OBSERVAÇÃO METÓDICA I Definição dos conceitos Se o «real» pode parecer caótico, passível de interpretação, explicação, intervenção, é porque a sua evidência consiste acima de tudo numa presença incontornável, de ordem estritamente existencial, como a árvore que desencadeia a «náusea» no livro de Sartre. Isto é, aparece como um facto. O facto será sempre carente de sentido. Além disso, o facto não representa uma totalidade mas apenas um fragmento. Por isso, o facto deve ser interpretado: por um lado, é-lhe atribuído um sentido, passando assim de facto a indício; por outro, está ligado a outros factos circundantes, integra-se numa totalidade, nunca apreendida enquanto tal mas postulada e parcialmente reconstituída. Esta interpretação já é da ordem do discurso, passível de crítica. Todo o discurso é sustentado por referências e valores, de natureza ideológica, prévios à sua elaboração. Há pois uma necessidade metodológica de especificar o nível no qual se situa o objecto observado. Com efeito, qualquer objecto pode ser observado como facto ou como discurso (uma árvore pode ser presença com eventuais consequências de ensombramento, necessidade de ser contornada, etc., mas também indício de uma preocupação decorativa ou económica, ecológica, etc., rasto de uma história). Certos objectos «elaborados» - as imagens, por exemplo - tendem a apresentar-se à partida como discurso, mais ou menos completo, por referência aos factos por eles enquadrados logo interpretados. Mas também se inserem numa história, a história das imagens neste caso, logo como factos cujas condições de aparecimento devem ser interpretadas. Quanto mais complexo é o objecto, mais difícil se revela essa delimitação dos níveis, mas a interpretação não tomará em conta os mesmos parâmetros se considerar, por exemplo, a técnica por decomposição das cores para a representação de uma árvore por Monet, ou a inserção do quadro numa história da pintura enquanto opção pela paisagem pintada d'après nature. O próprio discurso não passa de um testemunho, criticável enquanto discurso, representação ideológica, mas analisável enquanto facto também. II Semiologia do cinema Já foram elaborados elementos de uma «semiologia da imagem» que geralmente é aplicada por simples transferência à análise das imagens cinematográficas. Ora, as dimensões específicas destas últimas, a saber o registo do movimento e a organização do tempo, implicam a necessidade de aprofundar esta semiologia. A alteração do enquadramento pelos movimentos de câmara pode ser mais significativa em si do que a simples comparação dos enquadramentos iniciais e finais. A duração de um plano além do tempo de leitura obriga o espectador a formular interpretações de outro nível que a simples identificação do facto enquadrado (simbólico, paradigmático, etc.). Além disso, desde as primeiras reflexões sobre a montagem, formuladas pelos próprios cineastas nos anos vinte, - essencialmente os da escola de Moscovo, Eisenstein, Pudovkin, Vertov, Kulechov -, escassa tem sido a teorização da montagem, a não ser por ocasião de tomadas de posições radicais como as do Godard, que aparecem mais como declarações de princípio numa trajectória de intervenção do que como elementos definitivos de uma elaboração teórica que, em regra, inspira desconfiança aos praticantes. Torna-se pois necessário fazer o ponto da situação acerca dos meios de produção de sentido pela montagem e de definir os procedimentos e as consequências de opções como a continuidade (que pode gerar uma estética da transformação), a ruptura (que engendra a comparação, logo a oposição ou o paralelismo) e a associação que corresponde a um funcionamento particular do pensamento. Trata-se portanto de descrever as condições de produção do discurso fílmico. III Sociologia do cinema Cada filme se inscreve dentro de vários meta-filmes (há um metafilme que conta a trajectória de cada actor de cinema ao longo da sua carreira, há um metafilme que retrata a apreensão da cidade ou do campo - e dos seus mitos e a sua evolução segundo as circunstâncias históricas, económicas, etc.). Os filmes também devem ser considerados como factos sociais. A hegemonia de uma estética e retórica ficcional não só deve ser objecto de análise, enquanto produtora e reflexo das
«mitologias» de uma determinada sociedade, como deve ser analisada como padrão que condiciona e molda todo o registo das imagens cinematográficas. O género documental, por mais que se pretenda distinguir da prática de estúdio, é contaminado pelos protocolos de leitura instaurados pelo cinema de ficção e pelos produtos televisivos. Uma função social de propaganda, assumida desde o início do cinema, deve ser tomada em conta em cada análise de um determinado filme, assim como na descrição da elaboração histórica da retórica cinematográfica. A função de ficcionalização do visível, tanto mais eficiente quanto mais oculta, opera tanto no cinema narrativo como no cinema documental. A história particular deste último género tem de ser pensada em paralelismo com a da ficção cinematográfica mainstream. IV A observação Temos que distinguir níveis de elaboração dos objectos submetidos a observação sistemática. Pelo enquadramento, o visível é apreendido como imagem, logo como indício legível. Tanto o habitus como a história podem ser decifrados nos signos ostentados pelo visível enquadrado. A imagem tem a priori um estatuto de documento em relação ao real nela referido. O que distingue o documento do testemunho será o facto do primeiro não ser especificamente dirigido. Ora, o testemunho não goza do mesmo estatuto de veracidade ou fiabilidade do documento. É orientado, já é discurso. No entanto, os documentos são praticamente sempre associados a testemunhos que os confirmam ou contradizem. Testemunhos contemporâneos (1º grau), retrospectivos (2º grau) ou elaborados a partir dos documentos, que comentam e cuja interpretação condicionam (3º grau). O testemunho já é ficcionalização da experiência ou da observação, ficção individual condicionada pelas ficções sociais em vigor na altura da sua produção. Mas o próprio registo do testemunho, tal como o enquadramento da imagem, não é neutro. Pode orientar o testemunho, falsificá-lo. O filme será um documento particularmente complexo na medida em que às manipulações de toda a ordem inerentes ao enquadramento e ao registo acrescenta a elaboração do resultado em discurso pela montagem. V Propostas para enquadrar o contributo possível do cinema ao inquérito sociológico Toda a observação é também intervenção. A sociologia tem reflectido sobre os processos de dominação e violência simbólica em jogo durante um inquérito. Pelo seu lado, o cinema antropológico tem desenvolvido conceitos de análise das interferências da câmara tanto nos rituais filmados como nos testemunhos registados (profilmia). Tem até definido uma atitude necessária de observação participante. A análise das imagens e do seu modo de registo poderão objectivar o ponto de vista dos observadores. A inclusão do inquiridor na imagem permite eventualmente aprofundar os jogos de poder simbólico e as suas transferências no decorrer de um inquérito. O filme pode assim funcionar como documento complexo (interpretação a interpretar). Mas o filme também pode assumir-se como discurso, criticável, tanto sobre o fragmento de realidade observado como sobre o próprio processo de observação. A esse nível, se uma iniciação sistemática dos inquiridos aos métodos da sociologia parece desejável mas dificilmente encarável, a iniciação de inquiridos às práticas do registo de imagens e sons, e à gramática da montagem, sob forma de workshop, permitiria de obter documentos fílmicos realizados pelos próprios inquiridos sobre a sua percepção do próprio habitus, o seu olhar sobre o espaço que ocupa, etc. A análise de tais documentos permitiria porventura desvendar aspectos que o testemunho oral, dirigido, não deixa aflorar. Permitiria sobretudo objectivar o ponto de vista do inquirido e restituir-lhe a dignidade de sujeito do discurso. Serge Abramovici