O SUB-PIGMALIÃO Numa entrevista concedida à revista A Grande Ilusão, Daniel Schmid confidenciou-nos que não saberia fazer outro ofício que não o cinema, exceptuando talvez conduzir um táxi. Na altura ocorreu-me que devia haver uma relação evidente entre os táxis e o cinema: as imagens em movimento, a continuidade sonora dos ruídos da cidade, a banda dialogada das conversas dos clientes, o facto de se viver tudo isso num espaço fechado e na posição sentada. Poucas ilações se poderão tirar desta associação pobre, mas fico com a impressão de ter visto muitas cenas dentro de carros de aluguer e dentro de filmes. Duas fitas há, contudo, que se destacam neste magma impreciso da memória cinematográfica. São eles TAXI DRIVER do americano Martin Scorsese e o recente TAXI BLUES de Pavel Lounguine. Para além duma óbvia identidade de ponto de vista — o dos protagonistas que são motoristas de táxi em duas grandes cidades — existe uma curiosa simetria (decerto plenamente assumida pelo realizador do segundo) entre as citadas obras. Em ambas a reflexão do cineasta se cristaliza em egos repugnantes (as negras almas de dois condutores armados em salvadores de ovelhas tresmalhadas) que se movem numa sociedade que escorregou pela escala de valores abaixo, uma comunidade onde o inimigo dos «homens da rua» que os protagonistas encarnam é tão inconsistente e diluído quanto os seus ódios são inconsequentes e violentos. A prática da cultura física (o corpo visto como uma arma) surte também um efeito de proximidade entre os dois profissionais do táxi. Last but not least, face aos sistemas sociais degradados que parecem já não segregar anti-sistemas eficazes nem conseguir manter válvulas de segurança (do sonho americano e do sonho soviético apenas restam farrapos), tanto um como o outro concebem o projecto de salvar a vida de alguém, sendo certa a morte dos ideais colectivos. Para sobreviver no mundo que TAXI DRIVER e TAXI BLUES retratam, é preciso fazer de conta que Deus não existe e portanto os cineastas discorrem sobre a dificuldade dessa simulação. Nova Iorque tem o rosto colorido da festa permanente e o longo travelling de carro do princípio de TAXI BLUES mostra-nos Moscovo em festa (sob um céu pejado de fogos furta-cores). É numa cena de borga nocturna (dentro do táxi) que Vania encontra pela primeira vez Liocha, um saxofonista judeu que descura a carreira de músico e consagra as noites às tristes bebedeiras de vodka (que é como quem diz a ganza do povo); e, logo no primeiro encontro, Vania é intrujado pelo impenetrável instrumentista — conduzido até à porta dum suposto conhecido, Liocha deixa o motorista a «secar» uma noite inteira dentro do veículo. O valor simbólico deste cruzamento de vidas é desde logo assinalado pelo ícone que fecha esta cena: a silhueta de Vania rígida, imóvel e musculada como uma estátua, ao jeito do realismo socialista, recorta-se vigilante sobre o fundo sórdido dum bairro de betão. No decorrer das cenas seguintes, Vania vai acalentar o obscuro plano de transformar o amoral Liocha num «homem», categoria que, no imaginário do antigo novo homem da Rússia social-fascista, significa «criado». Ora o imaterial e imaterialista saxofonista escapa de todo em todo aos quadros mentais do motorista — «Não farás de mim ama besta de carga». Ele é o palhaço de Deus, saído dum quadro de Rouault e errante num país a rebentar pelas costuras dos planos quinquenais, ele é o auto-denominado «génio» que «diz tu a Deus», cujo «blues» vindo de alhures parece inconciliável com a estética estafada da velha guarda — os mais patéticos do que heróicos cantos revolucionários da mãe Rússia — e com a estética degradada made in USA que floresce, serôdia, nos becos de Moscovo — os neo-Hare-Krishna, os neo-hippies, os neo-yé-yés... Para grande exasperação de Vania (condenado a contentar-se com o peixe seco, i. e. a não comungar do fogo sagrado dos deuses), o judeu acabará por achar uma alma gémea na pessoa do black brother Hal Singer, circunstância que lhe abre as portas de um sucesso que o filme não deixa de denunciar enquanto paródia do paraíso do consumo; e, de repente, Liocha subido ao ecrã gigante da televisão da avenida (são os olhos de Deus do reclame, como em The Great Gatsby de Scott Fitzgerald), subido aos palcos prestigiosos da capital soviética, aparece ao perturbado motorista como um ersatz da divindade, uma prova viva da existência do génio. Se Liocha se tornasse verdade absoluta e durável aos olhos de Vania, o mundo estaria porventura salvo. Mas eis que, durante uma visita ao apartamento e aos «amigos» que lhe haviam dado guarida, o saxofonista regressado dos EUA se revela a um Vania à beira da «conversão»: já não palhaço de Deus, mas simples palhaço, vedeta
debochada pelos louros e pelos dólares. É o sinal «boneca de borracha» — subliminarmente: «a criatura és tu» — que abre a última sequência do filme, pastiche duma cena de perseguição à americana. Literalmente desvairado pela perda do odor de santidade de Liocha, Vania lança-se numa corrida «policial», numa caça ao «homem» que o desiludiu. A aurora clareia na cinzenta Moscovo (repetição de alguns postais do começo do filme), quando o inevitável acidente acontece: a vítima da fúria do «bom russo» é significativamente um «inofensivo» japonês. TAXI BLUES, não sendo um remake de TAXI DRIVER, ganha contudo uma mais-valia de sentido quando comparado com este último. O indício fundamental de diferença entre os dois filmes reside no desenlace. O motorista americano, inspirado pela duvidosa moral da autodefesa, não olha a meios para atingir os seus messiânicos fins e salva efectivamente a jovem prostituta, devolvendo-se à boa ordem da família, enquanto Vania se engana tão redondamente que não consegue sequer influir na duvidosa ascensão da sua criatura — a explosão final no asfalto aponta para um truque de magia, comentário lacónico da substituição que, sob os nossos olhos, se efectuou. Pronto: a caixa anónima do táxi pode gerar heróis sem filme. R. G.