e vonecada. Até cum merda cagum as paredes cando num têm tinta. Quevram tudo o que apanham à mom de semear: beículos, cuntentores, valdes do lixo, parcómitros e o caralho que os foda. E os pais num ligum pêbeda. Andum à solta como os vichos. O COMANDANTE ADÃO – Sim, porque... Enfim, poder-se-ia pensar que com tanto casal desempregado, os pais iriam tomar conta dos filhos. Mas é exactamente o contrário. Casa sem pão, todos ralham e ninguém tem razão. Mas se os professores ou as autoridades tocam nos meninos com um dedinho, é o fim do mundo em cuecas. Falam de violência injustificada, de abuso de poder. E os imigras, mal chegam já estão a reclamar de direitos e a instruir a filharada contra a ordem instituída. Não podemos continuar, impávidos e serenos, a tolerar esta anarquia. O JARDINEIRO – Não se lhes pode arranjar uma ocupação, uma remuneração...? Montar um sistema de apoio, uma rede de pessoas de boa vontade? O COMANDANTE ADÃO – E quem quer dar emprego a um bando de malfeitores? Aliás, os empregos que há – nas obras, por exemplo – os tipos não estão para isso. Olha quem... São os imigras que arrecadam todos os trabalhos duros. Seja como for, mal se apanham com dinheiro na mão, não vai para o senhorio ou para a mercearia. Vai directo para as mãos dos traficantes. EVA – Ui, nem o patrom calcula o que aí bai de drogaria...! Uma pessoa bê fedelhos que ainda vorram as calças dispostos a limpar o sevo à mãe para cumprar uma ganza ou dar uma puta dum caldinho. O Diabrete aproveita um momento de tréguas para se precipitar para o seu cantinho. O Manipulador procura com os olhos... Silêncio. O COMANDANTE ADÃO – E agora diga-me o que é se pode fazer. Digam-me o que é que pode fazer com essa gente e com a nossa gente para isto voltar a entrar nos eixos? O quê?
O Diabrete faz o seu papel de ponto, cochichando as deixas que o público grita. PÚBLICO 1 – Mandem-nos para a cadeia! PÚBLICO 2 – Espetem com eles numa masmorra! PÚBLICO 3 – Metam-nos nas mãos dos torcionários! PÚBLICO 4 – E depois enfiem os gajos no crematório! TODO O PÚBLICO – Não!!! Pró inferno! Pró inferno! Pró inferno! O COMANDANTE ADÃO – Ui, não... Para o inferno não, que o diabo não é tão mau como o pintam. Vamos mandá-los para o exército! O exército é uma escola com a vantagem de que lá não há pedagogos. No exército fazem-se homens, não se fazem flores de estufa. A disciplina, a vida ao ar livre, a preparação física, obediência. Correr, trepar, saltar. Tudo quanto o patrão sempre achou que fazia bem ao género humano lá se pratica... O Manipulador bate na carola do Diabrete. O JARDINEIRO – Mas para que serve o exército a não ser para... para a guerra? O COMANDANTE ADÃO – Serve para a guerra, claro está. Para que haveria de servir? Enquanto isso, o Anjinho prepara um monte informe de corpos: são os cadáveres da cena seguinte. O JARDINEIRO – Mas que eu saiba, felizmente, não há guerra nenhuma em curso... O Anjinho (que mudou de asas e usa agora um par de asas quebradas) prepara calmamente um arsenal. O Diabrete vai discretamente mudar de asas. Quando se vira, o Anjinho rega-o com uma pistola de água. O Diabrete atira-lhe paralelos. O Anjinho responde com uma rajada de metralhadora-brinquedo. O COMANDANTE ADÃO – Isso é o menos, patrão. Se é a guerra que nos faz falta para... para arrancar o mal pela raiz e recomeçar da estaca zero, eu lhe garanto que se arranja uma grandessíssima guerra enquanto o diabo esfrega um olho. O povo rói o freio. Inventa-se um incidentezinho diplomático e vai ver que é trigo limpo farinha amparo!!! EVA – Fala vem o meu ome num fala? Bê-se logo que num perde uma ocasiom de se cultibar, caralho! CENA 7 Ouvem-se botas correndo sobre terra batida, rajadas de metralhadora, largadas de bombas, tiros esparsos. Em suma, o cliché do concerto bélico.
O Diabrete lança petardos. EVA – Adom! Este inda está bibo. O GENERAL ADÃO – Não me chames Adão. Meu general. A disciplina militar é para todos. O Anjinho e o Diabrete brincam à guerra. EVA – Inda tem os olhos de carneiro mal morto a piscar como um semáforo. Mas está muito estragado, o cabrãozão. Já num cunsegue vulir, acho eu. O Anjinho faz de morto. O Diabrete aproxima-se. O Anjinho atira-o para o chão de surpresa. O GENERAL ADÃO – Então é para abater! Não queremos deficientes, nem doentes, nem dependentes! Só vai de maca para o hospital de campanha quem tiver umas feridas para tratar. Portanto, trata de não de te enganar. Senão enfio-te um balázio. EVA – Tu num te atrebias, meu general, meu ganda filho da puta. O Manipulador aproveita as tréguas para descer das suas alturas e bater, à cadência dos tiros, nos seus dois ajudantes (como se as explosões fossem obra da sua mão). Ouve-se um tiro. E depois cinco tiros seguidos. O GENERAL ADÃO – E quantas vezes te disse que fizesses pontaria ao coração? Estamos em guerra, não se esbanjam balas. EVA – E as gaijas. Que destino se dá às gaijas? O meu general já pensou sobre a questom? O GENERAL ADÃO – As gaijas... Humm... Huumm... As mulheres salvam-se. Desde que não sejam velhas e tenham tudo no sítio. As feiozas, se forem fracotas, podes deixar agonizar. Mas as que tiverem bom corpo, podem trabalhar como os machos. O Anjinho e o Diabrete brincam aos enfermeiros e embrulham-se um ao outro em ligaduras. EVA – E como é que eu sei se uma gaija é boazona ou nom no meio desta confusom? É cu panorama é mais tripas e vofes de fora, caralho!!! O GENERAL ADÃO – Dobra a língua, Eva! EVA – Sim, meu ganda general. O GENERAL ADÃO – Eva... confio no teu bom senso inato e no teu patriotismo para fazeres a triagem. Dum lado, as garinas para darem o corpinho ao manifesto e levantar o
moral das tropas. Do outro, as matronas, as mulheres de armas e as marias rapaz para puxarem pelo cabedal e engrossarem as hostes da mão-de-obra. Certo??? Quanto ao resto, já sabes: homens válidos levados de imediato para a enfermaria; os excedentes dos vários géneros, há que levá-los desta para melhor quanto antes. Lembra-te do que deves à nação, em geral, e a mim, em particular. EVA – Queres dar-me cabo do canastro, ó baldebinos, que te tenho bisto montado em tudo quanto é chabalita morivunda. O GENERAL ADÃO – Cala essa boca badalhoca e faz o teu serviço. Senão, vais pelo mesmo caminho. Lembra-te de que é preciso queimar os mortos e limpar o terreno com a maior urgência. Mesmo com este frio de rachar, não tarda nada ninguém consegue pôr o nariz cá fora com o fedor. Temos um problema técnico... de falta de pessoal. As ligaduras, mal colocadas, desfazem-se e servem de nova arma de luta. EVA – Julgaba que tinhas muitos magalas às tuas ordes, caralho, ó meu general...! O GENERAL ADÃO – As médias patentes estão bastante deprimidas e muitos dos operacionais quase não têm pé. A falta de sono, a falta de alimento... enfim, precisamos de uma disciplina férrea de transformação da... das aparências para lhes dar alento, percebes? EVA – O que eu percevo é que ando desde onte à noitinha a acarretar cadabres que os olhos inté se ma caem dos vuracos, porra! O JARDINEIRO (entrando e falando com voz tonitruante) – Adão! Eva! Que vem a ser esta brincadeira de mau gosto? O Anjinho e o Diabrete estacam como se o Manipulador se dirigisse a eles. O GENERAL ADÃO – Calma aí! Até parece que o espírito bélico e a necessidade de guerrear dos homens são uma novidade para si... O JARDINEIRO – Uma coisa são dois homens disputando-se por causa de uma fêmea, dum terreno, dum poço. Outra coisa é matarem-se uns aos outros como nem a mais besta das bestas faria. Esta mortandade fere os meus olhos e magoa o meu coração. O GENERAL ADÃO – Não estamos em tempo de choramingar. Começámos uma tarefa árdua e sublime, há que levá-la até ao fim. O Anjinho e o Diabrete, mais mortos que vivos, voltam para o seu cantinho. Vão mudar de roupa. EVA – É berdade, patronzinho, nunca o Adom, meu general e seu general, foi tão radical. Diz-se que a cabalo dado num se olha ao dente. Pois o general até escolhe se morivundos hom-de biber ou vater a vota. O Anjinho e ao Diabrete envergam de novo as fatiotas da primeira cena.
O GENERAL ADÃO – Estamos a realizar uma limpeza sem precedentes do género humano. Só restarão os homens válidos, as mulheres valentes e as fêmeas apresentáveis. Se esta gente trabalhar e copular com igual entusiasmo, em breve entraremos numa era de prosperidade, sob o signo da ordem, da disciplina e da autoridade. O Anjinho e ao Diabrete escovam o cabelo. O JARDINEIRO – Só um cego não veria o que está a acontecer: os homens «válidos», como tu lhes chamas, mal se apanham na rua pilham tudo quanto está ao seu alcance. As mulheres valentes, aspas aspas. E as fêmeas, vendem o traseiro por tuta e meia, por um naco de pão. E dizes tu que estamos no dealbar duma idade de ouro? O Anjinho e ao Diabrete começam a arrumar os objectos espalhados (como se a peça fosse acabar). O GENERAL ADÃO – Para que se cumpram os grandes desígnios, para que se realizem os grandes projectos, há sempre uma geração mais ou menos perdida. Na balança da história, isso nem chega a pesar. EVA – Mas é berdade que anda por aí muita gatunage e ca polícia num tem mom nos sovrebibentes. O GENERAL ADÃO – A gente sabe disso. A gente sabe. Está tudo sob controlo. Apenas precisamos de criar um dispositivo de... um dispositivo de enquadramento para a coisa mudar de rumo e os ventos voltarem a soprar em nosso favor. EVA – Ai, Adom, meu general, esta Eba que te quer vem até derrete de te oubir cuntar os teus altos sonhos. Só te dou um cunselho de exposa: aprende a cunversar cum povo. Aprende a cantar a cançom do vandido. É o zé pagode que te bai aguentar onde istás e que te tira do poleiro se lhe pisares os calos à vruta. O GENERAL ADÃO – Cala-te mulher que só dizes baboseiras da boca para fora. (Para o Jardineiro.) Tem miolos de minhoca e quer-me ensinar a mandar...!? Não querem ver que a pitinha quer mandar no condor? Não, senhor, eu tenho tudo sob controlo. Mas também os quero ter o tempo todo debaixo de olho. E como se há-de fazer esse milagre de vigilância que garante a segurança dele? A nossa segurança? O Diabrete corre para o seu posto de ponto e murmura as deixas que o público profere aos berros. PÚBLICO 1 – Mandem-nos para os trabalhos forçados! PÚBLICO 2 – Espetem com eles numa prisão inexpugnável! PÚBLICO 3 – E depois metam-nos nas mãos dos torcionários! TODO O PÚBLICO – Não!!! Pró inferno! Pró inferno! Pró inferno! O GENERAL ADÃO – Para o Inferno? Que coisa mais falha de imaginação!!! Que cena mais fora de moda... Não, para o inferno não. Para o campo de concentração, que é
ao mesmo tempo um espaço de trabalho, um cárcere e um local onde se corrigem os desvarios do espírito pelo cilício da carne e os desvarios da carne pelo cilício do espírito. Nem o senhor teria uma ideia tão... tão criativa. Toda a gente devia morar em campo de concentração. Quando começa a haver muita gente, gente a mais, é preciso As cidades são um pouco isso, mas na versão mole, disfarçada, incompetente. A mentira desorienta as pessoas, torna-as incapazes de encarar a realidade. No campo concentramos os nossos esforços no sentido da regeneração. Não pedimos a ninguém arrependimento ou humildade ou outras coisas que as pessoas não podem dar. Fazemos como o jardineiro com as suas plantas: enxertamos, estacamos, podamos, endireitamos, alinhamos. Nunca a formiga se queixou do carreiro pois não? A formiga, se alguma vez se queixou, foi dos maus exemplos da cigarra. Acho que temos muita a aprender com a disciplina do formigueiro. O Anjinho e o Diabrete arrumam e varrem. Mas aos poucos recomeçam a pegar um com o outro às vassouradas. CENA 8 Gritos, uivos, queixas estridente, longos lamentos. Uma oração rezada numa língua incompreensível. Depois uma série de bastonadas e o eco do choque do bastão contra as portas e portões de ferro. Persiste um tímido burburinho. De novo uma série de bastonadas, mais violentas e ameaçadoras. Silêncio. O Manipulador tem tempo de descer, de apanhar os seus ajudantes, de lhes bater com uma matraca e de voltar a subir. O JARDINEIRO – Marechal, tenho recebido um número incalculável de queixas, individuais e institucionais, acerca dos mais variados maus tratos, excessos, abusos, atentados contra os humanos e os seus direitos. Até as instâncias internacionais começam a rabear e a protestar... Que vem a ser este forrobodó? Fizeste da pele dos teus semelhantes bombo da festa? O Anjinho e o Diabrete parecem estar mesmo com dores. O MARECHAL ADÃO – Por quem me toma? Afinal o senhor é o meu mestre, o meu inspirador... Aquele que toda a vida teve o maior ascendente sobre mim. Aquele... O Anjinho e o Diabrete avançam para o público e, cada um do seu lado, desatam a chorar. Ambos vão chorar durante a cena toda. O JARDINEIRO – Não me venhas com falinhas mansas e conversas de chacha. As queixas, quer-me parecer, referem-se a factos bem reais. E as instâncias internacionais não costumam meter-se comigo. Se o fazem é porque a coisa é escandalosamente inadmissível... O MARECHAL ADÃO – Certo, certo. Eu não digo que não haja alguma, alguma vaga razão nessas queixas. Repare-se que faz parte da natureza dos homens queixarem-se por tudo e por nada. É uma espécie de fúria de se exprimirem. Uma comichão na língua. Se não falam e dizem mal da vida, rebentam!
O JARDINEIRO – Até parece que te tornaste sobrenatural...! O MARECHAL ADÃO – Não, nem por sombras... Mas quem governa tem de pairar um pouco acima do caos. Tive de aprender a distinguir-me da ralé. Tomando recuo, Distanciando-me. O JARDINEIRO – A ponto de já não ouvires os gritos tão próximos do teu próximo? O Anjinho e o Diabrete choram. O MARECHAL ADÃO – Julga o senhor que eu não me preocupo com o que observo e não passo noites a fio a matutar nas estratégias de reajustamento da espécie ao regime de vida e ao governo dos vivos? O JARDINEIRO – Governo dos vivos? Mas isso a nenhum humano compete... O MARECHAL ADÃO – Tudo o que é humano me diz respeito. Hem? Não lhe parece uma boa máxima para um homem que abraça o destino de todos os homens? Meu caro mestre, após meses de reflexão em pequeno comité de sábios, temos na mão a solução para todos estes desvios de rota, para todas estas desagradáveis chinfrineiras, gritarias e rebeldias de trazer por casa. Garanto-lhe que, dentro em breve, deixará de receber a menor queixa, recriminação ou sinal de desagrado. O Anjinho e o Diabrete choram. O JARDINEIRO – Não me digas que vais amordaçá-los, cortar-lhes a língua, tirar-lhes o acesso a todos os canais de comunicação, a todas as formas de expressão...? Enfim, se bem começo a conhecer-te, capaz disso eras tu... O MARECHAL ADÃO – Frio, frígido, completamente ao lado. Esperava mais da sua, da sua intuição, do seu sexto sentido... O JARDINEIRO – Então vais-lhes cortar as asas? O MARECHAL ADÃO – E ele a dar-lhe com os anjos, os arcanjos, os querubins, os serafins e afins... Eu lido com homens. De carne e osso. E sexo. O JARDINEIRO – Eu queria dizer: tirar-lhes a liberdade. O MARECHAL ADÃO – Muito pelo contrário. Vamos devolver-lhes a liberdade. Com dois brindes suplementares: a fraternidade e a igualdade. EVA (entrando) – O Marechal é um vocado vota de elástico, sempre foi. No fundo uma jóia, mas pouco sensíbel à opiniom púvlica. Uma bida inteira a suvir na bida afastou-o para caraças das preocupaçons do ome bulgar, do ome sem nome, tá a ber? Mas ao níbel dos princípios, é imbatíbel o gaijo. O JARDINEIRO – Cheira-me a cinismo. Então vocês pegam no género humano, enfiam com ele no cárcere, infligem-lhe sevícias, violam a sua integridade física e moral
a ponto de o tornarem infra-humano, abaixo de cão. E agora saem-se com fraternidades e igualdades de que eu me fartei de falar sem que isso vos comovesse minimamente... O MARECHAL ADÃO – Não se pode pedir às criaturas que cheguem à meta sem passar pelo ponto de partida e pelas várias etapas. O JARDINEIRO – Chamas etapas aos horrores a que vens sujeitando os teus semelhantes? O Anjinho e o Diabrete param de chorar e prestam atenção ao que está ser exposto, como se o discurso de Adão subitamente lhes dissesse respeito. O MARECHAL ADÃO – Comer as iguarias depois de anos de ração dá direito a indigestão. O nosso regime é baseado na liberdade. Nas liberdades. De expressão nomeadamente. Nos deveres e nos direitos iguais para todos. Na protecção legal de todos os cidadãos como se fossem irmãos à face da lei. Etc. Só ingredientes generosos. Em vez do castigo, as obrigações do cidadão... é catita. EVA – O mais difícil bai ser trocar estas porras por miúdos para o pobo não ficar a ver navios. O MARECHAL ADÃO – O nosso novo regime prevê um investimento colossal nos meios de comunicação. Principalmente audiovisual. O JARDINEIRO – Vós sois o povo do livro. O livro é o meio para todos os fins... O Anjinho e o Diabrete começam a instalar grinaldas luminosas à volta do teatrinho, como se estivessem a enfeitar uma árvore de Natal. O MARECHAL ADÃO – O livro, sem querer ofender aqui o mestre, caiu em desuso. Mas haverá certamente bibliotecas onde toda a livralhada desde o mais velho alfarrábio à revistinha elitista de design são guardados como tesouros. EVA – A gente tá-se a cagar de alto e de repuxo para essa cena das vivliotecas. O pessoal quer é comer, vever e foder. O grabeto na cuonta vancária ao fim do mês e o resto que se dane... O JARDINEIRO – Mas essa liberdade de que falas, Marechal, como será ela efectivamente exercida? Como tu mesmo admites, esta gente não vai passar do obscurantismo e da servidão para a luz da liberdade sem ficar ofuscada... cega? O MARECHAL ADÃO – Ora aí está. Tudo com conta peso e medida. Não se pode obrigar o pessoal que nunca teve escolha a carregar com o peso das opções. A livre escolha pode ser paralisante, portanto... O JARDINEIRO – Portanto népia de liberdade como diria a Eva. O MARECHAL ADÃO – Não. Liberdade sim senhor. Mas com os limites que fazem parte dela. Por exemplo: liberdade política sim, mas enquadrada por uma constituição que define os grandes rumos da nação.
O Diabrete prepara velas de fogo de artifício que vai distribuindo por vários pontos do teatrinho. O JARDINEIRO – Ou seja, podes ir a pé, de trotinete ou montado na burra, mas a estrada não escolhes tu... O MARECHAL ADÃO – Isso é demagogia, mestre... Outro exemplo: liberdade de expressão sim, mas exercida através dos representantes dos vários partidos, eleitos pelo povo. O JARDINEIRO – Isso promete... Conheces algum homem capaz de representar uma pessoa que não seja a sua própria pessoa? O MARECHAL ADÃO – Deixe-me ir até ao fim. Com as suas interrupções, quase perco o fio à meada. Isso é terrorismo intelectual mestre. Liberdade sim. Liberdade de comunicação e muita, mas só através dos canais autorizados (televisão, internet, jornais nacionais etc.) que serão colocados sob a alçada de uma alta autoridade. O caos e o descontentamento serão erradicados. EVA – O nosso Marechal não é sensíbel às especificidades regionais, locais, rurais, ancestrais, etc. É o seu calcanhar d'aqueles... Mas ficamos a deber-lhe um grande projecto... O Anjinho e o Diabrete começam a despir-se. Debaixo da fatiota, estão de maillot de banho com lantejoulas. Ambos se disfarçam de majorettes. O MARECHAL ADÃO – Se bem conheço a peça, esta não tarda a meter-se na política. O JARDINEIRO – Ela tem fibra... Começam a acender as velinhas e as grinaldas luminosas que piscam. O MARECHAL ADÃO – Ela tem raiva. O que não vem dar ao mesmo. Todos eles têm. São cães raivosos. Verdadeiros cérberos. Devemos, por amor da coerência, entregá-los às chamas do Inferno? O Anjinho e o Diabrete dançam triunfalmente. TODO O PÚBLICO (em histeria) – INFERNO! INFERNO! INFERNO! O Manipulador profere esta última deixa em playback, virado para o público. O MARECHAL ADÃO – Não. Inferno não. Não vamos chamar os bois pelos nomes, minha gente. Até porque o nosso desígnio é transformar o Inferno. Reformá-lo. Reconvertê-lo. Fazer das trevas e da eterna fogueira um Carnaval. O flagelo das chamas pode dar um magnífico fogo de artifício. Vamos inventar a DE-MO-CRA-CIA.
FIM
II. O FIM: LÁ NO CÉU A MORTE DE DEUS CENA 1 Um rosário de peidos rasga o silêncio de algodão. Escassos instantes depois, uma porta abre-se, rangendo lentamente como velhos ossos. HIPÓCRATES – É o começo do fim... O Anjinho e o Diabrete percorrem o espaço cénico tapando o nariz e abanando as mãos em leque para se protegerem do fedor. S. PEDRO – O começo...? Como assim? HIPÓCRATES – Está... está por um fio. Mais morto que vivo, seja lá isso o que for... S. PEDRO – O que for...? HIPÓCRATES – Isto é, tendo em conta... O ARCANJO GABRIEL – Sim, sim, poupe os paninhos quentes que nós não somos a família da avozinha do capuchinho vermelho. S. PEDRO – Arcanjo...! Ainda assim somos uma grande família. A maior, quer dizer, a seguir à outra, a das ovelhas negras. (Pausa.) Mas quando o Dr. Hipócrates fala de começo do fim, quer dizer que o fim está à vista, que não há nada que dure para sempre, mas que, ainda assim, há a possibilidade, a forte possibilidade de uma remissão, e que, portanto... HIPÓCRATES – Não. Sou obrigado então a confessar a Sua Santidade que é quase o fim do fim. Percebe melhor assim? O ARCANJO GABRIEL – Olhe que você saiu-me duma marca...! Pois não está na cara, Pedro, que o Nosso Senhor, como uma vela depois de eternidades de luz, vai apagar-se? S. PEDRO – Pedro não. SÃO Pedro. Não se esqueça de que eu fui santificado. E não foi por cunha. O Nosso senhor Deus, na sua imensa bondade, quis distinguir-me da massa anónima dos eleitos. O Diabrete contorce-se com cólicas. O ARCANJO GABRIEL (soltando uma risada escarninha) – Ok. Ok. Mas entretanto, a sua santa pessoa, que sobressai, graças à descomunal chave e à não menos descomunal careca, da massa cabeluda dos eleitos, tem dado azo a uma quantidade inédita e torrencial de queixas. Entra no céu quem quer. A vida eterna está ao alcance de quem tem fôlego para uma derradeira subida pós-vida. A chave fica debaixo de uma nuvem e
só falta deixar lá um recado espetado a dizer «procure por entre as gotas». Ele é bandidos. Ele é banqueiros. Ele é bandalhos. Ele é burocratas. Ele é bajuladores... S. PEDRO (voz alterada, quase lacrimosa) – Eu não lhe admito, Arcanjo em Chefe, que me fale nesse tom. Sabe perfeitamente que eu não tenho arredado pé da cabeceira do Nosso Senhor Deus em sofrimento. Como quer o Arcanjo que eu faça de enfermeiro e de porteiro ao mesmo tempo. O Nosso senhor, na sua infinita bondade, não consentiu em conceder-me o dom da ubiquidade... O Anjinho decide auscultar o Diabrete. O ARCANJO GABRIEL – O que eu sei é que se entra mais facilmente no céu do que numa boa discoteca. HIPÓCRATES – Bem, não sendo eu de grande utilidade na discussão desses assuntos domésticos, peço a Vossas Senhorias Celestiais licença para me retirar. Tenho uma série de patriarcas acamados e uma beata com uma crise de histeria. Sem falar das amigdalites dos querubins que... O Anjinho verifica os reflexos do Diabrete com um martelinho... O ARCANJO GABRIEL – Tudo isso tem tempo, doutor. O céu inteiro pode esperar. Há aqui um problema muito delicado para resolver. (Para S. Pedro.) Explique-lhe você que tem um conhecimento mais... pormenorizado... do sintoma. S. PEDRO – Ai, céus, onde nós vamos parar se nos falha a inefável serenidade do Senhor Deus... (Pausa.) Bem, o caso é, Dr. Hipócrates, que o nosso doentinho se... Isto é, ele tem a barriga muito desarranjada. Será da idade avançada, certamente, costuma-se dizer que ela não perdoa. Nem mesmo ao Todo Misericordioso. Enfim, o caso é que o nosso... o nosso Criador... se peida. Peida-se. Um peido... em si... ou dois... ou uma procissão deles... em princípio, não há mal nenhum nisso. Mas, tratando-se de quem se trata, e porque o Criador de todas as criaturas e coisas criadas é omnipotente, tratandose Dele, cada peido, cada puzeta, cada traque... pimba é uma nova galáxia... pumba é um novo buraco negro... catrapumba é o universo inteiro em convulsão. Com tanto... catrapaz por minuto – e note-se que isto não é censurar as amantíssimas entranhas do Criador – estamos à beira de uma catástrofe. À escala universal. O Anjinho tapa o nariz. Depois destapa-o e finge desmaiar com o pivete. HIPÓCRATES – Interessante... Nunca tinha encarado a aerofagia sob esse ponto de vista. O ARCANJO GABRIEL – Doutor, não estamos aqui para fazer ciência. Estamos aqui para evitar os danos colaterais à exponencial decrepitude do Senhor Deus, O Diabrete aproveita para tentar reanimá-lo. HIPÓCRATES – E que quer você que faça contra a natural decadência do ventre de quem se gerou a si mesmo?
O Diabrete faz respiração boca-a-boca ao Anjinho. Silêncio gélido. O Manipulador apercebe-se do jogo do Diabrete e desce para separar os seus ajudantes. S. PEDRO – Mas não nos aconselha nada? Uma mezinha, um elixir, um licor, uma poção, uma tisana...? O ARCANJO GABRIEL – Um clister...? São Pedro é especialista em injecção de águas... HIPÓCRATES – Podem experimentar. Eu sei que nestas altas paragens todos os eleitos adoram brincar aos médicos e aos doentes para matar a eternidade. Mas a minha opinião é que qualquer tratamento, seja ele alternativo ou de ponta, é inútil. S. PEDRO – Senhor Arcanjo em Chefe, talvez seja bom encarar a hipótese de recorrer a... à mais alta patente das potências infernais. Dizem que ela... que ele conhece uma data de remédios santos. O Anjinho e o Diabrete param de brincar e preparar febrilmente as marionetas que vão intervir na próxima cena. O ARCANJO GABRIEL – Bem se vê que você não conhece a peça. Se esse erro da criação se apanha à cabeceira do Criador, num ápice vamos ter o universo inteiro a falar do assunto. Além de que os eleitos nunca aceitariam essa... essa cedência. Por vezes um deles pára para contemplar uma marioneta com um ar divertido. S. PEDRO – Se déssemos ouvidos à maioria dos eleitos, há muito que estaríamos paralisados, petrificados. Felizmente, o paraíso não é uma democracia. O ARCANJO GRABRIEL – Sim, mas as teocracias tremem quando o líder cai da tripeça. (Pausa.) É absolutamente necessário evitar que a notícia se espalhe. Custe o que custar... Mas logo o outro lhe dá um abanão e lhe entrega mais uma marioneta. CENA 2 O Anjinho e o Diabrete passam as cruzetas das marionetas ao Manipulador. Barulhos de passos na antecâmara. Burburinho confuso de conversas em voz relativamente baixa. Tocam à porta encostada. Ao fundo do quarto, Deus ressona altíssimo. Tocam de novo à porta. O sonoro roncar divino apazigua-se. O ARCANJO GABRIEL – Só um minuto. Que impaciência!
S. PEDRO – E que falta de respeito...! HIPÓCRATES – O Senhor Deus necessita de repouso absoluto. O mais possível... O ARCANJO GABRIEL (sobranceiro e seco) – A que vindes? Passos pesados. O burburinho sobe de tom. Em tom de protesto, todos falam em línguas incompreensíveis. De vez em quando, sobressaem umas palavras em italiano e em latim. O ARCANJO GABRIEL (autoritário) – Mas que algazarra vem a ser esta? Suas Santidades terrestres não sabem onde estão? O Anjinho e o Diabrete cumpriram as suas tarefas mais urgentes. Começam então a tirar soldadinhos de chumbo alados de uma caixa e a arrumá-los em dois exércitos que se enfrentam. Os protestos cessam bruscamente. S. PEDRO – E falem-nos em língua celestial. Isto é, se não viestes apenas como um bando de manifestantes insurrectos e quereis ser ouvidos pelos nossos ouvidos beatos... O PATRIARCA DE CONSTANTINOPLA – Tivemos conhecimento de rumores alarmantes. Muito alarmantes. O Diabrete desfralda um estandarte com um crescente lunar sobre fundo verde. O MUFTI DE JERUSALÉM – E, ao que constatamos, poderá ser verdade o que chegou aos nossos ouvidos aguçados pelo silêncio da oração. O PATRIARCA DE CONSTANTINOPLA – Como de costume, o céu não mantém um canal de comunicação em funcionamento com os seus representantes na terra. O Anjinho desfralda uma bandeirola com uma cruz vermelha sobre fundo branco. O PAPA DE ROMA – É um escândalo!!! Temos mais problemas com as cúpulas celestiais do que com os legisladores à face da terra. O Anjinho e o Diabrete fazem avançar as suas hostes miniaturais. O PATRIARCA DE CONSTANTINOPLA – Já não há transparência. O MUFTI DE JERUSALÉM – Nem solidariedade institucional.
O ARCANJO GABRIEL – Suas Santidades não ignoram que o Paraíso não é um país, nem uma nação. O Paraíso é uma empresa. De modelo multinacional. O Anjinho e o Diabrete lançam desafios um ao outro através de gestos obscenos. O GRANDE RABINO DE JERUSALÉM – Mas então, a ser exacto que El se está finando, exigimos que se convoque uma reunião extraordinária do conselho de administração. O DALAI LAMA – Se é que ainda vamos a tempo... Deus solta um ronco que não deixa lugar para dúvidas. O Anjinho grita: «Cruzados, em nome de Cristo, ao ataque!» O ARCANJO GABRIEL – Mas desde quando são os representantes da filial terrestre a decidir da oportunidade da realização de uma reunião ao mais alto nível...? Será que nós, os Eleitos entre os Eleitos, vamos meter o bedelho nas vossas chafaricas...? O Diabrete grita: «Allah... Mahomed... Besmallah!» Oportunamente, um grupo de jovens anjos rebeldes atravessa o campo sonoro entoando hinos ferozes e gritos sanguinários em línguas tão estrangeiras quanto for possível inventar. As várias personagens em presença tossicam como que incomodadas. S. PEDRO – Ouvistes? Disto é que tereis de tratar com urgência. Na extensa pradaria celestial, não há memória de anjos envolvidos em guerras de religião. E a culpa é vossa e apenas vossa. O Anjinho e o Diabrete derrubam os soldados de chumbo dos exércitos adversários. O ANJO GABRIEL – Já não podemos correr o risco de confiar aos jovens anjos a guarda dos jovens humanos. Os vossos movimentos fundamentalistas e os vossos ideólogos ortodoxos são tão perigosamente sedutores e demagógicos que os nossos anjos ficaram com o fogo no rabo e estão na disposição de fazer subir ao céu os imundos conflitos que vós semeastes no mundo. S. PEDRO – Trocado por miúdos e posto em pratos limpos: desamparai a loja, ide arrumar a casa e depois vê-se. O Anjinho e o Diabrete envolvem-se numa luta e rebolam no chão.
O Manipulador atira objectos aos seus ajudantes que se acalmam e começam a arrumar febrilmente os soldadinhos nas caixas donde os tiraram. O ANJO GABRIEL – Quanto à questão do... do passamento Daquele que mais do que tudo e todos é, pede-se, exige-se o maior sigilo. O estado Dele é um assunto de estado... UM BRÂMANE (que até aí permanecera calado) – Na nossa concepção hinduísta, a morte não é razão de luto. Aliás, é bom que se saiba ou se recorde que nem todos as autoridades religiosas utilizam as mesmas armas para aumentar e excitar as suas clientelas de fiéis. O Manipulador apanha o Diabrete no momento em que ele se encontra numa posição ao seu alcance, espeta-lhe com uma bofetada, e ordena-lhe que se retire, de castigo, para um canto, enquanto A acaba de arrumar os soldadinhos. O MUFTI DE JERUSALÉM – Temos grande orgulho nos nossos mártires, se quer que lhe diga. O Islão continua a sua expansão e ninguém pode nada contra isso. O DALAI LAMA – O exílio proporcionou-me grandes ensinamentos. Moisés, para não irmos mais longe... O GRANDE PATRIARCA DE CONSTANTINOPLA – O exílio do Lama ou o estrelato do Dalai? O PAPA DE ROMA – A doutrina católica romana condena expressamente aqueles que cedem à tentação de encorajar a idolatria e... As três últimas deixas são proferidas em simultâneo, resultando numa desagradável cacofonia. DEUS (soltando um estertor e falando com voz cavernosa) – Apre! Já nem uma sesta se pode dormir descansado...! (Virando-se no leito e fazendo ranger os divinos ossos e as divinais molas). Pedro, meu servo dilecto, corre-me com essa comandita que eu estava fazer um sonho muito útil à Criação universal. CENA 3 Os CDs voam de esguelha e aterram no chão. O Anjinho precipita-se para os apanhar. O Diabrete, retirado no seu cantinho, arvora uma expressão de amuo. JUDAS – Pedro, mas o que está o Nosso Senhor Deus a fazer com aquelas rodelas? Parece tão agitado quanto fatigado...
S. PEDRO – Irmão, fica sabendo que a sesta reparadora do Nosso Senhor Deus não significa de modo nenhum inactividade. Nunca o Criador descansou sobre a sua obra desde o sétimo dia. Fazendo a sesta, ele está, na verdade, a ouvir a música das esferas. E esses discos que o vês, por vezes, arremessar são galáxias recém-geradas ou de há muito paridas pela sua inesgotável força produtiva. Por que achas tu que, na empresa paraíso, os eleitos podem entregar-se ao eterno ócio...? JUDAS – Nunca pensei no assunto, confesso... S. PEDRO – Pois na verdade te digo, eleito de Iscariote, o Nosso Senhor Deus possui uma força tão omnipotente que, neste instante em que te falo, um número astronómico de novas estrelas estão a ver a luz e, logo de seguida, a dar luz no seio da infinita treva.... Nova chuva de CDs. JUDAS – Eu sou um pragmático. Como é que essa energia toda se transforma em riqueza calculável? S. PEDRO – Em verdade te digo, esse é o problema que o Nosso Senhor Deus nos obriga infinitamente a enfrentar. Ele que tudo faz perdeu a conta de tudo o que fez... Infelizmente, já nem sabe quantas estrelas há no céu. ARCANJO GABRIEL – Caros eleitos, não estamos aqui para ouvir as lições de teologia do eleito que manda chover sobre a terra ingrata. A hora é grave. (Pausa.) O Arcanjo Miguel, não se esqueceu, espero eu, de nos trazer a lista das igrejas protestantes...? O Anjinho põe um disco de música celestial a tocar num leitor de CDs. Durante uns instantes soa uma música do tipo planante. JUDAS – Não me digam que vamos convocar para a reunião do conselho de administração os pastores todas essas seitas assanhadas em auto-gestão. Evangelistas, Baptistas, Adventistas, do Primeiro Dia, do Último Dia, da Meia-Noite... Ainda por cima, multiplicam-se como coelhos. Cada dia, aparecem mais umas quantas... A música é bruscamente interrompida. Ruído mecânico. O Anjinho põe um segundo CD a tocar. Troca de CD. Durante uns instantes soa um madrigal barroco.
O ARCANJO GABRIEL (voz quase irada) – A nossa tarefa aqui não é espirituosa, é espiritual. Aliás, digo-lhe na cara com a transparência que convém à minha sobrenatureza, que nunca entendi por que motivo o Nosso Senhor Deus faz tanta questão de o ter desde sempre em tão boa conta. (Pausa.) Mas, de momento, sou eu quem manda e decide. O senhor eleito não passa de um manga-de-alpaca. Não lhe admito piadas de mau gosto! S. PEDRO – Podíamos aplicar o critério da antiguidade que aplicamos aos profetas. Convocaríamos apenas seitas monoteístas com mais de cinco séculos de existência terrena. O madrigal é bruscamente interrompido. Ruído mecânico. O Anjinho põe um terceiro CD a tocar. Troca de CD. Soa uma faixa de reggae... O ARCANJO MIGUEL – E o resto fica de fora a produzir heresias... S. PEDRO – Os restantes pastores viriam a título de observadores e assistiriam aos trabalhos por vídeo-conferência. O ARCANJO MIGUEL – E, já agora, em directo para vários canais. Ó Pedro... S. PEDRO – SÃO Pedro, quantas vezes terei de obrigar os arcanjos a dobrar a língua??? Fui santificado, canonizado e tudo mais... Nova chuva de CDs. S. PAULO – Tudo mais na sequência de um inexplicável equívoco... JUDAS – Pedro, não te deixes espezinhar pelo gajo das epístolas que nem sequer judeu é... O Anjinho apanha os CDs e limpa-os. O ARCANJO GABRIEL – Meus senhores, não estamos no parlamento de um país mediterrânico. Vamos prosseguir. Novo CD. Início de uma cena de cacofonia. O reggae é bruscamente interrompido. Ruído mecânico. Troca de CD. Um CD arremessado aterra provocando uma sonoridade parecida a um pratinho de plástico a
cair dentro de um banca. Começamos a ouvir o som excessivamente grave e prolongado dos monges do Tibete. DEUS (rugindo) – Esta coisa é mesmo animal repetitiva. Por que raio lhes dei eu um polegar singular, um cérebro excepcional e a estação vertical...!? O Diabrete tira um CD de uma gaveta e, com um ar ingénuo, finge apanhá-lo do chão. S. PEDRO – Tão importante como a lista de destinatários da convocação é certamente a ordem de trabalhos. JUDAS – Vejam lá se, à pala das vossas bizantinices, não vai ser preciso parar a marcha dos relógios à face da terra... Não se esqueçam de que, para as Santidades da comitiva, tempo é dinheiro. O Anjinho começa por desconfiar. Mas o Diabrete arvora uma expressão de inocência e afirma, com veemência, que apanhou o CD porque Deus lho ordenou. O Anjinho põe o CD diabólico a tocar. Começamos a ouvir, por cima da música dos monges do Tibete, uma versão da Ave Maria de Gounod. Uns instantes depois sobrepõe-se a ambas as melodias gravadas um trecho célebre da Paixão Segundo São Mateus de Bach e, escassos segundos depois um canto litúrgico judaico. Voam CDs. Por fim, ouvimos os acordes da canção «Sympathy for the devil» dos Rolling Stones. DEUS (soltando um longo e lancinante gemido) – Juuuuudas! Pedrooooo! Também eu fui traíííííííído!!! Voam mais uns quantos CDs. E o que o mais me custa é saber que o Outro está rijo como o aço. Chuva de CDs. CENA 4 O Manipulador desce e bate, à cadência dos peidos, no Anjinho e no Diabrete, com fúria redobrada. Depois precipita-se para retomar o seu lugar. Sobre um fundo sonoro composto quase exclusivamente pelo estertor e pelos peidos do agonizante, as diferentes vozes angélicas e humanas devem ganhar particular relevo, embora toda a cena seja falada num tom de quase segredo. JUDAS – Faça favor de entrar, Sua Santidade. Engordando, sempre engordando em bom ritmo. Não Há Papado sem papada...
O Anjinho e o Diabrete andam às voltas durante toda a cena, arrastando os pés e dando pontapés no vazio: manifestamente, não sabem o que hão-de fazer e aborrecem-se. S. PEDRO – É favor Suas Eminências instalarem-se nos lugares que pusemos à vossa disposição. Arrastai os cadeirões com cuidado. O Nosso Senhor Deus tem os ouvidos fatigados mas ininterruptamente atentos. Não devemos perturbar a sua perpétua escuta. O ARCANJO GABRIEL – Sim. Dois grandes motes para o nosso encontro: durante o conselho de administração, falaremos em tom de segredo, e, uma vez terminada sessão, guardaremos absoluto sigilo sobre o que se passa e o que aqui se disse. JUDAS – Avô Adão e Bibó Eva, há quanto tempo. Sequinhos como o galho da videira, mas finos. É sempre um prazer ter-vos connosco. ADÃO (com voz trémula) – Tu és o filho do Caim, não és? Um rapagão como ele. EVA – Ai Adom, num bês que este gaijo é o traidor que se sacrificou por todos nós? Lemvras-te do veijo, da figueira, do calbário, aquela nobela toda...? O Diabrete estaca como se tivesse tido uma ideia. O Anjinho interroga-o com o olhar. O Diabrete põe-se a reflectir e acaba por lhe fazer um sinal negativo. O Anjinho e o Diabrete retoma a sua ronda de prisioneiros. ADÃO (com voz trémula) – Sim, minha pomba, talvez... Vagamente, muito vagamente. EVA – Anda lá, bai-te sentar cum jeitinho e num nos faças passar por bergonhas. JUDAS – E o Senhor Rabino sempre catita. Nem a Leninha consegue caracóis tão perfeitos. Devem custar uma fortuna em laca... Burburinhos. Cadeirões arrastados com suprema precaução. Um sussurro. O ARCANJO GABRIEL – Bem, o eleito de Iscariote diz-me que já estamos todos. Vamos pois dar início à sessão, saltando os preliminares informativos, visto que do mais grave estais desde há algum tempo informados. A agonia de Nossa Senhor Deus prossegue dentro da maior normalidade e com a serenidade que caracteriza a sua infinita sageza. Deus solta um grunhido como se quisesse abocanhar as palavras do Arcanjo que não se deixa perturbar... Aliás, antes de mais, cabe-me a grata tarefa de esclarecer que, pese embora o anúncio inequívoco do fim do fim, esta agonia pode prolongar-se por eternidades. Todos
esperamos que o Nosso Senhor Deus se mantenha em agonia prolongada. Contudo – e aí é que bate o ponto –, sem ter de modo algum perdido a sua omnipotência criativa, produtiva e divinal, o Amo de Todas as Criaturas está muito desmemoriado e assaz incapaz de se concentrar nas actividades governativas da empresa celestial e da filial terrena. Teremos, portanto, de encarar a ingrata perspectiva de uma sucessão, porventura concretizada apenas a longo prazo, mas ainda assim inelutável. O Anjinho e o Diabrete mostram-se prestes a adormecer, visivelmente aborrecidos pelo discurso. ADÃO (voz trémula) – Então tu é que és aquele hippie das parábolas que andou enrolado com a putéfia mais rica da Judeia... EVA (soltando irreprimíveis risadas) – Cala-te, Adom. Estás a falar cu eunuco-mor, caralho! O ARCANJO GABRIEL – Avó Adão, eu sou o Gabriel, Arcanjo, o das asas grandes, está a ver...? (Tossicando para retomar a pose e o tom sérios.) Falava eu de sucessão à vista, apesar de longínqua. Porém, não se trata, como será óbvio, julgo eu, para todos, de discutir a escolha de um sucessor. Só a Deus cabe, pela imensa sagacidade da sua palavra, encontrar sucessor para a sua insubstituibilidade. É, de resto, mais um mistério que lhe pertence, a Ele e ao seu intangível arbítrio. JUDAS – Este deve ter gasto metade das penas a preparar a discursata... O ARCANJO GABRIEL – Não me interrompa, eleito de Iscariotes. Não é por o porteiro celestial ter delegado em si a tarefa que lhe compete, a pretexto de não largar a cabeceira do Mestre de todas as criaturas, que o senhor eleito tem direito à palavra. Porque a tomei e a conservo, sob o signo da sobrenatural ausência de mácula a que presido. (Tossicando para retomar a pose e o tom sérios.) E a propósito de imaculadas resoluções, posso e devo poupar-vos às explicações a que não tendes, há que sublinhálo, direito. Resoluções são resoluções. Definitivas, irrevocáveis. Arbitrárias e sem mácula de humana vontade. Passo a expô-las. Para além do sigilo absoluto a que anteriormente aludi, deveis jurar de antemão fidelidade à figura, sem forma e sem matéria outra que não a ilusão verdadeira, a qual será designada, em tempo útil, pelo Dono de todas as Decisões. Quero ouvir, em uníssono, o coro das vossas vozes leais, cujo eco chegará ao coração do Nosso Senhor Deus como um bálsamo. CORO – JURAMOS! O Anjinho e o Diabrete acordam em sobressalto. Interrogam-se trocando olhares, com medo de terem perdido alguma coisa do discurso e temendo também algum esquecimento imperdoável. Olham para o Manipulador com visível receio.
CENA 5 Um burburinho manifestamente provocado pela incomodidade. Nádegas e pernas que se agitam nos cadeirões, alguns sussurros, suspiros e risadas. O Diabrete explica qualquer coisa ao ouvido do Anjinho. O PAPA DE ROMA (num tom indisfarçadamente escandalizado; primeiro aclara a voz de falsete e depois dispara) – Eu peço imensa desculpa... não queria ser desmanchaprazeres, sobretudo perante uma tão ilustre, venerável e selecta assembleia... mas a verdade é que Deus Nosso Senhor, Deus Pai, para além de Criador de todas as Criaturas, tem um Filho. Um Filho amantíssimo que sacrificou para salvação dos homens e que se impõe, sem a menor dúvida, como digno sucessor... O Anjinho aprova. Deus solta um chorrilho de palavras entarameladas, incompreensíveis, mas proferidas num tom de injúria e protesto veemente. O Arcanjo Gabriel levanta-se e pede a Deus que repita. Deus não lhe responde. Incapaz de perceber e traduzir o que ouviu, o Arcanjo recorre a S. Pedro. Durante toda a cena, o Anjinho e o Diabrete vão brincar aos milagres. Um deles, à vez, faz-se de estropiado ou cego, o outro cura-o. O beneficiário do milagre salta de alegria. O ARCANJO GABRIEL – Vai lá você, S. Pedro. O Mestre quer partilhar connosco a sua incomensurável indignação, mas eu não consigo traduzi-la para a assembleia. JUDAS (jubilando, em voz baixa mas suficiente alta para que todos ouçam) – Estás a ver, a galinhola, desta vez, bateu a bolinha baixa. Chuta, Pedro. S. PEDRO (martelando as palavras como para sublinhar a sua função de tradutorintérprete) – O Nosso Senhor Deus exclamou: Filho indigno! Insurrecto! Rebelde em palavras e em actos! Arruaceiro! Incapaz! Humano demasiado humano! O PAPA DE ROMA (pasmadíssimo) – Estou em estado de choque! Sirvam-me um copo de água benta! JUDAS – Aqui não há criados. Somos todos servos de... O PAPA DE ROMA – A nossa doutrina assenta, desde tempos imemoriais, na ideia de uma comunhão de meios e fins entre o Pai o Filho e o Espírito Santo...
O GRANDE RABINO DE JERUSALÉM – A propósito, por onde andará essa famosa pomba? O Anjinho começa por fazer de prostituta, com gestos cliché do ofício. ADÃO (voz trémula) – Está sentada à minha beira. Não é minha pombinha malcriada? O Anjinho transforma a prostituta em beata que se ajoelha e reza. O ARACANJO GABRIEL – Compreendo a surpresa de Sua Santidade. Mas devo dizer-lhe que para os eleitos moradores nas alturas celestiais, esta... este conflito de... gerações não é uma novidade. É preciso que se note que o Filho, enquanto andou lá por baixo, tratou de encher o nosso etéreo domínio de cegos, estropiados, mutilados, prostitutas... O Diabrete faz de estropiado. JUDAS – Todos os pobrezinhos que lhe apareciam pelo caminho... O Anjinho cura-o. S. PEDRO – Os leprosos... O PATRIARCA DE CONSTANTINOPLA – Leprosos? Aqui há leprosos!!! O Anjinho faz de cego. S. PEDRO – Claro que há leprosos. Lazarentos não faltam por cá. O ARCANJO GABRIEL – E os simples de espírito! É que é preciso infinita pachorra para lidar com os simples de espírito... O Diabrete devolve-lhe a vista. ADÃO – Estás-me a chamar imbecil, ó fedelho emplumado? TODOS – Não, Avô, não estamos a falar do nosso avozinho. O Anjinho e o Diabrete rebolam no chão a rir. ADÃO – Pois sim... É que o respeitinho é muito bonito. S. PEDRO – Era um pouco um comunista avant la lettre o camarada Jesus.
EVA – Um comuna, caralho...! Cum bandolete inda por cima. Um comuna e um freak, fuoda-se! O saver num ocupa lugar, alguém o disse e mais uma bez se proba. Na berdade, eu nunca percevi vem aquela nobela do chabalito a querer ensinar os belhos e a fazer trinta por uma linha no templo... Entom o gaijo era comuna... O MUFTI DE JERUSALÉM – Para além de que essa paternidade está longe de ser aceite. O Manipulador ameaça-os de dedo em riste. O GRANDE RABINO DE JERUSALÉM – Pelo menos nesse ponto da doutrina, conseguimos não discordar. Não entendo como na era da genética ainda não se fez um teste de ADN para acabar com este boato. O Anjinho e o Diabrete retiram-se, amuados, cada qual para o seu canto. O BRÂMANE (saindo da sua letargia) – Pais. Filhos. Tudo isso não passa de ilusão... ADÃO (voz trémula mas indignada) – Ouça lá, ó sua tangerina mirrada, está a querer dizer que eu não sou filho de Deus? Filho de Deus e castigado pelo Paizinho...! O Diabrete desencanta uma cruz e sugere, por gestos, ao Anjinho que se vá crucificar. TODOS (OU QUASE) – Claro Avozinho. O Avô é filho! S. PEDRO – E Deus ama o seu filho, os seus filhos... O Anjinho recusa fazer de conta que foi crucificado. Deus solta um rosário de grunhidos. O ARCANJO GABRIEL – Traduza, S. Pedro, traduza. Não fique a olhar para o mestre como um boi a olhar para um palácio! O Diabrete agarra na cruz como se se tratasse de uma marreta e começa a perseguir o Anjinho. S. PEDRO (a medo) – É que... é que o Mestre disse: Eu abandonei o meu Filho. O Papa de Roma solta um doloroso «Ai, meu Deus!». Segue-se um silêncio pesado e frio.
O ARCANJO GABRIEL (prático) – Bem, perante esta eloquente declaração, creio que não há nada mais a acrescentar. Estamos mais que esclarecidos. CENA 6 O Manipulador tira a cruz aos seus ajudantes, desmonta-a em duas tábuas e ameaça bater-lhes a cada um com uma tábua. Uma rapsódia de tosses, pigarreios, ruídos de narizes a serem assoados, como se estivéssemos entre dois andamentos de um concerto sinfónico. O Anjinho apanha pedaços de tecido e bocados de esponja para encher um invólucro de almofada. O PAPA DE ROMA (acentuando a tendência para falsete da sua voz) – Eu não queria, acreditem, maçar a assembleia com as minhas intervenções, mas não posso deixar de lembrar que, em todas as comunidades de gente de bem, os laços de sangue prevalecem quando se trata de sucessão. O Anjinho enfia a almofada cheia por de baixo da túnica. JUDAS – E ele a dar-lhe com o sangue. Já reparou como todos os eleitos são pálidos. Mesmo os mais retintos africanos perdem o bronze nestas altas paragens. É que o sangue já não lhes corre nas veias. O sangue não é para aqui chamado. Vocês, lá nas vossas tascas, é que organizam esses encontros neocanibais a que dão o nome de missa, com vinho tinto a fazer de sangue e pão ázimo para disfarçar... O Anjinho faz de grávida. O PAPA DE ROMA – Arcanjo, senhor arcanjo... em nome do ecumenismo, em nome do... EVA – Outro comunista? Num é que os veatos insandeceram todos...? O ARCANJO GABRIEL – Santidade, por quem sois. Somos todos ouvidos. (Rosnando.) O eleito de Iscariote passou ao lado de uma carreira de cómico de terceira. O PAPA DE ROMA – Estava eu a tentar dizer que os laços do sangue são... S. PEDRO – Mas o colega não vê que o Nosso Senhor Deus tem tantos filhos como estrelas o cosmos. Imagine-se o processo de habilitação de herdeiros. O Diabrete observa a barriga do Anjinho com um ar interessado.
Gargalhada geral. O ARCANJO GABRIEL – Prossiga... O Anjinho finge sentir as primeiras dores do parto. O PAPA DE ROMA – Se me deixarem falar... Eu não estava de todo a pensar em filhos, tendo em conta a desunião que... enfim. Estava a pensar numa espécie de regência da mãe, a mater dolorosa, a Virgem Maria, que o concebeu sem mácula, um verdadeiro exemplo para as mulheres de outrora e de agora... O diabrete obriga o Anjinho a deitar-se no chão. Gargalhada geral. O PATRIARCA DE CONSTATINOPLA – Acordem-me! Belisquem-me! Só posso estar a sonhar... Subir ao céu para ouvir estas grosserias... O Diabrete enfia a mão debaixo da saia do Anjinho e saca de lá um bebé deitado numa manjedoira. UM PASTOR PRESBITERIANO – Deixe-se de bizantinices... Com todo o respeito pela senhora em questão, ela deve ser tão virgem como a rainha de Inglaterra. JUDAS – Uma histérica. Bem gira, dentro do género (que não é o meu), mas totalmente alucinada... O Diabrete entrega o bebé ao Anjinho que o aperta contra o seu peito. O ARCANJO GABRIEL – Peço desculpa pela pergunta indiscreta, mas Sua Santidade já esteve com Maria desde que chegou... O Anjinho levanta-se e larga o boneco. O PAPA DE ROMA – Eu... eu não... Vim directo para aqui. Acudir ao mais urgente. Mas não hei-de partir sem lhe ir prestar homenagem, demonstrando-lhe todo o meu fervor mariano. Meu, da minha corte e do meu rebanho. O Anjinho, terrivelmente irado, dá um arraial de porrada ao Diabrete que se contorce com dores. ADÃO – És tu Abel? Estás muito acabado! Mas tão bem vestido, meu filho!
O ARCANJO GABRIEL – Não, ancião, é Sua Santidade o Papa de Roma. (Para o Papa de Roma.) É que, muito provavelmente, vai ter uma grande surpresa. Sabe, o convívio com as santas, algumas delas são umas sabidolas, deu-lhe volta ao miolo. De certa maneira, a mãe do Filho percebeu que da maternidade só conheceu o castigo de parir na dor, sem conhecer a faceta do prazer, do coito e por aí fora. Enfim, não sou especialista. Então, movida por um revanchismo assaz notório, coligou-se com a louca da Madalena e formou com ela um movimento de amazonas, cujo slogan é PASSAMOS BEM SEM ELES. Está ver o descalabro...! O MUFTI DE JERUSALÉM – Olhem-me as putéfias!!! Para o que lhes havia de dar... O GRANDE RABINO DE JERUSALÉM – Ainda você não conhece a raça das judias. Se lhes damos trela, é o fim da macacada. A dá pontapés ao Diabrete. Deus solta dois grunhidos nos quais dificilmente se vislumbram frases. Mas S. Pedro traduz, sem se fazer rogado. S. PEDRO – O nosso Mestre diz: «Virgem nunca. Apenas mal fodida». Gargalhada geral. O Manipulador aproveita para separar o Anjinho do Demónio. O Anjinho afasta-se, vencedor. EVA – Que vando de murcões! Se num fosse a única gaija aqui presente, a ber se eu não lhes alebantaba as saias para berificar cantos deles a podiam foder milhor. Vando de cavrões! Machistas... Se a gaija é uma mal fodida, caralho, vem que se pode cunsiderar que ficou birge. Tadinha...! Bamos, Adom, que esta camvada já me está a tirar anos de morte. Olha, felizmente de mim num hom-de dizer que sou birge...! Ó menos tibe a má fama mas tamvém tibe o vom probeito... S. PEDRO – Vóvó Eva...! VÓVÓ! Tenha calma... Estamos todos debaixo de uma grande pressão. Todo o homem é filho de uma mulher, como quer a Vovó que nós não tenhamos o maior apreço pelas nossas mães??? EVA (com desdém) – Atom fala-me lá da tua mãezinha, que eu sou toda oubidos...! Misóginos! E tu, meu panascas, bai lá tratar do morivundo e num me puxes pela língua. O Manipulador traz uma caixa de primeiros socorros branca, ornada com uma cruz vermelha, e entrega-a ao Diabrete debulhado em lágrimas. Ouvem-se passos de retirada.
EVA – BIBA MARIA!!! O Diabrete repele a caixa, assustado pela cruz. O Manipulador abre a caixa e mostra ao Diabrete que se trata apenas de pensos. O Manipulador esvazia o conteúdo da caixa no chão e leva a caixa consigo, a fim de que o Diabrete trate sozinho das suas maleitas. CENA 7 Mal Eva se retira com Adão atrelado, todos os participantes na reunião começam a falar ao mesmo tempo. Pouco ou nada se consegue discernir. Até que soa a voz firme do Arcanjo Gabriel. O ARCANJO GABRIEL – Santidades e Eleitos entre os Eleitos, isto não é um comício. O Nosso Senhor Deus agoniza, magoado pelo concerto das vossas vozes prenhas de ódios e rancores. Um pouco de decoro, já que vos mostrais incapazes de celestial amor. Ao longo de roda esta cena, O Diabrete cuida das suas feridas. Vai retirando peças e partes de roupa e colando pensos de gaze fixados com adesivo depois de limpar as feridas e as negras (supostamente deixadas pela tareia do Anjinho). Faz-se silêncio. O PATRIARCA DE CONSTANTINOPLA (inseguro mas decidido a marcar um ponto) – Arcanjo, julgo não trair o sentimento de todas as Santidades presentes concluindo que, face às revelações que acabámos de... de... JUDAS – Face aos sapos que acabámos de engolir... O PATRIARCA DE CONSTANTINOPLA (sem lhe dar troco) – ...vós sois seguramente o candidato à sucessão mais consensual. Ou, melhor dizendo, menos susceptível de gerar conflitos... O ARCANJO GABRIEL – Santidade, escusais de procurar as palavras certas para defender uma causa perdida... JUDAS – A ave rara vai-se fazer cara, está visto... O ARCANJO GABRIEL – Os arcanjos não possuem as qualidades de autoridade para serem colocados à frente dos destinos da criação. O DALAI LAMA – Contudo, todos tivemos a impressão de que sois o único apto a aliar o sangue-frio, o bom senso e a necessária dose de firmeza para...
A ARCANJO GABRIEL – As aparências são enganadoras, Santidade. O Anjinho aproxima-se, numa tentativa de reconciliação com o Diabrete, para o ajudar a tratar das feridas. O Diabrete repele-o. O BRÂMANE – Isso tenho eu tentado fazer ver desde que aqui estou. O ARCANJO GABRIEL – Firmeza não é autoridade. Resulta do treino. Falar não é assim tão diferente de voar. Em público, pelo menos. E os arcanjos só falam em público. Quem sussurra aos ouvidos dos humanos são os anjos da guarda. Enfim, detalhes sem importância. A empresa celestial tem a sua hierarquia. Precisais apenas de saber que, a seguir à revolta dos seres angélicos e à queda de Lúcifer, que o Nosso Senhor Deus Único muito amava, o Mestre resolveu injectar em todas as criaturas aladas uma poção que obriga à obediência. O que os torna inaptos à governação. O Diabrete limpa corajosamente as feridas com álcool, mas não consegue reprimir um «aaahhh» de dor. Um aaahhh de decepção varre a assembleia. JUDAS – Pedro, chegou a tua vez. Lança-te. Atira-te à água e lança o barro à parede a ver se cola... S. PEDRO – Bom, pessoalmente só vejo uma solução... JUDAS – Força, Pedro! Eu apoio-te! Toda a facção judaica estará do teu lado! S. PEDRO – E a solução que vejo é: entregar as rédeas da criação às criaturas... De súbito, Deus emite um longo rugido, semelhante a um interminável trovão. O ARCANJO GABRIEL – Que diz o Mestre, Pedro? A pergunta «Que diz o Mestre?» ecoa repetida pelos vários participantes no encontro. O Diabrete tenta pôr o braço ao peito, mas com uma só mão não consegue. S. PEDRO – O Mestre diz: «Nem pensar! Nunca na vida! Os homens são, por natureza, pecadores... Só graças à minha imensa bondade, à minha infinita capacidade de perdão, são aceites nas altas pastagens do rebanho celestial...» O Manipulador vem ajudá-lo a colocar uma tala e pôr o braço ao peito. O Diabrete levanta-se e anda com dificuldade, exagerando o seu estado.
Faz-se silêncio. JUDAS – Isso do pecado já tem barbas, Mestre... Nem nos mais inexpugnáveis redutos do obscurantismo os humanos fazem fila para ver o confessor. O comércio das indulgências está falido. Os sacerdotes do ocidente são obrigados a tocar música pop para conseguir que a voz dos fiéis se eleve até aos céus. Os sacerdotes do oriente são um bando de nababos alimentados pelo povoléu que assim se descarta das obrigações da fé. Iavé, pelo amor de Deus, vê lá se consegues fazer dois mais dois... Deus emite um longo rugido, semelhante a um interminável trovão, seguido dum rosário de peidos de todos os feitios e odores... O Manipulador arruma a caixa de primeiros socorros. O Manipulador hesita em dar uma bengala ao Diabrete temendo que ele se sirva do objecto como arma. Pequeno jogo de cena. O Manipulador acaba por levar consigo a bengala. S. PEDRO – Iavé respondeu: «Os homens são incorrigivelmente materialistas. Só acreditam no que vêem, cheiram, tocam e possuem. A Luz do Espírito cegá-los-ia. Mas para quê ferir-lhes a vista se são incapazes de pressentir o Espírito? Até entre Vós, aqui reunidos junto ao meu leito de morte, se encontram expoentes do cepticismo. E do cinismo que é seu irmão gémeo.» Assim falou Iavé. JUDAS – Não olhem para mim assim, meus malandros. Ele conhece-me de ginjeira, mas também lê em vós como num livro aberto. Eu nunca disfarcei o que sinto, o que penso, o que quero. O meu pecado original foi o beijo. Mas estava programado, previsto, pressagiado... Custou-me bem mais do que podeis imaginar. Mas isso agora não importa. Não é, Pedro? O Diabrete mostra-se muito infeliz e o Anjinho aproxima-se a medo. O PAPA DE ROMA – Agora que a doutrina de Cristo foi aqui desmascarada e que o comunista escondido sob a santa pessoa foi posto a nu, estamos em direito de verbalizar aquilo que já há muito era nossa funda convicção: os homens não são todos iguais. Há os bons e os maus. Os espertos e os burros. Os ricos e os pobres. Os escravos de nascença e os líderes natos. O Manipulador, que está a observá-los, lança ao Diabrete a almofada que o Anjinho enchera na cena anterior. Jubilante, o Diabrete esquece o braço ao peito e agarra a almofada como uma bola com as duas mãos. O Anjinho logo trata de se escapulir para se colocar fora de alcance. Deus emite um longo rugido, semelhante a um interminável trovão, seguido dum rosário de peidos de todos os feitios e odores...
S. PEDRO – O nosso amantíssimo Mestre declarou: «Manda calar essa besta quadrada! Os homens são desiguais porque são filhos de homens que assim os educaram. A desigualdade não é inata, é adquirida. Se a criação fosse governada pelas criaturas humanas, os cosmos seria um caos comparável àquele que grassa na terra. Os homens imitam e degradam os gestos da criação. Acham-se deuses, e essa sua presunção produz os resultados que estão à vista. Antes arrasar as alturas celestiais do que rebaixar-me a ceder a esses filhos ingratos o trono do céu.» O Diabrete atira a bola de trapos ao Anjinho que a apanha e a volta a lançar. Jogo de bola. Os ajudantes estão aparentemente reconciliados. JUDAS – O Mestre está em plena forma. Custa-me pensar que nos vai deixar, a nós já órfãos de carne, também órfãos do seu belo verbo. Só estranho Ele continuar a fechar-se em copas relativamente à sucessão. Será que se julgava mais do que eterno? Ou será que, como todos os grandes timoneiros, foi retardando a questão do depois de si? O PASTOR PRESBITERIANO – Começo a ficar agastado com a picardia desta personagem que nunca esperei ter de aturar numa hora tão grave. O DALAI LAMA – Na verdade, o sujeito é completamente incapaz de elevação. O MUFTI DE JERUSALÉM – Um judeuzinho ruim mas cheio de lábia... Alá não devia tolerar esta má raça no círculo da sua intimidade. Deus emite dois curtos rugidos. O primeiro tremendo. O segundo bastante menos estrondoso. O Manipulador interrompe o jogo de bola dos Ajudantes e faz sinal ao Diabrete: chegou a hora do Diabo e o ajudante não se pode distrair do espectáculo. S. PEDRO – O Deus único, criador do céu e da terra, e de todas as coisas visíveis e invisíveis, disse: «Manda-me calar essas bocas venenosas. E o Uriel que traga o Outro à minha presença... o meu Outro.» O PAPA DE ROMA – O Outro...? Que Outro? O Diabrete foi buscar a Marioneta Diabo e transporta-a com imenso respeito e carinho. O ARCANJO GABRIEL – Que Outro? Esse mesmo. O Diabrete leva a Marioneta Diabo ao Manipulador. O Diabrete rouba uma chibatinha que se encontra pendurada à beira do Manipulador.
JUDAS (forçando-se a rir) – O meu Outro... Que linda maneira de falar do Adversário!!! O seu Outro... Nem parece Dele. E daí... O Diabrete bate com a chibata no Anjinho (ao ritmo das pancadas na porta). Pancadas na porta. Secas, breves mas firmes. CENA 8 O Anjinho não consegue reprimir um aaahhh de surpresa e dor. Ruído de lenta abertura de porta. Um aaahhh de estupefacção seguido de uma gargalhada diabolicamente bem disposta. O DIABO – Szim, eu szei, conszervei dotesz de agilidade notáveisz a deszpeito da minha provecta idade. Osz voosz, como aqui o Gabriel bem szabe, dão-nosz um exztraordinário domínio da biodinâmica do nosso corpo asztral. (Pausa. Silêncio.) Ok, já perczebi, a hora é grave, não temosz tempo a perder com biodinâmica angélica e diabólica. (Pausa curta.) Perczebo que o vosszo embaraçzo é grande. O meu também, masz eu szou um disszimulado crónico, disfarçzo melhor. O Diabrete vai buscar um tridente e usa-o como espingarda. Marcha como um soldado, faz continência, põe-se em sentido, faz de sentinela, etc. S. PEDRO – Como ousa o nosso imortal inimigo bater a esta porta? E desatar a conversar como se viesse para aqui fazer sala? O ARCANJO GABRIEL (com surpreendente mas gélida familiaridade – Desembucha: já sabias que ias ser chamado...! O DIABO – Bem... não me fica bem fazzer comentáriosz szobre a arquitectura desde paláczio, masz deixzem-me dizzer-vos que a inszonorizzaçzão das paredesz deixza muito a deszejar. Szão, como hei-de dizzer szem ferir asz szuszczeptibilidadesz do divino arquitecto... demasziado innefáveisz, finasz como osz mil véusz do manto do nosszo Mesztre... S.PEDRO – Do nosso Mestre, seu crápula? JUDAS – Pedro, sê diplomata. Com este não vale a pena tentares medir forças, que o gajo come-te ao pequeno-almoço. (Para o Diabo.) Mas, se me permite, é apenas uma questão de curiosidade, Vossa Senhoria já sabia que iria ser chamado às alturas celestiais nas... nas actuais circunstâncias?
O Anjinho começa por troçar do Diabrete muito orgulhoso dos seus exercícios. Coloca-se atrás dele e segue no seu encalço, parodiando-o. O DIABO – Eleito de Iszcariotesz, é quasze uma quesztão de naturezza puramente dedutiva, sze é que me façzo entender pelo szeu eszpírito eminentemente lógicopragmático. Eu szou malvado, não szou burro. Aliász, como é conszabido, a malvadezz aguçza todasz asz formasz de engenho e arte. (Pausa.) Masz vamosz ao que interessza e ao que aqui me trouxze. Tenho um contrato exztremamente detalhado no bolszo. Gabriel, leva-me à cabeczeira do Mesztre. Ah... e a propószito Pedro: ainda a tua triszavó nem szonhava em vir ao mundo, já o teu Amo era o meu Mesztre há váriasz eternidadesz. Bruscamente, o Diabrete vira-se, agarra o Anjinho e fá-lo prisioneiro. Durante o resto da cena, vai torturá-lo. Silêncio incómodo e gélido. O DIABO – Gabriel, não comeczesz a empatar, a empatar, com o teu ar de grande gansza ofendida que isszo comigo não funcziona. Andamento, meu rico, andamento. Não te eszqueçzasz de que eu tenho fogo no rabo. O ARCANJO GABRIEL – O Mestre, na sua imensa omnisciência, está a ouvir-te. E tu estás careca de saber isso... O Diabrete enfia uma longa agulha no ouvido do Anjinho. O DIABO – Ora asszim é que é falar. Não esztamosz aqui para enganar ninguém, não é Gabi? (Pausa.) Szosszega, foi szó uma piada. Não vim aqui para te envergonhar, nem para contar hisztóriasz de antanho. (Aclara a voz.) O contrato de fuszão entre asz empreszasz czelesztial e infernal esztá feito de modo a manter e reszpeitar asz eszpeczificidadesz de ambasz asz esztruturasz, tanto ao nível hisztórico, como ao nível dosz planosz de infinita exzpanszão. S. PEDRO – Fusão das empresas? Te arrenego Satanás!!! O Diabrete obriga o Anjinho a deitar-se no chão e, com um enorme martelo de esponja, dá-lhe marteladas nas costelas. O DIABO – Julga então o celesztial porteiro que eu vou virar cosztasz à minha prószpera empresza para vir dar uma mãoszinha ao patrão que me deszpediu szem juszta causza? (Soltando uma risada.) É caszo para dizzer: até o diabo sze ria. (Retomando.) Masz, dzzia eu, manter e preszervar a perszonalidade dasz duasz esztruturasz e proczeder à szuperviszão da filial terresztre. Szignifica iszto que não haverá deszlocalizzaçzão. Que tanto asz marcasz regisztadasz como asz imagensz de
marca szerão eszcrupuloszamente conszervadasz, com viszta à prosszecuçzão dosz objectivosz disztintosz na aparênczia masz convergentesz na esszência dosz nosszosz doisz empreendimentosz intemporaisz. Por um lado, nada na fachzada szerá alterado. Por outro, osz princzípiosz de rivalidade, competiçzão e concorrênczia szerão mantidosz e até, diria eu, inczentivadosz. Deus solta um longo grunhido de satisfação. Munido de um conta-gotas, o Diabrete faz cair gotas nos olhos do Anjinho. O ARCANJO GABRIEL – O Mestre disse...? S. PEDRO (lentamente) – O Mestre disse: «Meu filho, não perdestes as qualidades que em ti cultivei e, perante a inépcia dos meus próximos, até os teus genuínos defeitos, esses que tive a inadvertência de não arrancar pela raiz, me parecem quase qualidades.» JUDAS – Presunção e água benta... O DIABO – Ele szempre foi um convenczido e um egoczentrado. Masz asz szaudadesz que szinto do mau génio da genialidade do Mesztre szão causza de grande melancolia. O ARCANJO GABRIEL – Bate a bolinha baixa, que ainda não mandas nas nossas eternas pastagens, nos nossos rios de mel e nos nossos mares de rosas. Falta-nos esclarecer alguns pontos. Por exemplo: as pequenas alterações nas altas chefias, que incidência terão nos quadros médios? O Diabrete simula enfiar pregos debaixo das unhas do Anjinho. O DIABO – Nenhumasz. Não sze mexse em nada. Fica tudo como dantesz. O ARCANJO GABRIEL – Então vamos antes colocar a questão ao contrário: quais as alterações, as mudanças de fundo ou não, que pretendes introduzir a breve, médio ou longo prazo? O DIABO – Quesztão eszcaldante, não é Gabi? O Diabrete tira os sapatos de cena do Anjinho e simula queimar-lhe as plantas dos pés. O ARCANJO GABRIEL – Chuta! O DIABO – Não szei... esztava a penszar... fazz um frio de rachzar no paraíszo. Um aqueczimento czentral não vosz fazzia mal...?
O ARCANJO GABRIEL – Nem penses. O DIABO – O pesszoal aqui não goszta de calor ou, pelo menosz, de uma temperatura maisz amena? O ARCANJO GABRIEL – Nem pensar. Está fora de questão! O Diabrete obriga o Anjinho a pôr-se de gatas, trepa para cima dele e obriga-o a ser sua cavalgadura. O DIABO – Não? O ARCANJO GABRIEL – Não! Terminantemente. O DIABO – Pronto, pronto... O ARCANJO GABRIEL – Manutenção das fronteiras dos nossos domínios. Preservação da zona franca chamada purgatório. E... quanto à livre circulação de pessoas e bens... que isso nem te passe pela cabeça! O DIABO – Claro, Gabi, claro. Por quem me tomasz? O negóczio aczima de tudo. Presztarei contasz. Regularmente. O ARCANJO GABRIEL – Espero bem que sim. O Diabrete arrasta o Anjinho, preso por uma trela, como se este último fosse um cão. O DIABO – E szaberei mosztrar-me à altura... Agradeçzo deszde já a confiançza que em mim deposzitam... Silêncio. O Diabrete desafia o Manipulador para testar se este tem coragem de intervir. O PAPA DE ROMA (tossicando para chamar a atenção) – Eu devo dizer, em meu nome e, creio poder afirmá-lo, em nome das outras autoridades presentes, que esta excursão às cúpulas é um banho de água fria... JUDAS – O futuro patrão até se mostrou generoso em termos de climatização, pá...! O PAPA DE ROMA – Cala-te, traidorzinho duma figa, que a gente lá na terra já se está a amanhar com o aquecimento global!!! Peço desculpa, mas este judeu tira-me do sério... Dizia eu que esta reunião está ser uma grande provação para as autoridades
religiosas terrenas que, pesem embora as nossas fundas divergências, têm zelado por uma ligação umbilical da terra aos céus e aos seus donos. Portanto, julgo que estamos no direito de interrogar a administração cessante e o... e o novo senhor das alturas... e das baixezas, acerca do devir do planeta e das suas mais veneráveis instituições. O Diabrete amarra o Anjinho com uma corda até ele ficar totalmente atado e enchouriçado. O DALAI LAMA – Absolutamente... O MUFTI DE JERUSALÉM – Há questões territoriais de primeira importância. O DALAI LAMA – E questões de legitimidade. O MUFTI DE JERUSALÉM – Absolutamente. O PAPA DE ROMA – No que diz respeito ao livre arbítrio... para não irmos mais longe. O DIABO – Eu szabia que osz szenhoresz teriam a prudênczia de não meter o bedelho nasz aliançzasz cuja czelebraçzão esztá em curszo... JUDAS – Estas Santidades sabem-na toda... Salvar os móveis, salvar os móveis... O Diabrete vai buscar todos os instrumentos tortura (pinças, escalpes, facas, espetos...) e prepara-se para uma demonstração das práticas infernais em palco. O DIABO – Quanto à velha terra, planeta dilecto do Mesztre, devo dizzer que asz perszpectivasz szão muito negrasz. Não fora o grande apreçzo do Mesztre pela szua obra paiszagísztica, eu teria tendênczia a aczelerar o proczesso apocalíptico. Até porque temosz gravesz problemasz de exzploszão demográfica, tanto no Inferno como no Éden. Masz não deixzo de ter alguma esztima por aquilo que a mão do artiszta szemeou. O problema é que a filial terresztre esztá lançzada numa eszpiral imposszível de controlar. Deszde que lhesz inoculei o vírusz da cziênczia e depoisz, para atiçazar a chzama do szaber, autorizzei a revelaçzão da fisszão do átomo... maisz reczentemente asz técnicasz de clonagem e maisz umasz miudeszasz do género, a humanidade tem os diasz contadosz. (Solta uma risada.) Se há coisza pela qual ponho a mão no fogo, é isszo. Silêncio gélido, incómodo e consternado. O Manipulador quer ir libertar o Anjinho mas não tem tempo. Quando se abeira do seu ajudante, tem logo de regressar rapidamente ao seu posto.
JUDAS – As Pirâmides do Egipto. A Muralha da China. A Bela Jerusalém. Tudo arrasado. O Diabrete começa a espetar pregos no Anjinho como se ele fosse uma almofada de alfinetes. O DIABO – Apeszar de tudo, não sze eszqueçam que o eszpectáculo do fim pode szer tanto ou mais empolgante que a gloriosza enczenaçzão do princzípio. Na verdade, o que vai aconteczer, o que já esztá a aconteczer, é uma reacçzão em cadeia. JUDAS – As cataratas do Niagara, as Ilhas do Mediterrâneo, as grandes estepes da Mongólia... o processo é irreversível? O DIABO – Totalmente. Masz não sze apoquente. Há outrosz mundosz. A terra é um caszo de obszoleszczênczia programada, como elesz lhe chzamam. O PATRIARCA DE CONSTANTINOPLA – E quem nos recompensa pelos bons e leais serviços prestados à causa monoteísta, por vezes em circunstâncias hostis, para não dizer perigosas, hem? O DIABO – Eu szou um mãosz largasz. Garanto a todasz asz Szantidadesz aqui preszentesz um lugarzzinho no czéu ou no inferno, conforme for do vosszo agrado. O Anjinho solta um gritinho de dor. Deus solta um vagido de bebé. O Manipulador quer ir libertar o Anjinho mas não tem tempo. Quando se abeira do seu ajudante, tem logo de regressar rapidamente ao seu posto. O DIABO – Pedro... o Mesztre dizz...? S. PEDRO – Vossemecê não precisa de tradução... pois não? O DIABO – Poisz não. Masz é uma quesztão de princzípio... S. PEDRO – O Mestre diz: arranquem uma pluma ao Gabriel que eu assino de cruz. O Manipulador salta do seu posto e vai libertar o Anjinho. O Manipulador saúda o público, agarrando ambos os ajudantes pelas orelhas. FIM