O PECADO A COR-DE-ROSA (a propósito das pinturas e desenhos de Carlos Mendonça) 1. O fundo do fundo e as formas da forma Não é por pedantismo mas para compreender e, mais ainda, para formular o que se joga no menor gesto, neste caso um desenho ou um quadro, é preciso começar por examinar o léxico que nos fornece as ferramentas conceptuais. Com efeito, por um lado, as práticas «evoluem» – sendo a História escrita pelos vencedores, a direcção tomada, por acidental que seja, é sempre a melhor – mais rapidamente do que o dicionário se renova; por outro, a linguagem é sempre dúplice, tanto dissimula como expõe, veículo por excelência de uma ideologia que, sendo subterrânea, se revela ainda mais eficaz e consensual. Assim, a pintura hoje pertence ao campo artístico que determina os parâmetros da sua produção e, sobretudo, da sua recepção. Ora essa etiqueta oculta a sua inscrição numa história muito mais lata e flutuante, a das imagens manufacturadas, onde, por exemplo, um dos papéis do «artista» no Renascimento é doravante desempenhado pelo publicista. Uma parte notável das aquisições técnicas da pintura do século XV ao século XIX, da perspectiva ao modelado e ao claro-escuro, foi orientada por uma preocupação de realismo da representação que a fotografia tornou caduca. A «libertação» da pintura expande-se por duas vias concomitantes: o traço individual – que simplifica a representação eliminando os elementos «realistas» geradores de ruído – e a autonomia semântica das manchas coloridas que constituem a essência da pintura – que leva rapidamente ao abandono da figuração. Depois disso começa o questionamento da própria produção pictórica, pelo que o pintor «contemporâneo» tem de recuar até ao cruzamento da pintura anterior a Duchamp. A obra de Carlos Mendonça parece-me pois contemporânea – e irmã – das de Matisse, Picasso, etc., «moderna» – logo parcialmente anacrónica: a criação artística é sempre resistência, contra o estado do mundo e o seu movimento entrópico. Nela se voltam a formular os problemas da figuração mas tirando partido da pintura «abstracta»: o quê e o como, o fundo e a forma inextrincavelmente ligados. Entretanto, o cinema, que do ponto de vista da estrita composição pictórica se ficou pelo realismo mais académico e ignora as mais das vezes o avanço das outras formas de expressão artística, pintura, música ou dança – Godard ou Oliveira constituem excepções –, viu-se confrontado com a existência de um «fora de campo» que comanda as imagens. A pintura conhecia desde há muito não apenas o fora do enquadramento, mas também o escondido dentro do quadro, o deformado, o sugerido, o irreconhecível – cf. Focillon e Baltrušaitis – e sabia, antes da lição de Poe n’«A Carta Roubada», que expor é a melhor maneira de ocultar. Assim, a noiva, reconhecível pelo ramo de flores virginais, revela não apenas o seu perfil em pose de espera sob o véu mas também a sua nudez debaixo do tule dum vestido igualmente transparente. O decote dorsal faz as vezes de flecha e o rosa da pele contamina a brancura do trajo cuja geometria angulosa dissimula mal as curvas subjacentes. A noiva e o seu vestido, o velado e o imaculado, aparecem como figurações do impudor. Aqui forma e fundo não se opõem – a forma decorre do branco ou dos ângulos? o fundo está no feminino ou no vestido? –, antes trocam de papel e de estatuto entre si para atingir uma significação paradoxal. O espectador é confrontado com o desejo do ausente – o pintor, o esposo –, da noiva, ou de um fantasma projectivo? O íntimo exposto coloca-o numa posição inconfortável, em situação de voyeur, quando não há nada para ver.
2. Feiticeiras mitológicas As sereias na Grécia não eram mulheres-peixe – símbolos do sexo proibido – mas sim mulherespássaro, fatais e devoradoras de homens – parentes das harpias –, pré-angélicas, todavia possuem entrepernas. Mas não é certo que as suas asas sejam o motivo de encantamento dos homens (elas simbolizam tão-somente a impossível liberdade); é porventura antes o seu canto que enfeitiça, do alegre chilreio de uma eterna infância às melodias sobre-humanas capazes de sublimar a dor; ou eventualmente o tamanho, pois o pássaro pousa na cabeça, no ombro, no dedo, quase cabe na mão, no bolso – como os lenços bordados pelas noivas que os marinheiros levam consigo. A obra de Carlos Mendonça é habitada, como a de Petrarca pela sua Laura, por uma musa alada. Ao narrar e ao expor, sob a forma de cartoon, a sua relação com a «Pardaleca», Carlos desvenda duas dimensões essenciais para a percepção do seu trabalho, que o tratamento a cores podia ocultar e que a redução ao traço sublinha: o jogo, com a sua componente infantil assumida, e o humor, com a distância devida. A série no seu conjunto poderia intitular-se: «Como domesticar uma ave». Como seduzi-la e guardá-la por perto sem a engaiolar. A «Pardaleca» desempenha o duplo papel de consciência, à maneira do grilo de Pinóquio, e de tentadora, aliando os poderes duma divindade à irrisão dum mosquito. É talvez nesses cadernos que a intimidade – a qual Carlos faz questão de exibir impudicamente – se apresenta da maneira mais natural, como uma evidência, sem o aspecto turvo e perturbante que adquire nas telas.
3. O erótico e o estético Freud formulou a aporia fundamental de toda a teoria estética: «Parece-me incontestável que o conceito do «belo» está enraizado no terreno da excitação sexual e que, na origem, designa o que é sexualmente estimulante. Isto deve ser articulado com o facto de que não podemos nunca achar propriamente «belos» os órgãos genitais, cuja percepção provoca a excitação sexual mais intensa.» Sigmund Freud, Três ensaios sobre a teoria da sexualidade Claro que o erótico e o estético têm uma história que cola aos graus de censura no que se refere à sexualidade, desde as folhas de vinha acrescentadas aos regaços das primeiras criaturas no tecto da capela Sistina até ao quadro de Courbet escondido atrás de outra tela para ser mantido secreto. Se sobre a beleza pesa uma proibição, a estética é a procura de substitutos. O erótico não tem propriamente que ser sugestivo mas antes metafórico: ao despir o seu vestido, não é tanto a imagem do seu corpo, carnal e fraco, que a mulher dá a ver, mas sim a revelação da sua divindade – que transforma o voyeur em cão – como uma caverna que nenhum «sésamo» abre, como um impronunciável hápax.
Pois o desejo não se reduz à posse, ou pelo menos não se satisfaz com ela – ela só pode desembocar na tristeza post coitum – antes visa nada menos que a fusão, a ultrapassagem dos limites físicos – e até de género –, o acesso a uma dimensão superior, a um prazer divino ou pelo menos desconhecido, provavelmente proibido aos mortais. O erótico é uma promessa a que nenhum objecto pode corresponder – que nenhum objecto pode conter; as religiões sabem-no bem e só o condenam para limitar a concorrência. O corpo assim problematizado tem de ser recomposto. Frankenstein é o modelo de todo o criador. O todo é composto por partes, como o quadro por manchas de cor. Nenhuma é autónoma e, apesar de reconhecível, no interstício que separa os dois amantes, impossível dizer a quem pertence tal braço ou tal mão. Foram arrancados ou são braços suplementares caídos do céu para melhor abraçar? Se o azul dos rostos – videntes e voyeurs dentro da cabeça – contrasta simbolicamente com o amarelo dos corpos, o vermelho desempenha neste quadro um duplo papel – jogo duplo – de evocação de laços de lingerie e realce das partes baixas, alvos do desejo – e o púbis nele se desenha por cima das cuecas. E quando os amantes se tocam, o braço de um incorpora-se no do outro, pelo que já não se pode visualmente identificar o dum e o doutro. Mas a fusão encetada pelos braços que fazem as vezes de vasos comunicantes atinge o conjunto dos corpos a ponto de que os sexos deixam de se distinguir e o homem confunde-se com a mulher, tal como a sombra, rubra qual brasa, se transforma em vestido para simultaneamente para tapar e despir o corpo. Mesmo o azul nocturno do fundo se revela transparente, opondo uma zona de baixo mais escura a uma parte de cima mais vazia. Poderia ser um combate. As carícias parecem golpes e reciprocamente. O corpo desfalece. O rasto de uma anterior tentativa de abraço ainda paira no ar. O erotismo é um desporto complicado...
Estamos longe dos clichés – aqui é a tentativa de representação que, em vez de simplificar os dados e banalizar o tema, os problematiza. Para pintar o abraço, Carlos Mendonça chega a suprimir um dos parceiros e é a própria pintura, por junção de traços ou por extensão do fundo, que procura uma forma de mãos para abraçar.
4. Mostrar e esconder, mostrar escondendo, esconder mostrando Peço perdão de antemão por evocar aqui uma recordação de carácter estritamente pessoal, uma anedota autêntica. Há quarenta anos, era eu jovem professor primário principiante, levei a minha turma, composta de crianças de dez anos, a ver um filme de Arthur Penn, «O Pequeno grande homem». No início do filme, o jovem protagonista e a sua irmã – vestida de homem, detalhe importante –, que fazem parte de uma caravana atacada pelos Índios – todo o filme é uma crítica e uma paródia da epopeia western –, são capturados e levados para o acampamento. É lá que, numa tenda, os Índios discutem a sorte dos cativos quando uma velha Índia desata a rir, afasta as calças da barriga da irmã e mostra aos guerreiros que se curvam e espreitam para dentro, a ausência de pénis, prova de que se enganaram. Ora, todos os meus miúdos se levantaram ao mesmo tempo das cadeiras a fim de, também eles, conseguirem mirar o que as calças da rapariga escondiam... Fui confrontado com uma cena semelhante em várias telas e desenhos de Carlos Mendonça:
A postura é perturbante a mais de um título: a personagem não enfia a mão nas calças alheias mas sim nas suas, para se masturbar ou se despir, é difícil decidir. Pelo que o parceiro só pode estar presente como fantasma, reflexo narcísico eventualmente supérfluo, inútil. É isso que o terceiro desenho tende a mostrar: a personagem, feminina, ao mesmo tempo vestida e desdobrada através da sua sombra, vai vasculhar dentro do corpo para atingir a zona erógena e passar da excitação ao prazer. Toda a obra de Carlos Mendonça interroga incansavelmente o «mistério feminino» e o da atracção sensual. O pincel é o seu escalpelo. Ao representar um corpo, ao nomeá-lo genericamente, torna visível um objecto desejado mas incompleto, fragmentário. Um traço de lápis, que marca a sua sombra e delimita o seu contorno, inscreve também uma fronteira, veste-a, fixa a clivagem. A encenação é aprisionamento e a tela encerra o seu objecto melhor do que uma muralha. Num só traço, o corpo é revelado e ocultado, exposto e tapado. Era invisível, passou a ser inacessível. Tanto quanto a representação do corpo ou do desejo, são os poderes e os limites da pintura que estão aqui submetidos a interrogatório. Antes de deporem as armas. 5. Para não concluir Estava fora de questão abordar nestas linhas todos os aspectos da obra de Carlos Mendonça. A componente humorística está tão fortemente presente que deve relativizar todas as considerações provisoriamente definitivas que formulei. O íntimo que se afixa só pode ser intimidante. O pintor brinca, utiliza o jogo e o infantilismo para contornar melhor a censura. Mas nunca se declara inocente. Maio de 2016 Saguenail