O refluxo da nova vaga

Page 1

O Refluxo da Nova Vaga Vinte e cinco anos decorreram desde a eclosão da «Nova Vaga», geralmente assimilada hoje ao pequeno grupo dos Cahiers du Cinéma — aqueles que conheceram uma carreira ascendente. Os jovens em cólera tornaram-se cineastas calejados e parece-nos mais interessante, pela ocasião do falecimento de um deles, comparar as distâncias percorridas a partir duma origem comum do que restituir um percurso individual (não nos debruçaremos sobre o caso de Claude Chabrol, cuja obra deixou de nos interessar por alturas do terceiro filme; consideraremos apenas o trajecto de quatro realizadores: François Truffaut, Jean-Luc Godard, Eric Rohmer e Jacques Rivette). No fim dos anos 50 os críticos dos Cahiers são famosos e temidos; combateram um cinema que dissimulava a insipidez e o convencionalismo sob o manto da generosidade de sentimentos, para defenderem um cinema que se assumisse como espectáculo; lutaram sobretudo contra a patetice dum cinema francês bem acabadinho para defenderem autores que se impunham apesar do nivelamento engendrado pelo sistema de produção. O cinema é para eles uma arte, para não dizer uma religião. Os valores que defendem são frequentemente contraditórios na aparência: a teatralidade e o realismo; o cinema americano e o neo-realismo italiano; os «autores» (Rossellini, Bergman, Mizoguchi) e a força do documento (Tarzieff, Cousteau, etc.). A solução de continuidade é contudo mais aparente do que real: o realismo só é verdadeiro quando assume a teatralidade do espectáculo, e a ficção é o documento mais sincero sobre um actor, um realizador, etc.. Acima de tudo, os Cahiers não se detêm na imagem que o cinema procura dar de si próprio — uma história e actores — mas abordam, para além das questões formais, as condições práticas da produção e os problemas técnicos que a estética abrange. A maneira amigável, mais do que respeitosa, como falam dos realizadores, permite facilmente antever que a passagem ao acto para este bando de críticos é apenas uma questão de tempo. O seu militantismo pelo cinema declara-se de bom grado apolítico (Podemos retrospectivamente adivinhar nesta posição um efeito de ressaca correspondente ao momento em que o movimento surrealista abandona a praça pública: este movimento era na época alvo dos ataques tanto do partido comunista como da «direita», consenso que visava submetê-los rapidamente à lei do silêncio. Ora, apesar dos críticos dos Cahiers não fazerem qualquer referência a estes factos e de Breton, uns anos depois de ter participado na efémera revista L'âge du cinéma, ter condenado o conjunto das produções deste medium, o surrealismo será uma referência explícita de Godard logo nos seus primeiros filmes — com o seu critério de «homem livre» — mas sobretudo em Pierrot le fou e Alphaville — em que Eddie Constantine declama ao longo do filme poemas de Éluard — e de Rivette cujo segundo filme se intitula L' amour fou). Os seus filmes são o verdadeiro objecto do seu empenhamento. Dois deles abandonam então os respectivos pseudónimos: Eric Rohmer assinava Maurice Shérer e Jean-Luc Godard, Hans Lucas. É também sabido que, desde os primeiros filmes, embora existisse um acordo de gostos, de concepção do cinema e de temática profunda — espectáculo e vida, ou seja captação do real —, as divergências estalam. Talvez se tratasse então de diferenças no plano qualitativo: Truffaut, sempre próximo da autobiografia, dificilmente se liberta dos fantasmas pessoais; Rivette faz coincidir vida e rodagem, vida e ficção; Rohmer acredita apenas na verdade do artifício; finalmente Godard toma o mundo visível como cenário de ficções que por esta via deixam de o ser. Mas não é nossa intenção enveredar pela análise dos filmes, mas sim das práticas e das concepções do cinema. Os primeiros filmes dos quatro têm em comum, para além dum certo tom gracejante — este tom é talvez o laço mais forte que liga o conjunto de filmes com a etiqueta «Nova Vaga» —, uma vontade de provocar emoções inéditas, uma superabundância de citações e, «last but not least», um orçamento modesto que se repercute nas opções estéticas. Os resultados são no entanto muito diferentes: Truffaut alivia-se das imagens e ideias que o oprimem; Rohmer lima os seus filmes à maneira dum miniaturista, multiplicando o belo prazer da regra — inspirado nos retóricos franceses do século XVI; Rivette é o único a trabalhar em plena improvisação; Godard parte do princípio de que o que foi dito ou mostrado não deve voltar a sê-lo e força sistematicamente as convenções. Sobretudo é notório que cada um deles soube encontrar à primeira longa-metragem um estilo


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.