O PUDOR DO IMPUDOR Que fazer quando se nasceu, como Pasolini, sob o signo infamante dos três P, donde a cidade de Braga tira a sua fama? Mais do que «Marx ou Freud», Pasolini parece-me, nos seus filmes como nos seus escritos, reunir num único discurso — e é isso que lhe confere uma força única de provocação — a crítica aguda do mundo contemporâneo e o exorcismo, ou pelo menos a exibição, dos demónios e das dilacerações pessoais — racionalismo e paixão, lucidez e empenhamento (enquanto a obra de Woody Allen, por exemplo, se divide nitidamente em duas vertentes distintas conforme o grau de implicação do autor). Pasolini não é um formalista, as suas imagens valem tão só pelo conteúdo — encenadas mais do que enquadradas — e este é sobretudo constituído por pessoas. Isto é, quando Pasolini filma rostos — Maria Callas em MEDEIA, P. Clementi em POCILGA, a própria mãe em O EVANGELHO SEGUNDO S. MATEUS, A. Magnani em MAMMA ROMA, Tótó em PASSARINHOS E PASSARÕES, N. Davoli e F. Citti em quase todos os seus filmes —, faz questão de manter o peso simbólico dessas caras que os actores possuem fora das personagens — tragédia do abandono do canto para Maria Callas, sofrimento e prisão de P. Clementi, idolatria e incompreensão da sua mãe, cabotinagem de Tótó, cobardia de vadios de N. Davoli e F. Citti — (só a escolha de T. Stamp em TEOREMA parece ter sido um erro, na medida em que a aura hollywoodiana não podia gerar o mistério que o papel exigia). E quando filma corpos, em SALÓ, é justamente a sua degradação no anonimato da carne que ele denuncia. Os filmes de Pasolini não se fecham sobre o seu universo diegético: como ANTÓNIO DAS MORTES de Glauber Rocha, ÉDIPO-REI salta para o mundo contemporâneo, no fim do filme. Pasolini sabe que a elaboração ficcional é manipulatória e que a confissão pessoal é pura vaidade; não escolhe nem uma nem outra via, mas empenha a realidade das suas relações amorosas, filiais, de admiração, sempre de respeito, como garante da sinceridade. Era fatal que Pasolini viesse a assumir certos papéis seus filmes — Giotto no DECAMERON, Chaucer em OS CONTOS DE CANTUÁRIA... Ora, é óbvio que esta aparente arrogância era a única atitude que, mesmo correndo o risco de ultrapassar as intenções do autor, não se redundava em falsificação logo à partida: Pasolini expõe-se. É o impudor que confere acuidade ao seu discurso: é por SALÓ parecer insuportável de se ver que o realizador consegue, sem pathos, pôr em causa certos fantasmas sádicos — ou seja, a atitude de Pasolini em relação à violência neste filme é exactamente o contrário da complacência ou do fascínio que entrevemos nos filmes americanos, verdadeiros infernos cheios de boas intenções. Embora possamos deplorar que o discurso de Sade apareça reduzido a uma ilustração do fascismo, desconfiar do gosto mórbido que em alguns lugares transformou SALÔ num filme-culto, não é possível duvidar da frontalidade de Pasolini que filma a tortura sem emoção nem participação, como filmava a fome confundível com a gula em LA RICOT'TA, ou os rostos obscenos dos maridos cornudos — obscenidade escolhida em função do seu ciúme — no DECAMERON. Pasolini pode não nos convencer — ele não procura fascinar-nos — mas não nos deixa indiferente — porque nos agride — nem podemos reduzi-lo a um verniz cultural de bom gosto para melhor o esquecermos — a sua estética é a de um «primitivo», oriunda de uma figuração anterior à perspectiva. Ao actualizar os mitos da civilização ocidental, tentou verificar se eles mantinham intacto o seu vigor polémico. O impudor natural de Pasolini revela apenas a fraqueza do nosso pudor, i. e. a nossa autocensura. S.