O retiro do mundo

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O RETIRO DO MUNDO A ILHA DOS AMORES apresenta-se como um filme formalista, quer dizer, não como um filme em que a forma prevalece sobre o conteúdo mas como um trabalho em que a pesquisa formal cria o sentido. A câmara desloca-se permanentemente durante longos planos-sequência e constrói o espaço, procurando isolar as personagens ou as acções pelo enquadramento, aproveitando todas as aberturas — janela, espelho — para modificar a perspectiva. Produzem-se então dois fenómenos: a) os cenários reais tornam-se abstractos, tanto a gruta de Macau como a casa japonesa perdem a materialidade e, deixando de ser cenário natural ou estúdio, não passam de meras imagens; b) condicionados pelo modelo da ubiquidade e pelo duplo estatuto da musa/amante, os cenários fundem-se e abolem a distância: o museu da guerra da primeira sequência transforma-se em hospital, da casa japonesa passamos para a casa lisboeta. Mas esta unidade reforça a reclusão: janelas e espelhos nunca se abrem para outro espaço. Tal como o monumento em que o universo é simbolicamente convertido em cinco formas essenciais, o filme desenrola-se em alguns lugares simbólicos essenciais, ritmado pela repetição, de «canto» para «canto», das cerimónias de separação e de morte. Cada uma dessas separações, de pátrias e mulheres sucessivas, aproxima a personagem da sua própria morte, vivida através da morte das outras — embaixadoras dum «outro mundo». Esta experiência culmina com a cena em que Moraes experimenta a sua própria morte nas escadas a partir dos relatos que os jornais dela publicarão. Com efeito, o tempo parece tão concentrado como o espaço. A representação teatralizada faz também explodir os conceitos de montagem que ligam duração e plano: a primeira sequência constrói a sua duração contra uma montagem relativamente rápida graças à permanência dos actores e do cenário e à continuidade do discurso. Inversamente, os movimentos constantes da câmara nos planos-sequência exigem bruscas acelerações no momento em que a perspectiva se altera. Filme relativamente esquizofrénico pois o espectador não possui todos os elementos biográficos para preencher as elipses, e a maneira como Rocha reinventa uma geometria dos planos, de cena para cena, nunca lhe permite antecipar ou identificar à partida. O cerimonial da representação ultrapassa, no fim de contas, a aventura individual de Moraes dada como percurso exemplar ou simbólico. Este tratamento do real, tanto geográfico como histórico, que o cineasta consegue submeter a um novo espaço, a uma nova duração e a um sentido reinventado, excede as possibilidades conhecidas do cinema — Rocha opera sobre o real a estilização e a teatralização que Oliveira obtém em estúdio. Mas, ao mesmo tempo, o real desencarna-se e passa a ser simulacro duma representação simbólica; Moraes retira-se do mundo, mas o mundo retira-se de si próprio no decurso desta viagem no seio da morte; a ilha dos amores é aquela donde não se regressa e, exactamente como Moraes após a morte de cada uma das suas mulheres, no fim da projecção, uma vez cumprida a cerimónia, queimadas as fotografias, pesa ao espectador a fatalidade de sobreviver. S.


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