O OGRE ATRÁS DO CANIBAL A minha aventura pessoal levou-me a cruzar-me demasiadas vezes com Jean Rouch para que este artigo não seja também uma tentativa de clarificar problemas de fundo tão vastos que é escusado tentar ordená-los linearmente. De resto, não só a obra de Rouch é extremamente diversificada como abriu historicamente tantas perspectivas que seria inviável tentar esgotar o assunto numa abordagem; optei pois por desenvolver algumas considerações ao correr da pena. Rouch pertence, como Leiris e até em certa medida Levi-Strauss, a uma geração que, no encalço de Breton, opõe o olhar do amador ao do especialista. Aliás, a disciplina em que trabalham — a antropologia — distingue-se da etnologia ou da sociologia pelo facto de se interessar, para além dos ritos, dos mitos, dos habitus e dos comportamentos, pelo homem na sua globalidade. Ora, esta amplidão de perspectiva, devida a uma ausência de compartimentação ao nível da formação, já deu provas de surtir soluções mais seguras e mais práticas — Breton ao identificar imediatamente os falsos Rimbaud, Rouch ao compreender o sentido profundo de certas cerimónias de aspecto «bárbaro», ao inventar técnicas de gravação síncrona, com uma equipa ultra-leve, etc. — do que as tímidas abordagens universitárias. Por outro lado, com a incursão em África há a descoberta duma cultura que, apesar de ameaçada, põe em causa a nossa, na medida em que justamente a nossa não consegue assimilá-la. A descoberta de uma outra concepção do mundo invalida, por conseguinte, a universalidade do «modelo» racional ocidental. Rouch penetrou numa realidade perante a qual, durante a minha longa viagem a África, eu só me senti deslocado, e encontrou uma alteridade que lhe permitiu olhar para o ocidente de forma diferente. Primeiro, o escândalo de LES MAÍTRES FOUS — em que Rouch vislumbra e revela visualmente que um ritual «bárbaro» é tão só imitação das cerimónias europeias —; depois, a lógica mágica dos caçadores de LA CHASSE AU LION À L'ARC que deixa entrever a incoerência dos nossos sistemas de convenções e a pobreza do nosso imaginário — adiante abordaremos o problema, o problema do «real», mas afigura-se-me à partida evidente que a beleza extraordinária das cenas filmadas em África aboliu toda a sedução do artifício cinematográfico fabricado em estúdio; este ponto é fundamental para perceber como Jean Rouch se ligou naturalmente à «Nova Vaga» desde o seu aparecimento: Rouch captava nos rostos e nos discursos dos protagonistas de CHRONIQUE D'UN ÉTÉ a mesma profundidade de emoção — só o cinema consegue provocá-la e restituí-la — que anteriormente registara nos «possessos» de África; e para entender as razões que o levaram a não acompanhar a «Nova Vaga», depois de PARIS VU PAR, na sua evolução: as referências cinematográficas de Rouch só tinham sentido na medida em que revelavam algo do humano e das suas construções materiais ou imaginárias (olhar participante mas distanciado como quando filma um rito), enquanto Truffaut e Godard (é fácil verificá-lo nas suas críticas como nos seus primeiros filmes) procuravam histórias heróico-cómicas que lhes permitiam inventar uma autobiografia imaginária (olhar crítico mas prisioneiro da diegese). Por outras palavras, Rouch manteve-se à margem do sistema fechado da produção cinematográfica, dissociando o seu trabalho de captação das imposições criadas pela distribuição: a maior parte dos seus filmes são curtas ou médias metragens e nunca foram distribuídos no circuito comercial. A intervenção de Rouch durante os anos 60 foi contudo decisiva: ele trazia soluções práticas que diminuíam o peso das equipas técnicas — luz natural, câmara ao ombro, som síncrono à tomada de vista sem percha —, logo reduziam os custos e «libertavam» a encenação. Todavia, aquilo que para Rouch constituía uma alternativa da qual urgia explorar até ao fim as consequências estéticas, representou, para os cineastas franceses, uma possibilidade de deslocar, no plano formal, os parâmetros do cinema de estúdio do qual pretendiam recuperar a herança — Godard assumindo sozinho toda a história do cinema; Truffaut voltando rapidamente à encenação tradicional. No entanto, são visíveis os vestígios da passagem de Rouch nos primeiros filmes de Barbet Schroeder — produtor de PARIS VU PAR —, como LA VALLÉE e IDI AMIN DADA. Assim, Rouch prosseguiu solitariamente a sua experiência, sistematizando-a a pouco e pouco: — a câmara ao ombro: este parti pris estabelece imediatamente um princípio organizador da encenação em torno da câmara, i.e., uma porção do olhar em movimento do realizador (cf. entrevista de J. Rouch), perante a qual os actores vão auto-encenar-se. A contradição fundamental