O que poderia ser um quadro

O QUE PODERIA SER UM QUADRO À direita do pai improvável, o matinal Jean Genet. À sua esquerda, Fassbinder a dar os últimos retoques ao crepúsculo. Desse pai a toda a prova que é o mau génio e o engenho ou a comichão, que é o excesso e a falta de palavras ou a prisão do ventre, herda-se a urgência de dar a sentir. A exaltação do primeiro explicita o império da repugnância no segundo. Fassbinder foi mostrando os seres humanos daquele ponto de vista da criança que não quer ser beijada. (Nojo é tristeza e é asco). Até QUERELLE onde se reúnem sob o sol eléctrico duas vontades diversas de ser braço executante nessa ideia comum de corpo reduzido a (ou transcendido pelo) membro. O sentido da obra confunde-se com a reincidência. É árduo exprimir de dentro uma interrogação sobre a decadência (que não passa da imagem projectada no social do que se passa com o corpo). Por isso QUERELLE proclama e encena, com uma insistência quase romântica pela paixão auto-contemplativa, a absurda necessidade do crime e da expiação. À luz então fictícia dum mar que é um vasto vulcão extinto, as personagens convidam o público a extinguir-se. O élan de renúncia é de todos os filmes de Fassbinder. O físico, como que náufrago à tona do ecrã, conta a história da regeneração indesejada, quer dizer de uma cadência de mortes a que a morte obriga. Jean Genet disse-lhe tudo ao contrário.

E naqueles palcos, onde caberiam coreografias, as personagens param e escutam-se, criando quase a impressão de desafiarem o olho de uma divindade mecânica. A invulgaridade das provações que se procuram comove: rebenta à flor dos olhos uma música interior.

As figuras actuam como se de si conservassem uma parte por descobrir: essa assentanos como uma luva. QUERELLE poderia ter sido o batatal de Fassbinder. Mas o cineasta só lá plantou espantalhos.

R. G.