O NOME DE DEUS Godard é um filho da palavra que se impôs como homem do cinema. A imagem parece fornecer-lhe a experiência lírica e dramática dum discurso espontaneamente aforístico, emblema da dúvida passiva e da incerteza activa. Como lhe foi possível combater na frente do cinema sem abandonar o acerto de contas com a palavra? Godard dirige os actores como receptadores das armas e despojos desta guerra, utilizando a única forma de candura que lhes resta: a impreparação para esse papel. Não se limita a fechá-los no campo demarcado onde a imagem se concentra, encerra-os ainda na dificílima simplicidade das intrigas que escolhe. Eles são, em última análise, Electras desmioladas que vêm ordenar a sua afectividade pensante. A feliz regularidade com que Godard pôde fazer as suas fitas favoreceu decerto a limpidez e a fluência com que todas estas questões são postas em Prénom Carmen. O paradigma de sermos incansáveis portadores da Palavra e imperfeitas Imagens da divindade vem parar à boca de Carmen que se interroga sobre o que está antes do (seu) nome. A chama que arde nesta interrogação viva «queima» todas as borboletas que dela se aproximam. Toda a acção do filme é uma dança em volta deste exemplo fatal 1. O título do filme contém as pistas que levam à citação de Giraudoux: «Cela s'appelle l'aurore». Prénom, antes do nome, a interrogação inicial, o apelo das origens, o mar, etc. Carmen uma Electra revista que falha a concretização do seu élan apocalíptico. Entre o princípio e o fim, está o mundo (no presente), a cidade, os comboios que se cruzam na noite, o tumulto paralelo dos automóveis, o conforto da Luz indirecta e um Godard que sai do seu desterro voluntário (a Suíça é um grande hospital) para encenar uma projeccão social do (já) mito da Carmen. Porque a audácia deste filme passa também pela reiteração 2 das eternas reflexões à Godard, ainda que ele voluntariamente as carregue duma senilidade grotesca e militante: Porquê a sociedade de consumo? Porque é que existem mulheres? Porque é que existem homens? Porque é que o cinema anda nas mãos de falsos profissionais quando só pode ser feito doravante pelos verdadeiros amadores? etc. O cinema de Godard não faz tábua rasa de nada. Antes se deita na cama dura das interrogações essenciais e na cama de picos das questões sociais. No seu quarto de hospital, o cineasta caquético faz ainda barulho, abanando os objectos para verificar talvez a sua solidez. O ensaio dos quartetos (testamento musical de Beethoven) é subitamente parasitado por um som marítimo de pássaros e marulhar. Godard declara que agora «é preciso fechar os olhos», ou seja, assumir os testamentos, ainda que provisórios. R. G. 1
Na cena do assalto ao banco Société Générale, o desempenho do polícia ilustra genialmente o saboroso provérbio português: «Homem pequenino ou é tolo ou é dançarino». 2 Este filme é uma actualização de Pierrot le fou.