O PECADO MORA NOUTRO LADO Magistralmente contada por Kazan a um público americano, por tradição imbuído nos ensinamentos da Bíblia, a história de Abel e Caim sofre em EAST OF EDEN algumas alterações de sentido que não será desinteressante evidenciar. Trata-se sem dúvida de uma tentativa ousada de desculpabilização dos filhos de Caim (que são afinal todos os que se assumem como membros do rebanho de Deus), na medida em que a leitura do cineasta não só positiva o crime do «mau» irmão (representado por Cal), como também questiona a relação do Criador (o venerável pai) com as criaturas humanas. A personagem desempenhada por James Dean (jovem irrequieto, inquieto) é vil aos olhos do pai severo e moralista mas não aos do espectador que nele vê o arquétipo do adolescente agitado, rebelde, contraditório, violento... e fundamentalmente generoso. Por contraste, o bom coração de Aron surge como um bloco informe de gelo, pálida sombra da imponente figura do pai e o espectador adivinha rapidamente a fragilidade das convicções (inclusive as antibélicas que derretem à primeira crise) de um rapaz angélico mas sem «tomates». As preferências do rancheiro são pois claramente injustas. Porém, mais importante do que isso, o seu saber, que é fruto duma convivência obsessiva com as Escrituras, está totalmente desfasado da realidade humana — individual, social e económica. O Divino Papá é um falhado em todos os campos — no amor, na família e no trabalho. Não admira que Kazan resolva o problema da impotência (e da incompetência) de Deus, matando-o — ou pelo menos mostrando-o em estado de agonia — no fim da fita. Esta estrutura de inversão dos valores positivos e negativos inicial ou potencialmente atribuídos às personagens e instituições constitui a chave da composição dramática em Kazan: Marlon Brando em A STREETCAR NAMED DESIRE — da bestialidade à fragilidade —, a revolução em VIVA ZAPATA!, Spencer Tracy em SEA OF GRASS — da prepotência ao sacrifício — a virgindade de Nathalie Wood em SPLENDOR IN THE GRASS, a denúncia de Marlon Brando em ON THE WATERFRONT, o abuso de poder do médico e do chefe da policia em PANIC IN THE STREETS, etc. A estratégia é perversa dado que, se o cineasta aparentemente põe em causa certos valores religiosos, no fim de contas o que sai engrandecido do trabalho de ficção é a própria ordem humana imperfeita que assenta nesses valores. Todavia, a desconfiança sistemática no que diz respeito a leis e princípios mais ou menos sagrados fornece-nos pistas para compreendermos as tomadas de posição de Kazan. A riqueza da sua obra é inseparável da sua ambiguidade. De resto, o pecado de Caim não chega realmente a sê-lo visto que, embora praticado com as piores intenções e inspirado pelo ciúme, Cal limita-se a revelar a verdade sobre a mãe (sobre a origem), desfazendo a teia de piedosas mentiras urdida pelo pater famílias, a um Aron incapaz de lidar com a lama, o barro de que os homens são feitos. Por sua vez o exílio calha na sorte a Abel, condenado ao mal necessário da guerra (que ele sempre recusara com discursos dados como inconsistentes) e desterrado para leste do paraíso, leia-se o inferno da Europa a ferro e fogo a oriente duma edénica América. O protótipo do filho de Caim emerge como o bom americano, arrependido dos erros de juventude, empreendedor e visionário em matéria de negócios, semente prometedora de futuro; e, se porventura rouba a noiva ao mano, infringindo o mandamento que ordena que não se cobice a mulher alheia, fá-lo com a razão que o direito a recuperar todo o amor em atraso lhe confere. As mulheres em EAST OF EDEN são portadoras de um conhecimento profundo da duplicidade da natureza humana e de uma saudável amoralidade, o que lhes permite, quer no caso da personagem negra da mãe/patroa de bordel, quer no da branca e intuitiva Abbra, servirem de eficazes mediadoras cuja discreta acção restabelece a normalidade e reinjecta no mundo o precário equilíbrio que torna a vida viável, por oposição aos actos e palavras radicais que caracterizam a masculinidade. Em conclusão, podemos deduzir que para Kazan existem bons desordeiros — conquanto os haja maus como os portadores da peste em PANIC IN THE STREETS — e esses são aqueles que, como James Dean, sacralizam a terra prometida em detrimento das coisas do céu, aqueles que, como Cal,
se rendem à voz da terra realizando o milagre da multiplicação dos feijões e dos dólares. Porque isto de América também se joga a feijões. R. G.