(...) O VENTO NÃO LEVA A FLOR As poucas vezes que me foi dado ouvir Manoel de Oliveira, sempre me impressionou a maneira como o cineasta resolve, através dum discurso chão e tenso, a falsa dicotomia entre paixão e humor, subcomentando com justeza os seus filmes, todos eles sérios, quer dizer armados das ironias exactas que até podem depender dos destinos. Multiplicado por si próprio, Oliveira parece jubilar com a experiência de se experimentar, seduzido pela desmontagem dos esquemas de si e do cinema, mas mantendo um silêncio de ouro sobre os motivos do seu desmentir, acreditando (e fazendo acreditar) no efeito das poções que vai engolindo. A ópera está na moda. O cinema, na sua presunção de arte do tempo, anda por aí a flirtar com a música. Neste quadro favorável, desiludia quase saber que o Mestre acabara de rodar um filme cantado. Mas Oliveira não juntou ainda os trapinhos com a crítica bem-pensante, e saiu-se-nos esta prodigiosa história duma Margarida com mais olhos que barriga, mais canção que coração, a Bela que não merece o Monstro. O filme não é transportado pela música, antes a transporta como um exercício extremo de expressão, um excesso de corpo contra-natura praticado por actores humanos demasiado humanos. A fita não rola sobre as esferas polidas do canto, não «desliza» plano a plano com aqueles habituais esfregões de luz que eliminam todas as asperezas. Oliveira optou pelo abrupto a todos os níveis para esta história de tristes vampiros. São disto exemplos: o desequilíbrio de duração entre as «partes» (significativo dum desgaste do «mélo» muito para além da brincadeira de criar suspense) e paralelamente a superabundância e variedade de figuras de campo-contracampo, que pegam os actores pelos cornos e excitam no espectador a vontade «irracional» de matar o mal-estar instalado na ficção. Manoel de Oliveira joga e acerta: o desenho de contraste entre os primeiros planos preenchidos pelos actores e os fundos desfocados onde dançam manchas de cor como pinceladas infixáveis, prova que o trabalho plástico num filme não se deve limitar à reiteração chata da gramática dos designers. A reflexão sobre a questão do espaço e do tempo é a todos os títulos notável. A uma acção única e devoradora, o cineasta faz corresponder a ilusão dum tempo e dum espaço fílmico contínuo — por oposição a um tempo e a um espaço fictícios descontínuos e elípticos. O espectador assiste à entrada em cena dos actores (chegada dos automóveis ao limiar do espaço palácio), assiste aliás também às ovações provenientes de outros espectadores (fictícios) estacionados do lado oposto aos primeiros. Uma vez instalado no interior noite, o espectador passa, insensivelmente, do palácio (baile), para o jardim (cena de sedução), de novo para o palácio (baile, boda), mais uma vez para o jardim (espionagem de D. João), novamente para o palácio (câmara nupcial). Oliveira anula deliberadamente os pontos de orientação neste movimento pendular interior noite/exterior noite. O salto para a claridade crua da manhã é recebido como uma violência — ponto final no melodrama com postiços de tragédia. Os actores, joguetes da paixão oca do voyeurismo, são literalmente levados a comer o único ser dilacerado, aquele que vive na carne uma contradição monstruosa, com o se tivessem farejado o sangue da presa rara e frágil. É no limiar do espaço jardim que se revelam as máscaras (elas não caem, surgem por desencanto) e o filme mudou de tom duas vezes, passando para o humor negro e finalmente para a fábula carnavalesca, mimando o desconcerto na galáxia dos géneros. As áleas do jardim são de algum modo o espaço sem saída — para sair, o espectador seria logicamente obrigado a atravessar o palácio. Uma história para o adulto recordar a evidência do pesadelo infantil, que remata com a vertigem galhofeira dum conto diabólico. Dele fica não tanto o sumo mas o travo. Se a cena da desarticulação do conde de Aveleda é tão meticulosamente anunciada por um sistema de coros, dramatizada como um golpe de teatro pela presença espectadora do D. João condenado a uma espera passiva e iludida, calculada com requinte para «funcionar», é porque, de facto, constitui a pedra de toque na construção do filme, toda ela justificada pela coincidência da sua desconstrução, da qual a «parte» final será uma ilustração tão forte quanto aparentemente naïve, naquele seu mover para um inferno indefinido. Esse aquém ou além do ecrã? R. G.