O valor da imagem

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O VALOR DA IMAGEM MARX REVISITED A elaboração de uma teoria materialista está ligada, no século XIX, ao desenvolvimento prodigioso do sector secundário («revolução industrial»). Baseia-se ela no cálculo do valor de uma mercadoria material em função dos custos de produção. Descreve o funcionamento de um sistema em que o valor de uso é substituído pelo valor de troca: duas mercadorias são iguais desde que o seu valor seja, financeiramente, equivalente. O padrão de cálculo é a força de trabalho e a sua reconstituição. Ora o fenómeno mais marcante do século XX é o desenvolvimento de um sector terciário, não produtivo — no tocante a mercadorias materiais —, logo parasitário, e do qual as utopias sociais do século passado previam a supressão. O carácter imaterial da produção do sector terciário obriga a uma revisão da noção de trabalho tal como fora definida por Marx: com efeito, o trabalho deixa de ser analisável em termos de dispêndio de força de trabalho, passando a ser avaliável em função do dispêndio de tempo; este último não pode ser «reconstituído», no máximo poderá ser «compensado». Assistimos, no fim do século XX, à expansão, nos países super-desenvolvidos, de uma indústria do lazer, indústria essa que, conquanto sempre tenha existido como actividade de «distracção» — i. e. de «défoulement» das emoções reprimidas durante um período de trabalho extenuante: do «panem et circenses» ao moderno futebol —, era, enquanto «ocupação dos tempos livres», reservada às classes dirigentes — as únicas que gozavam de um privilégio de ócio. A mudança de função social altera, como é óbvio, a própria essência do lazer: enquanto a distracção encena, de maneira simbólica, um combate no decorrer do qual o espectador projectará a sua raiva e assim a esgotará, o lazer deve encorajar o papel passivo do público — nesse sentido, é assimilável a outros logros que servem de alicerces à ordem social, tais como as eleições, a informação, etc. Mas, sobretudo, o lazer deve apresentar uma imagem do mundo que glorifique a ordem estabelecida e justifique a existência do sector terciário, aparecendo este como principal consumidor da ficção que produz, uma vez que tende a dominar numericamente os sectores produtivos ao nível material.

O sector terciário não produz mercadorias mas imagens — sejam elas sob forma de contabilidade, de estatística, de reportagem, de aula ou qualquer outra aparência. Essas imagens determinam o valor dos objectos — materiais ou abstractos — representados: com efeito, o aumento do custo devido à necessidade de fazer viver um sector parasitário implica a impossibilidade de calcular o valor de um objecto em função do trabalho ligado à sua produção, e introduz a obrigatoriedade da elaboração de uma ficção para justificar o valor — fictício — do objecto doravante decorrente da sua imagem. O próprio «capital», valor material por excelência, vale menos do que a sua imagem: o crédito. Todo o processo de produção se modificou: o objectivo já não é o objecto acabado (finito) — cujo valor material era passível de cálculo — mas o objecto inacabado (infinito), i. e., cujo conjunto de qualidades inclui a necessidade da sua renovação após consumo. A materialidade está ligada à duração; ora as imagens produzidas têm apenas um valor de actualidade: esgotam-se no próprio acto de consumo. Porém, tal consumo cria uma necessidade, uma procura, que justifica a sua produção


constante. A produção já não visa um objecto em si, mas a instauração de uma estrutura que garanta a manutenção de um sector parasitário. Do ponto de vista económico essa produção é da mesma ordem que as grandes obras inúteis levadas a cabo para estacar o desemprego durante as grandes crises, com a diferença de que as relações se invertem, e que a actual estrutura parasitária enforma a totalidade da produção num contexto de crise que se tornou endémica. Se o capital controla a situação é porque, por um lado, mantém uma mobilidade notável — as empresas locais são gradualmente absorvidas por firmas multinacionais, enquanto o sector secundário de produção se desloca geograficamente para os países do «terceiro mundo» —, por outro, a imagem e o crédito que ela possibilita valem doravante mais do que os lucros imediatos, posto que, numa percepção inteiramente ficcionalizada do mundo, tanto a crise como a estabilidade do sistema são elas próprias fictícias.

A essência da imagem é publicitária. O custo dessa publicidade vai a pouco e pouco prevalecendo sobre o dos produtos materiais publicitados, sem que nunca se tenha podido estabelecer uma equação entre o aumento das vendas e o custo da publicidade. Porque a vitória da publicidade, o seu verdadeiro alvo, é engendrar a sua necessidade. O custo da publicidade é justificado não pelos lucros imediatos que permite granjear, mas pelos empregos e pelas estruturas — a quase totalidade dos media — que dela vivem. A publicidade, para além do produto que a motiva, promove um modelo de organização social dentro do qual a sua existência é indispensável — por exemplo: os frutos «normalizados» representam frutos que correspondem a uma imagem, independente das qualidades intrínsecas; as previsões orçamentais declaram um objecto financeiramente positivo sem terem em conta a situação económica real; as «notícias» do mundo descrevem conflitos cujas causas profundas e cujas soluções possíveis não têm de ser discutidas, etc. Assim como a acumulação do capital engendra um sistema que obedece a uma lógica expansionista, a ponto de poder ir contra os seus próprios interesses — como se constata abertamente em cada época de crise (cf. a dívida dos países subdesenvolvidos) —, a acumulação das imagens engendra um sistema de produção/consumo, tendente a constituir-se em circuito fechado: por um lado, as imagens autonomizam-se em relação aos objectos materiais que representam e passam a funcionar dentro de uma ficção que a realidade material só pode entravar; por outro, a influência que exercem sobre o público limita-se ao âmbito do seu próprio consumo — ocupação do tempo. O desenvolvimento dos meios de comunicação «de massas», que moldam o conjunto das estruturas de produção de imagens, instaurou um modo de comunicação unilateral em que o «feed-back» se cinge à verificação de um consumo passivo. A produção de imagens pode prescindir dos objectos a promover: pode tomar-se a si própria por objecto; assistimos cada vez mais amiúde a uma produção de imagens que fixa um valor às imagens iniciais. Doravante o valor de um objecto depende das imagens que asseguram a sua promoção, imagens essas cujo custo é superior ao objecto em si — imagens sem valor intrínseco enquanto não passam, por sua vez, a ser objectos de imagens. Conquanto a maioria dos trabalhadores do sector terciário não possam legitimamente aspirar a mais que um salário — que institui a necessidade do trabalho que desenvolvem —, os que controlam a produção de imagens têm consciência de que a sua actividade determina o valor das mercadorias cuja circulação alicerça o funcionamento do sistema capitalista; os lucros que lhes cabem traduzem-


se mais em termos de poder do que a nível financeiro — as duas entidades andam ligadas mas o poder representa o lucro imaterial reivindicado pelas classes dirigentes desde a revolução francesa; os detentores do capital (material) apoderaram-se da super-estrutura imaterial que institucionaliza a posse enquanto prática: o exercício do poder. A importância do poder em jogo revela-se inversamente proporcional aos lucros materiais imediatos, i. e., quanto mais imaterial for o objecto publicitado, mais a atribuição de um valor a esse objecto visará a aquisição de um poder. Os produtores de imagens estão ao serviço do capital — o sector terciário é precisamente definido como um sector de «serviços» —; o serviço de atribuição de um valor fictício é recompensado com proveitos em termos de poder. A classe política, os media — produtores de imagens públicas elas próprias objectos de imagens —, exercem um poder superior ao dos contabilistas ou dos publicistas — produtores de imagens privadas — na medida em que a actividade que desenvolvem está menos directamente ligada ao benefício financeiro imediato resultante da circulação de mercadorias. Está claro que este poder é totalmente fictício. Assenta numa ficção cuja sobrevivência depende da passividade — reconhecimento tácito — dos consumidores. Ora esses consumidores pertencem ao sector terciário e são eles próprios produtores de imagens. Assim, as imagens tendem a dividir-se em duas categorias complementares: imagens-económicas que asseguram a manutenção dos valores nos quais o sistema se baseia, imagens--espectáculo que garantem a ocupação do tempo «livre» e que portanto regulam a estabilidade mantendo passiva a infra-estrutura social. Ambas as categorias são portadoras da mesma ficção latente — as imagens que apresentam abertamente esta ficção tornam-se ambivalentes e pertencem às duas categorias: é o caso do discurso político. O poder fictício — enquanto não se materializa em proveito financeiro — exerce-se antes de tudo de forma negativa: tanto a sua legitimidade como a sua própria existência seriam fatalmente postas em causa pelo aparecimento de novos valores.

O REINO DAS SOMBRAS Platão recorre à alegoria da «caverna» para ilustrar a nossa percepção dos arquétipos materializados em cada objecto; o nosso contacto permanente com imagens que nos furtam à materialidade dos objectos corrobora a alegoria platónica mas inverte-a — é curioso observar que muitas histórias do cinema remetem a invenção dos media para a alegoria da caverna. A nossa relação com o mundo e com os objectos que o compõem está totalmente ficcionalizada. As conotações atribuídas aos objectos, por eles veiculadas, condicionam a nossa percepção e o nosso comportamento. O mundo não tem sentido em si, temos de o interpretar à luz de uma ficção coerente para podermos agir. No entanto, são as condições materiais da nossa acção, num espaço e num tempo determinados, que ordenam a interpretação que adoptamos. Duas mudanças históricas profundas vieram modificar essa ficção no decorrer do século passado: uma primeira, ao nível material, prende-se com o transcender das necessidades de mera sobrevivência como motor dos nossos actos; a segunda, ao nível da superestrutura, consiste na eclosão de ideologias que preconizam a liberdade e a responsabilidade


individual dos nossos actos e que de algum modo substituíram as ideologias, essencialmente religiosas, de submissão. O proveito da primeira traduz-se antes do mais peio aparecimento de um «tempo livre» que o poder se encarrega de «ocupar» — o termo aplica-se habitualmente a um território, mas significa sempre «confiscar» —; a segunda é uma ilusão que o poder tem de manter — mas é essa ilusão que pode engendrar movimentos de resistência. A produção de imagens públicas adopta então duas novas fórmulas que constituem a base daquilo a que E. Morin chamou «cultura de massas»: a informação — desenvolvimento acelerado dos jornais — e a «ficção» no sentido estrito — a literatura «popular» durante muito tempo excluída do panteão da Literatura. Caracterizam-se elas por uma adesão à actualidade — só muito lentamente a ficção veio inventando uma História à altura de explicar a presente ordem social — e por uma aparente ausência de empenhamento: a informação pretende-se «objectiva», o romance só pretende produzir verosimilhança e não verdade. As duas formas utilizam o mesmo suporte — os folhetins são publicados pelos jornais — e esse partilhar do veículo de difusão faz com que as qualidades de um possam influenciar a recepção do outro por simples contiguidade. Esta interacção manteve-se quando a função social de ficcionalização do nosso entendimento do mundo passou a ser desempenhada por outros media: o cinema — durante muito tempo, o programa de «actualidades» acompanhava obrigatoriamente a apresentação de um filme — e depois a televisão. Paralelamente, de início para uso privado da classe dirigente, nascia um novo conceito: a arte — a palavra já existia mas toma a actual acepção, segundo os historiadores, pouco antes da revolução francesa, na mesma época em que surge o termo «literatura»... (a super-estrutura acompanha, no plano dos conceitos, as transformações da estrutura ao nível das formas de produção). Logo à partida, o conceito funciona como atribuição de um valor, imaterial, mas que permite a eclosão de um novo mercado em que este valor poderá ser materializado em termos financeiros. A maior parte das imagens do passado recebem a nova etiqueta, apesar da sua função, particularmente no que diz respeito à iconografia religiosa, ter sido, de facto, veicular uma ficção outra. A recuperação artística vai alargar-se e revelar-se o principal modo de valorização da produção de imagens em si, ocultando o papel dessas imagens. Todavia a promoção artística só se dirige a uma elite cultural e social, que alimenta um valor cultual da imagem — valor esse simultaneamente de uso (cultura e emoção) e de troca, posto que existem mercados. Tal promoção é cada vez mais artificial, na medida em que não corresponde às condições reais de produção das imagens e, acima de tudo, em que ignora a função social de atribuição de um valor fictício aos objectos representados destas últimas. A referida função social só é compatível com um valor de exposição que se limita ao seu próprio consumo até serem substituídas por novas imagens — é preciso voltar uma vez mais às análises de W. Benjamim que só se enganou num ponto: a reprodutibilidade técnica da imagem, conquanto possibilite um alargamento da sua exposição (estandardização dos modelos), desencadeia sobretudo uma super-produção e um super-consumo, no âmbito dos quais impera a sua substituibilidade (a reprodutibilidade, com a televisão, leva à unicidade de exposição). A par da arte oficial desenvolveu-se, no entanto, uma produção de imagens que contestavam os valores estabelecidos — ou os valores que o poder procurava promover — cujos autores foram, na sua maioria, «malditos» em vida. Constata-se que, a ter havido uma evolução estética, ela deve-se exclusivamente à sua influência. Todos reivindicaram a subjectividade como valor intrínseco das suas imagens: contra o valor informativo no qual assenta a função social da produção de imagens — logo contra a valorização do objecto representado — afirmam um valor deformativo com o qual a «beleza» nada tem a ver — os objectos representados são, antes de tudo, portadores da raiva do autor. A «modernidade» dessas imagens deve-se talvez, no fim de contas, à permanência dos valores que elas contestavam. O valor deformativo é inextricável das imagens que nos deixaram e, enquanto tal, incompatível com a função social da produção de imagens. A noção perfeitamente idealista de «valor intrínseco» — imaterial — materializa-se a partir do momento em que se revela capaz de modificar um comportamento — pois a materialidade de um objecto verifica-se pela capacidade que possui de condicionar a gestualidade de quem o manipula — i. e., em que provoca uma reacção do receptor. É a esse valor, que só se materializa no momento do encontro — da subjectividade do produtor à do receptor — e que o consumo não aniquila, que Benjamin chama «aura». Talvez a «aura» defina a obra de «arte» — visto que mesmo os


produtores de imagens «artísticas» menos empenhados a reivindicam: a arte visa a eternidade ou, no mínimo, a «posteridade» (o seu espaço é o museu). Podemos pois distinguir três tipos de imagens, consoante três tipos de valores: um valor publicitário ou promocional — que se materializa através do objecto representado —, um valor social ou funcional — que se materializa na necessidade de consumo criada, e que existe em todas as imagens dentro de um sistema de consumo de massas —, um valor deformativo ou «artístico» — que só se materializa em termos de influência (posto que a aura não é imediatamente mensurável) mas que engendra todo um sector de discurso (i. e., de imagens): a crítica. Estes três valores, presentes em graus diferentes, funcionam provavelmente em todas as imagens, mas, para efeitos de análise, convém considerar o primado de um sobre os restantes. Ora o terceiro tipo de imagens é o único a possuir um valor próprio: é o único a tornar-se, por sua vez, objecto de uma nova imagem. Além disso, é possível que a eficácia dos dois outros tipos seja directamente proporcional à invisibilidade dos valores de que são portadores — visto que não podem assumir-se abertamente como imagens sem valor intrínseco; assim, a maior parte das imagens que veiculam a ficção social reivindicam o estatuto «artístico». Com efeito, existem valores «vergonhosos», não-reivindicados na medida em que desempenham uma função oculta, que a atribuição de um valor «artístico» terá por função esconder. Donde a permanência de uma certa confusão em todos os debates em torno da arte ou das imagens artísticas, devido a uma ausência de critério para avaliar o primado desse valor no funcionamento de uma imagem dada. O alargamento do consumo artístico, ao inserir a produção desse tipo de imagens no sistema de comunicação de massas, engendrou um modo de produção profissionalizado que não é compatível com a duração — condição sine qua non do reconhecimento da aura — posto que a renovação se opõe à conservação. Existe um antagonismo profundo entre os diversos tipos de imagens: as imagens de consumo devem ser suficientemente insignificantes para poderem manter o público na passividade, as imagens publicitárias promovem uma ficção social que deve suscitar um aumento do consumo, enquanto as imagens artísticas contestam essa ficção e elaboram uma utopia que se opõe à estabilidade da organização vigente. A determinação do tipo de imagem escapa à consciência individual — visto que uma imagem em si é, em graus diferentes, portadora dos três tipos de valores — mas deverá forçosamente ter em conta critérios como as condições em que foi produzida, as relações que mantém com o poder, os valores ficcionais que difunde, etc. As condições de recepção não são probantes, dada a capacidade que o sistema já demonstrou de recuperar qualquer imagem.

DUPLICIDADE DO CINEMA Ao partir do postulado de que o cinema é uma arte e ao opor-lhe o carácter industrial da sua produção, Malraux afirmou a duplicidade essencial do cinema e simultaneamente viciou toda a estratégia de abordagem. O sistema de comunicação de massas só pode desenvolver-se depois do aparecimento do cinema que, em relação ao jornal impresso, trazia consigo um conjunto de qualidades novas e específicas às imagens produzidas e, por conseguinte, à nossa percepção do mundo: o carácter icónico do media, que permitiu encarar a hipótese da universalidade da difusão antes das condições económicas permitirem visar a universalização de um modelo de sociedade; o


alargamento da projecção que funciona sempre num sentido laudativo e que elevou a ficção proposta ao grau de modelo; as condições de recepção — colectiva — conquanto constituam o único aspecto que nunca foi completamente explorado pe1a dificuldade em controlar os seus potenciais efeitos (esta dificuldade terá sido contornada através da redução da plateia à célula familiar com a televisão). As qualidades ligadas à reprodutibilidade funcionavam já na imprensa e sofreram simplesmente um tratamento sistemático: estandardização das mensagens, simplificação, etc. Por último, foram criados locais de recepção específicos, segundo o modelo de salas de espectáculo, que orientaram a utilização socializada do media para o campo limitado do divertimento. Efectivamente, estas qualidades originais das imagens cinematográficas fizeram com que fossem recebidas como imagens inéditas e prepararam os moldes de uma nova cultura. O cinema foi beber a todas as fontes de imagens préexistentes para elaborar a sua estética própria, mas sobretudo influenciou todas as outras formas de imagens ficcionais: da restituição do movimento na pintura futurista e em Duchamp à adopção do modo espectacular na difusão das «informações», passando pela técnica de montagem nos poetas surrealistas e nos romancistas americanos, pelo culto da personalidade e pela representação dramática por personalidades políticas, etc. O cinema permitiu a elaboração de uma imagem do mundo. Desse ponto de vista, o seu valor primeiro é de natureza publicitária: glorificação das marcas e dos marcos mais recentes do progresso técnico e da organização social que os produziu: «Chegada de um comboio à estação de La Ciotat», «Saída das fábricas...». O objecto publicitado é acima de tudo uma ideologia, a própria eficácia da imagem cinematográfica, ao nível da emoção suscitada, orienta a sua vocação social de propaganda. Todos os filmes de Eisenstein são obras de propaganda e toda a reflexão estética sobre o cinema gira em torno deste valor central. A tarefa oficial da ficção é reinterpretar a História; todavia, quando a produção hollywoodiana consegue dominar o resto da produção mundial, a par desta função de propaganda e de reinterpretação que se mantém nos filmes de guerra — o género até à data inclui a maioria das produções —, a imagem cinematográfica consagra-se à promoção, já não de uma ideologia, mas de um modo de vida — esta vocação traduz-se também pela promoção de mercadorias: os carros, mais recentemente, os computadores... O funcionamento do modelo é tanto mais eficaz quanto a ficção o mantém oculto. O modelo não passa de cenário, de signo reiterado de filme para filme. Mas, ao fabricar uma imagem do mundo falsa, utópica, orientada no plano ideológico, o cinema participa simultaneamente na tomada de consciência de um estado de sociedade, i. e., na elaboração de uma cultura urbana em pleno desenvolvimento. O cinema, dado o papel que desempenha de veículo de uma ficção social, é o melhor testemunho da consciência social. A função publicitária também domina no quadro de uma produção restrita como acontece em Portugal, mas aí já não propõe um modelo, limita-se a transmiti-lo. Laborando na imitação, tal produção só pode ser caricatural, quer opte por mostrar uma imagem edificante das condições de vida «europeias» das classes abastadas — aviões, automóveis e apartamentos de luxo em VIDAS, interiores requintados em O VESTIDO COR DE FOGO, luxuoso palácio em A MULHER DO PRÓXIMO e O BARÃO DE ALTAMIRA, etc. — quer afirme a capacidade de reproduzir o modelo ficcional num cenário «nacional» — o thriller com DUMA VEZ POR TODAS, a mulher fatal em O LUGAR DO MORTO... Além destes exemplos de pura e simples promoção nacional, constata-se o primado do valor publicitário da imagem no cinema português pela negativa: a deformação publicitária consiste na valorização de um aspecto para melhor escamotear outros; não só se verifica a ausência quase absoluta de uma produção de documentários de carácter não-publicitário — alternativa essa que talvez fosse justamente mais adaptada, do ponto de vista financeiro, às condições de produção no país (é certo que o período pós-25 de Abril foi fecundo no tocante à realização de filmes documentais, na maioria aliás de cariz nitidamente propagandístico, mas a veia secou antes de se criar uma tradição ou uma escola) — como se observa uma evidente incapacidade, por parte dos cineastas, de apreender a realidade portuguesa sempre que pretendem tomá-la por objecto do discurso — filmes de citadinos sobre uma realidade que lhes é alheia, filmes que apenas exprimem a má consciência dos autores e não uma problemática do campesinato ou da emigração: MATAR SAUDADES e toda a série dos FADOS. O cinema português não consegue integrar-se na cultura portuguesa.


O valor social de condicionamento nunca foi perfeitamente controlado pela indústria cinematográfica. Com efeito, a imagem cinematográfica é demasiado forte em termos emocionais para ser imediatamente esquecida e engendrar a necessidade de uma nova imagem — em contrapartida, o valor de condicionamento é dominante na imagem televisiva que doravante passou a desempenhar essa função social. O cinema lançou o folhetim no princípio do século — OS MISTÉRIOS DE NOVA IORQUE, um dos primeiros «seriais» é de 1915; curiosamente, a fórmula fora lançada em França já em 1908, com os NICK CARTER —; posteriormente floresceram os cinemas de bairro que o público frequentava regularmente aos sábados à noite; mas a imagem cinematográfica mantém um poder de sedução excepcional e a ida ao cinema é um momento «festivo» — provavelmente devido a um desgaste excessivo de energia psíquica através dos fenómenos de projecção/ identificação. O carácter «industrial» da produção é um rótulo que só se aplica a uma etapa historicamente delimitada do cinema — mesmo nos Estados Unidos: a produção actual abandonou Hollywood —; o carácter «arriscado» do investimento talvez defina com mais justeza a actividade cinematográfica. No conjunto dos meios de comunicação de massas, o cinema ocupa um lugar especial pelo facto de desempenhar um papel peculiar de compensação ilusória — é também neste sentido que se aparenta com o sonho —: propõe uma ficção utópica que ao mesmo tempo se apresenta como modelo e se situa fora do alcance; por isso o cinema deve deixar nas suas imagens os signos que denunciam a ficção, que a reduzem ao ilusório, de modo a manter o hiato entre o real — onde o espectador se move — e a imagem do real — particularidade que o diferencia de outras ficções sociais, da informação à lotaria.

Graças à relativa inaptidão que demonstrou em estabelecer o seu valor social, o cinema foi promovido em termos de valor artístico, principalmente pela crítica. A atribuição deste valor corresponde ao estilhaçar das antigas formas, no início do século, e à vontade revolucionária de tirar a arte do seu espaço restritivo — limitado às classes privilegiadas para as quais constitui um critério de «distinção» — bem como de a levar ao público popular: nessa época aparece uma «arte» do cartaz, desenvolve-se a canção ligeira, etc. Porém, as condições de produção das novas imagens e a finalidade funcional de tais imagens não são a priori compatíveis com essa ambição, pelo menos ao nível do fabrico — antagonismo dos valores. Trata-se portanto de um valor ora excepcional — que desencadeou uma transfiguração das condições de produção: criação da «Triangle» e depois da «United Artists» por iniciativa de realizadores e actores para defesa da liberdade do trabalho de criação —, ora acrescentado apenas na fase da recepção — da mesma forma que se arrumaram no museu muitas obras de artesãos que nunca tiveram consciência de fazer «arte». Primeiro era necessário modificar as condições de recepção das imagens — desviando-as da sua função —: para «educar» um público foi necessário criar circuitos paralelos — cineclubes, cinematecas — de difusão. Mais tarde, com a equipa dos Cahiers, confessava-se já a ambição de influenciar as próprias condições de produção. Se bem que a indústria cinematográfica nunca tenha acreditado na compatibilidade entre o valor artístico — com a contestação que acarreta — e os fins sociais e financeiros — a vida de O. Welles é neste aspecto exemplar —, o reconhecimento desse valor


permitiu a aparição de modos de produção a fundo perdido sem os quais os filmes de Manoel de Oliveira, Paulo Rocha, João Botelho ou João César Monteiro nunca teriam sido realizados. A confusão é fruto da generalização deste valor. A existência de alguns filmes onde aparecem sublimadas a revolta e luta de um realizador, a necessidade de manter um certo álibi de prestígio e a historicização acelerada não fazem do cinema uma arte. Os distribuidores sabem-no melhor do que ninguém, a ponto de esconderem a garantia «de qualidade» com que se distinguem certos filmes. O Estado-produtor também; por isso negligencia a distribuição dos filmes nacionais — cujo valor «artístico» se transforma em valor publicitário quando se trata de criar uma imagem no estrangeiro. Quem alimenta a ambiguidade e dela tira partido é, em última análise, a crítica que se promove ao promover o media: o rótulo artístico não promove um valor intrínseco do produto publicitado (o valor intrínseco é justamente aquele que não precisa de uma outra imagem para existir), mas oculta o carácter essencialmente publicitário da crítica e, ao justificar a própria existência desta, justifica da mesma cajadada a renovação constante da actividade discursiva que acompanha os filmes (valor funcional dos sectores parasitários). O estabelecimento consensual do valor artístico do cinema corresponde a uma diminuição do seu valor social, mas influencia os media que lhe sucederam no desempenho desse papel regulador; paralelamente, acarreta uma expansão dos sectores parasitários (o cinema não tardará muito a tornar-se disciplina obrigatória no sistema escolar). É óbvio que a inflação do valor artístico representa uma desvalorização efectiva, enquanto as imagens proliferam independentemente do seu objecto: por um lado, nivela-se — a etiqueta «fantástico» basta para meter no mesmo saco os filmes de Tarkovski e os de Cameron ou Molina —, por outro, é-se condenado a elaborar uma imagem de um objecto-fantasma — pois apesar do valor artístico sobreviver ao valor de actualidade, a distribuição está nas mãos de comerciantes que só têm em conta o benefício material imediato e não acreditam nas imagens. O cinema pertence à nossa cultura — quanto mais não seja como testemunho fiel da agressividade e da estupidez da sociedade em que vivemos. A sua função social de divertimento, única de facto lucrativa, só é compatível com um verdadeiro valor artístico por obra de um mal-entendido. Por sua vez, o mal-entendido só é possível como consequência de uma identidade técnica; ora, não são os imperativos materiais que engendram as estruturas de produção e distribuição, mas a sua valorização — em número anterior já abordamos o problema dos custos («Gangsters no cinema» in A Grande Ilusão, nº 5). Defender o valor artístico da imagem cinematográfica implica acreditar na alternativa de outros circuitos de produção e de difusão. E lutar para que existam. A PAISAGEM No lugar onde nos situamos — a crítica: a imagem, parasitária, de imagens — o combate passa certamente pela denúncia das confusões: devemos ser selectivos, devemos recusar-nos a defender o cinema sem discriminação, a avaliar os filmes segundo parâmetros de «qualidade» que, em boa verdade, só se aplicam ao divertimento — declarar que tal filme é bom ou mau quando se tratou apenas de um bom ou mau serão —, i. e., à ocupação do tempo livre. Acrescente-se que a promoção pela crítica não raro se traduz também em termos financeiros — a função publicitária interessa os distribuidores — ou em termos de poder — a segunda geração dos Cahiers du Cinéma aparece agora no Ministério da Cultura francês. Os críticos são amadores na medida em que o móbil que os determina à partida é o amor das imagens; a profissionalização da actividade crítica — primado do valor social — nunca significou um salto qualitativo. Por último, a imagem que fabricamos não é a do cinema mas de uma parte do cinema, aquela que apreendemos num espaço e em condições precisas que estão longe de ser indiferentes. Num país de poder fortemente centralizado em que, tirando a capital, só existe paisagem — i. e., deserto cultural, consciência precária dum lugar e dum papel no mundo e ausência de meios para essa tomada de consciência —, é possível verificar uma série de fenómenos: o dinamismo cultural central vai-se esgotando entre a defesa dos privilégios e as lutas intestinas — deixou de moldar a consciência do país, limitando-se a gerir a renovação das modas (predominância do valor social de um discurso conservador no sentido próprio) —; em contrapartida, do lado da paisagem, florescem as iniciativas efémeras que nascem de uma reacção contra a ameaça de aculturação, e «frutificam»


os empreendimentos destinados a camuflar o vazio cultural. No sector cinematográfico, sobre o qual nos debruçamos particularmente, a situação do Porto é a seguinte: inexistência da produção local (incluindo na área da televisão); distribuição paralela (cineclubes...) totalmente submetida ao humor dos distribuidores comerciais — reduzida a projectar, com alguns meses de atraso, filmes cujo valor de actualidade, quantas vezes, é superior ao valor «artístico» —; a existência de uma Federação que não fomenta a distribuição não-comercial (dos filmes apresentados em festivais, por exemplo) assume um carácter estritamente nominal; a animação que vai vegetando — revistas, debates — é no mínimo limitada e problemática (que este artigo seja prova disso).

Em contrapartida não faltam as burlas culturais — burlas na medida em que estão em jogo interesses de ordem financeira e da área do poder — apoiadas materialmente pelas instituições públicas. Todavia, quase sempre parecem inatacáveis, posto que contribuem para uma imagem positiva da animação na província. Não se revestiriam aliás de grande importância se a institucionalização não lhes conferisse um poder que se exerce negativamente, ou seja, bloqueando as outras iniciativas. O problema reside na participação dos poderes públicos, tanto locais — esses renunciaram a favorecer a actividade cultural que não se traduz em benefícios maceiros imediatos —, como centrais — a quem esses simulacros fornecem um alibi: «estamos a povoar a paisagem» — nos ditos empreendimentos. Temos assim um «Curso Superior de Cinema». Temos ainda uma «revista» que não publica mas que já abriu um clube de vídeo, possui actualmente uma distribuidora de filmes de série B e de cassettes e organiza um Festival e Ciclos de Cinema para a Secretaria de Estado da Cultura. O primeiro distribui diplomas de incompetência — nenhum dos formadores produz filmes: a maioria dos docentes nunca estiveram sequer envolvidos numa rodagem — a pretexto de praticar um ensino diferente. A segunda monopoliza a ocupação da única sala pública da cidade — i. e., a única sala que pode optar por uma vocação de prestígio independentemente da rentabilidade comercial — e coloca a «satisfação» do público acima da tarefa de formação e divulgação — dentro desta lógica, não se percebe porque é que a SEC não promove exclusivamente as variedades no sector da música, a revista no sector do teatro, etc.. Num país em que a mobilidade social se mantém apreciável e em que o valor mercantil, factor dessa mobilidade, é fetichizado, em que a fraude aparece legitimada ao mais alto nível, dizem-me que este artigo parecerá inútil e despropositado: o cinema, à medida em que foi sendo reconhecido em termos de valor intrínseco, viu-se despojado da sua função social — o público abandona as salas e a ficção é veiculada por outros media. Ainda por cima a situação não será melhor noutros países ou noutros sectores... Mas um artigo crítico não tem valor intrínseco. O objecto deste, o cinema, materializa-se em filmes que se fazem e filmes que se vêem — nem sempre são os mesmos. Só se justifica portanto se traduzir uma insatisfação que outros partilham, se contribuir para a mobilização desses outros. Quando vai ao cinema, que valor atribui ao filme que vai ver? S.


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