O sonho de uma cidadania

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O SONHO DE UMA CIDADANIA Antes de escrever acerca do DOURO FAINA FLUVIAL tento sonhar com o filme, induzir um sonho sobre as imagens tantas vezes vistas desta cidade que é minha e já não existe. E elas vêm, curtos flashes, estranhamente montados e interrompidos pelo olhar negro e o sobrolho carregado do Eric Von Stroheim. (Que maduro me saiu este Stroheim, metido num filme que não é o dele!) É importante sonhar o Porto numa época em que nos anunciam o nascimento de uma nova cidade? É. Foi o Manoel de Oliveira quem, pela primeira vez, mostrou a velha e caótica urbe de granito como um sonho cubista e futurista, a partir da sua matriz — a zona ribeirinha. Essa proposta de cidade, construída numa relação ora apolínea ora dionisíaca com o rio, virá a ser completamente obliterada nos negros anos de ditadura que se seguirão à realização do filme. O Porto que o Estado Novo constrói tem como exemplos mais significativos os bairros parecidos com o das Antas, ou seja perfeitas réplicas de outros complexos de habitação implantados na capital e noutras cidades do país. A negação da identidade das mentes e dos espaços foi — existe agora uma perigosa tendência para esquecê-lo — a mais temível arma de Salazar que à heterogeneidade pretendia opor a ordem do pensamento único e a força disciplinadora. O Porto pequeno-burguês, funcionário, colaboracionista vira costas à Ribeira regateira, rebelde, pé descalço e mão na ilharga. Recentemente, o cineasta Paulo Rocha, discípulo desobediente de Manoel de Oliveira, intitulou o documentário dedicado à obra do mestre (que realizou para a série "Cinéastes de notre temps" produzida pelo canal de televisão ARTE) O ARQUITECTO. E, de facto, independentemente de qualquer circunstância biográfica ou vocação frustrada, nenhuma reflexão, nenhuma obra no espaço realizada por arquitecto, terá tido o valor cultual e o impacto que o olhar de Oliveira sobre o Porto tivera. Não é por acaso que todo o processo de implantação de bares, pubs, cafés, restaurantes e outros estabelecimentos afins na zona da Ribeira ganha contornos de escolha geracional com a abertura do "Aniki-Bóbó", o espaço simbolicamente mais consensual da intelectualidade portuense no pós-25 de Abril (e isto embora a reactivação de uma "relação forte" da cidade com o rio se tenha traduzido por uma certa descaracterização da zona). O cinema enquanto pensamento do espaço, e do espaço urbano em particular já que a 7ª arte nasceu na civilização das cidades, é um tema que frequentemente vem a lume, inclusive no nosso "provinciano" circuito de eventos culturais. Acontece que raramente os discursos sobre a fruição do espaço — de variável apetite visionário — têm a competência de o relacionar com o trabalho e a actividade humana que (também) os moldou corno acontece no DOURO FAINA FLUVIAL. O habitante das margens do Douro é, para Oliveira, o trágico HOMO FABER, e a "faina" a sua forma peculiar de contemplação da natureza. (Stroheim, com uma expressão cada vez mais desaprovadora, lembra-me que a cobiça é mãe de todos os vícios e nem natura nem humana natureza a essa regra fazem excepção). Quem atentar na maneira como Oliveira, o mestre, fez coincidir na sua obra o pensamento com o próprio acto de fabricar as imagens, a reflexão com a acção, a meditação com a encenação, a afirmação da fé com os andaimes da dúvida, não poderá deixar de ver em DOURO FAINA FLUVIAL um projecto da sua própria cidadania enquanto artista trabalhador. Pois, após a observação da faina, o cineasta ensina-nos a trabalhar o real com esse instrumento de inesgotáveis recursos que é a imagem em movimento. Ou seja ensina-nos a única forma de trabalho que, neste mundo em crescente mecanização, merece ser preservada. Custe o que custar (Stroheim aconselha a inacabar...). Ontem dissemos a terra a quem a trabalha; hoje acrescentamos: e a quem a imagina. Regina Guimarães


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