O PROMETIDO AOS MORTOS Não quis Huston deixar este mundo e o do cinema sem corrigir a imagem que de si próprio os filmes esmaltaram. Assim, a sua última obra — THE DEAD, inspirada na novela homónima de James Joyce — corresponde toda ela à ideia que temos de jóia, tanto ao duplo nível do rigor e da minúcia (trata-se indubitavelmente da sua adaptação mais «inteligente») como pelo prazer de oferecer que nela perpassa (a oferta e os seus limites são aliás embalagem e tema do filme... não é proibido engolir uma lágrima). Homenagem à Irlanda, a fita é implicitamente homenagem à identidade infixável, do âmago às fronteiras, do indivíduo à história, da idade à nação. Nesta perspectiva, as relações humanas retratadas como calorosas e simples engendram um plano — o do convívio físico, místico, etc. — em que os seres se desencontram e por isso se medem à morte. No mundo agreste e hostil (no man's land), homens e mulheres (como actores que colonizassem o cenário) semeiam abrigos e dentro deles inventam outra cor, outros laços e sobretudo algum alimento para a memória que os desculpa de nem guardarem, nem perceberem. Mas os abrigos não evitam a invernia, como o fogo não apaga a neve, como ninguém impede nada. A solidão de Angelica H. («revelada» no fim do filme) é deixada em rodapé, sublinha que o dentro e o fora não se convertem — alguém fica por dentro, alguém fica de fora. A solidão dela (deles) é deixada como marca no branco nocturno (do lençol, dos campos, da página que se vai virar). Descobrir e registar sem mágoa a pobreza do espírito e a grandeza da alma? Porque, é certo, a razão e o desejo têm mais olhos do que barriga e, às vezes, nem olhos. Não é? Bye, bye, Huston. R. G.