ORESTEIA NA CADEIA CENA I Egisto (entrando) Ao palácio chegou um mensageiro Que de Orestes anunciou a morte... Nas ruas de Argos erra um estrangeiro Que essa notícia fez chegar à corte. Será boato de fêmea indolente Que mal se espalha logo se desmente? Corifeu (Coéfora) Deverias consultar quem o espalhou Pois aos nossos ouvidos já chegou... Egisto (tom decidido) Se alguém viu Orestes agonizar Sua morte haverá de confirmar! Egisto afasta-se. Corifeu (Coéfora) Ó forças do meu céu imaginário Auxiliai o jovem assassino Pois o seu braço nu e solitário Terá de matar quem o fez menino. Devolvei esse trono ensanguentado Ao filho tantos anos espoliado. Egisto (sucumbindo ao golpe fatal) Ai! O fio da vida rompendo se vai!... Coro (Coéforas) Fujamos irmãs! Soa a vingança. Nossa presença no local de acção Poderá levantar desconfiança... Em vão há-de chorar Clitemnestra Senhora e mestra desta casa maldita Que de si própria teceu a desdita! As Coéforas retiram-se. Clitemnestra (entrando quase esbaforida) Que se passa? Que gritos dilaceram esta casa? Coro (Coéforas) (off) O morto ao vivo corta a frágil asa. Clitemnestra Ai de mim que o enigma adivinhei!
Ai de mim que perdi amante e rei... Afiai o machado homicida Ao assassino hei-de tirar a vida! Orestes (entrando pálido como a cal) Meu punhal procurou-te e aqui te encontra O outro já levou a sua conta. Clitemnestra Desgraça! Roubaste o sopro ao meu senhor! Orestes Se bem lhe quiseste em vida Na morte o amarás melhor. Clitemnestra (suplicante) Espera, ó filho das minhas entranhas! Sugaste o leite e o sangue do meu seio E a lei do sangue não tolera manhas A quem ao leite deve seu recheio. Orestes (para Pílades que até aí se manteve na sombra) Companheiro, Sem remorso matei meu falso tio. Mas poderei com ódio verdadeiro Matar a minha carne a sangue frio? Pílades (com firmeza) Assim o manda o destino já escrito! Se à promessa faltares por cobardia E agora deres o dito por não dito Perderás a razão que te assistia. Orestes (para Pílades) Soa justo o que me dizes... Os deuses podem ser meus juizes (para Clitemnestra) Vem! Junto a ele te quero matar! Odiaste quem devias amar... Se o amante preferiste ao marido Morrerás nos braços do teu querido. Clitemnestra (patética) Criei-te! Quero envelhecer ao teu lado! Orestes (tom de desprezo) Viver comigo?! Depois de meu pai teres assassinado? Clitemnestra O destino comandou o meu gesto...
Orestes E o destino comanda agora o resto. Clitemnestra Não tens medo da minha maldição? Orestes Não! Se foste mãe da minha desgraça A morte vem por tua obra e graça... Clitemnestra Confiei-te a um amigo. Orestes Para minha vergonha fui vendido! Clitemnestra É então esta a minha paga? Orestes É bem magra a paga que te entrego. Clitemnestra (desvairada) E as loucuras de teu pai? Serás cego? Orestes Sofre quem anda na guerra Sem tecto, sem afecto... Quem o espera em casa Deve-lhe respeito. Clitemnestra Custa muito ser só e abandonada! Orestes Pelo guerreiro foste sustentada. Clitemnestra Morro às mãos do meu filho! Parca sorte... Orestes De ti própria escolheste vida e morte. Clitemnestra (ameaçadora) Das minhas fúrias serás o repasto. Orestes As de meu pai já buscam o meu rasto! Clitemnestra (quase irada) É o cúmulo! Pensar que estou viva A falar com um túmulo...
Orestes Ordena que eu te mate, a voz do pai. Clitemnestra Ai de mim, que gerei uma serpente! Em sonhos, um filho de mim ausente Sugava meu peito, deixava-me exangue... Orestes (arrastando Clitemnestra) Ordena que eu te mate, a voz do sangue. Mataste quem não devias, Minha mãe! Sofre pois o que sabias Tu também... Corifeu (Coéforas) (off) Ó ódio de filho, ó amor doente Lava tuas mãos no sangue materno! Olho por olho e dente por dente Será um bem o mal tornar-se eterno?
CENA II Coro das Erínias (efectuando uma dança de roda em torno de Orestes acabrunhado, alvo das suas imprecações.) Dancemos em roda, gritemos de horror! Façamos da nossa fúria furor! Quer nos respeitem por ódio ou temor Sejamos dos mortais o mal maior! Ó noite, mãe nossa, ruim escuridão Faz reinar a febre da destruição! Ouve nosso canto, o hino sem lira Forjado num pulmão que não respira! De todo o mal exigimos a cura! Por nossa mão levamos à loucura Quem do seu sangue o sangue derramar Quem a lei do sangue não respeitar. Ó noite, mãe nossa, da luz inimiga Faz reinar a culpa que o crime castiga. Embrulha Orestes no teu negro véu Embrulha Orestes num manto de breu. Não deixes que a luz da justiça humana Derrote a nossa força soberana. Não deixes que a luz da razão divina Derrote a nossa força intestina. Dancemos em roda, gritemos de horror Façamos da nossa fúria furor! Ó noite, mãe nossa, vestida de abismo Embala Orestes ao som do teu sismo. Não deixes que o branco cavalo de Apolo Venha arrancar Orestes ao teu colo. Ouve nosso canto, o hino sem lira Forjado num pulmão que não respira... Senhoras das trevas originais A nós compete vingar os mortais! Atena (entra) Aqui estou. Ouvi uma voz e logo os meus pés Correram o mundo de lés a lés Para chegar até vós... Mas... Quem sois, negras faladoras? E este estrangeiro Merece essas falas castigadoras? Quem condena sem julgar Não tem o direito de castigar! Corifeu (Erínia) Filha de macho, de macho parida Somos meninas da noite E o nosso negrume
O crime castiga. Atena Agora que já sei da vossa raça, Dizei-me que crimes vosso faro caça. Corifeu (Erínia) Damos caça ao assassino! Atena E que destino lhe dais? Corifeu (Erínia) O destino que mais temem os mortais: O poço do seu remorso! Atena É para lá que este homem levais? Corifeu (Erínia) Sim, porque ele matou a própria mãe. Atena Por fatalidade ou medo de alguém? Corifeu (Erínia) Não há perdão para um matricida. Atena A razão do crime já foi ouvida? Corifeu (Erínia) Quem mata os seus perde toda a razão! Atena (dura) Preferes ter fama de justiceira A praticar a justiça verdadeira... Corifeu (Erínia) Como assim? Quem és tu para duvidar de mim? Atena Sou a razão que duvida Até se dar por vencida. Corifeu (Erínia) Procede a um inquérito E que a sentença revele o teu mérito! Atena Confiais na minha imparcialidade?
Corifeu (Erínia) Veremos se o veredicto final Saberá punir o mal com o mal. Atena (apontando para Orestes) Quem defenderá com zelo O couro e o cabelo Deste homem acabrunhado? Apolo (fazendo uma entrada brilhante) Eu serei seu advogado! Corifeu (Erínia) Grande Apolo, que todas as manhãs brilhais Nas primeiras páginas dos jornais, Não vos diz respeito a nossa contenda! Apolo (para Atena, ignorando as Erínias) Não é prenda Esta oferta de defesa... Orestes, que aqui vedes, é minha presa. A meu conselho matou sua mãe… Se ele for culpado, sê-lo-ei também. Senhora Juíza, dê início à sessão. A sua sabedoria E a nossa teimosia Decidirão a questão. Atena Não! O assunto é delicado Quero que seja estudado Sem pressa E por mais de uma cabeça. Convido pois os nobres anciãos Desta cidade Homens chãos na flor da idade A darem o seu concurso: Eu os faço meus jurados, E ouvido o vosso recurso Eles se reunirão E avaliarão todos os dados. Corifeu (Erínia) Como podem os homens julgar um homem? Atena Como pode um imortal julgar um mortal? Afinal Não há confiança Na minha balança?
As Erínias chispam de raiva. Atena Tendes a palavra, duras justiceiras. Apresentai-nos os factos E as causas verdadeiras! Interrogai o réu sobre os seus actos. Corifeu (Erínia) Somos muitas A maioria dar-nos-á razão Mas falaremos com concisão. (para Orestes.) Ergue-te e responde às minhas questões! Serás punido, não tenhas ilusões... Primeiro ponto: mataste a tua mãe? Orestes Sim, matei, todos aqui o sabem. Corifeu (Erínia) Porém Não sabemos como mataste. Orestes Matei esse traste Com o meu punhal. Corifeu (Erínia) Eis-nos com dois pontos já esclarecidos. E quem te aconselhou tal? Orestes Foi alguém que é da minha devoção. Alguém a quem dou ouvidos. Esse alguém de mim próprio me defende E toda a minha vida dele depende. Corifeu (Erínia) Belo profeta te parece Quem te arrastou a matar tua mãe? Orestes Ele conhece Melhor do que ninguém As minhas razões. Corifeu (Erínia) E quem mais sabia das tuas intenções? Orestes Meu pai que ela matou a sangue frio
De seu filho Exigia vingança pronta e justa! Corifeu (Erínia) Confias nos mortos? Então não te assusta O espectro de uma mãe assassinada? Orestes Por duas nódoas ela estava manchada... Corifeu (Erínia) Sê claro, o que dizes é tortuoso. Orestes Ela matou o meu pai, ao matar o esposo. Corifeu (Erínia) E tu estás vivo, enquanto ela morreu. Orestes (acusador) Teu braço vingador não me valeu! Corifeu (Erínia) Não era do sangue Daquele a quem matou... Orestes E eu? Do sangue de minha mãe sou?
CENA III Espectro de Clitemnestra Ó sono da consciência, doce enleio, Que tudo esqueces sem dor nem receio... Ó sono de um filho em velho regaço, Podre fruto da árvore do acaso... Ó sono da mentira tão clemente Que dos mortos calas o grito urgente. Será preciso eu regressar do além Para punir quem matou sua mãe? Filhas da noite, inaptas advogadas Vossas palavras rudes e cansadas Não parecem capazes de evocar O que em vida me levou a matar! Se há que jogar a farsa da justiça Sabei que não matei por vil cobiça. Matei por amor, matei por despeito Um rei a quem já não tinha respeito. Um rei vaidoso que caiu na armadilha De vender à vã glória a própria filha. Essa criança era fêmea igual à mãe Ao tirar-lhe a vida, tirou-ma também. Ajuizai se eu tinha ou não razão Ao trocar pelo abutre o meu pavão. Amei Egisto; amei nele a vingança O sereno cálculo da sua dança Seu desejo de sangue derramado Em memória de um pai sacrificado. Amei nele a vontade de poder! Deixei-me usar, deixei-me ofender Fui seu tapete, cadela e joguete... O amor é isso; o vício sem o viço. Enquanto o ódio de forte, nunca farta! Ó filhas da noite, ide abocanhar Esse meu filho que vos quer escapar. Devorai suas tripas, seus miolos Suas mãos, seus pés, seu peito, seus olhos, Pois o meu ventre sedento e indómito Rastejará até ao vosso vómito...
CENA IV Apolo (para as Erínias) Esta é a mulher que defendeis! Corifeu (Erínia) Apolo, Apolo, De todo o sofrimento escarneceis Porque dos humanos nada sabeis. Apolo Não respondo. O contrário provarei! Os velhos de Argos aqui chamarei... Em todas as esquinas de uma cidade Há sempre um homem no ocaso da idade Pois a atenção às vidas alheias O põe a reviver de mil maneiras. Anciãos de Argos, falai sem medo! Num tribunal não se guarda segredo... Os velhos Nada sabemos, nada vimos, nada ouvimos. Apolo Será que vos falha a grata memória Desse rei que de Tróia trouxe tanta glória? Os velhos (suspirando) Agamémnon de seu nome e renome... A outros deveríeis inquirir É fraco o nosso ver e o nosso ouvir. Apolo (agastado) Se não me enganam os informadores Do rei recebestes grandes louvores... Os velhos Pobres de nós, foi tudo tão depressa Tão confuso para a nossa cabeça... Anos e anos à espera E de repente, Na negra esfera Brilha uma estrela cadente!
CENA V Vigia (melancólico) Ai de mim pobre soldado Impedido de lutar Com seus velhos companheiros! Ficar preso a um telhado Humilde como os rafeiros Sempre de bruços deitado. Morrer a vida a olhar O céu crivado de estrelas Contá-las e conhecê-las E esperar a cada instante Por um facho mais brilhante. Ó foguete fumegante Anunciarás a vitória Sobre a cidade de Tróia. Olhos de sono vencidos No vazio andais perdidos... Os deuses adormeceram Ou será que se esqueceram Dos homens desta cidade Entregues à impunidade Duma mulher sem idade Rainha bela e maldosa De conduta insidiosa Que do leito de adultério Faz mister e não mistério? Libertai-me do meu fardo Pois o sol tornou-se pardo E o céu virou prisão Para quem longe do chão Não muda de posição. Se porém não me soltais Deuses que sois imortais Soltai então o meu canto Para enganar o pranto E meu sono afugentar Até o breu clarear. Ai olhos traidores da mente Que vedes a luz ausente Criando falsa esperança A quem mingua a confiança, O que avisto na lonjura Será obra da loucura? Não quero crer que é verdade Tal seria a felicidade! Mas se brilha, novas traz Novas da guerra e da paz... Acorda Argos deste sono A glória encontrou teu dono. Acorda dama danada
Teu senhor não tarda nada. Na minha boca fechada A língua fica enroscada. Bicho transido de medo... Pois grande é o segredo Que esta cidade rumina Desde a morte da menina Dos reis nascida e criada À guerra sacrificada...
CENA VI Coro (Velhos) Já dez anos decorreram Desde que os reis abalaram Como rapinas iradas De suas crias privadas Em círculos a voar Sobre quem vão devorar... Aos Átridas mal amados Pelos seus crimes passados Apolo não ajudava Porque a sorte assim mandava... E nós, velhos alquebrados Da batalha arredados De Argos fomos bengala Pois mal alto a fome fala Do que a sede da vingança... E mil e uma crianças A velhas mãos confiadas Foram nossas enteadas Já que seus pais exilados A triste guerra obrigados Não puderam acudir Aos filhos de seu porvir. E tu, rainha funesta, De teu nome Clitemnestra Confessa por que razão Em cada metro de chão Se praticam sacrifícios Com fogos, óleos e ofícios? Será que notícias tens Dos nossos pobres reféns Entre as garras dos troianos Caídos há bem dez anos? Será que a formosa Helena Merecia tanta pena? O corpo de uma mulher Não vale tanto sofrer... Até os ventos do mar Se negaram a ajudar A poderosa armada Contra o raptor aliada. Agamémnon teu esposo Da glória mui cobiçoso Consultou um adivinho Cujo alvitre mesquinho Ordenava o sacrifício De uma donzela sem vício. E o chefe da expedição Para vingar o irmão Tua filha designou
E aos deuses a ofertou. Pobre mãe, pobre mulher Que viu a filha morrer Às mãos de um pai desalmado Pela vitória obcecado...... Ifigénia e Helena A virgem e a cortesã De vós se alimenta Uma tormenta eterna E uma guerra vã. A primeira como cabra morreu No altar do sacrifício. A segunda como cabra viveu No leito do vício... Entra Clitemnestra. Corifeu (Velhos) Bons olhos te vejam, esposa do rei. Do trono e da lei És o pilar! Falar ou calar A escolha é tua E só tua… Contudo Se o poder não caiu na rua Aos velhos o deves Bem o sabes. Será que o reboliço na cidade Confirma a tão esperada novidade? Clitemnestra Falas certo. Nunca da glória estivemos tão perto. Tróia rendeu-se No céu acendeu-se Uma luz inconfundível! Corifeu (Velho) É então possível? Clitemnestra As minhas palavras foram bem claras. Corifeu (Velho) E mui caras são aos nossos ouvidos. Clitemnestra Os teus olhos parecem comovidos. Corifeu (Velho) A emoção revela lealdade...
Mas diz-nos, senhora desta cidade: Se a alegria não é ilusória Que provas tens da vitória? Clitemnestra A prova que no céu viram brilhar. A menos que o céu me queira enganar... Corifeu (Velho) (tom de conselho) Desconfia de sonhos e visões! Clitemnestra (desenvolta) Não dou crédito a alucinações. Corifeu (Velho) E a boatos dás confiança? Clitemnestra (indignada) Eu não sou uma criança! Corifeu (Velho) E quando é que Tróia foi arrasada? Clitemnestra Antes do romper desta madrugada. Corifeu (Velho) Tão cedo foste informada? Clitemnestra A nossa morada A Tróia estava ligada Por um correio de fogo. Acabada a guerra Por mar e por terra Logo o fogo viajou. Uma longa cadeia de vigias Com fachos e com flechas luzidias A boa nova me comunicou. Corifeu (Velho) Falas com prudência de rainha Senhora minha... Clitemnestra O poder a isso obriga. Corifeu (Velho) (dúbios) Do poder sois a mais fiel amiga. Clitemnestra (cínica) Sou mulher de rei ausente
Aprendi a viver no presente. Sai Clitemnestra. Coro (Velhos) (cochichando) No que toca o aprender Nunca os velhos param de rejuvenescer...
CENA VII Corifeu (Erínia) (veemente) Haverá mulher mais sagaz e honesta. Do que a malograda Clitemnestra? Atena (neutra) Veremos... Por ora chamemos Ao banco das testemunhas Esse herói a quem o fado Cortou tão rentes as unhas. (Para Apolo) Senhor advogado Interrogue o espectro Do rei a quem roubaram vida e ceptro. (Entra Agamémnon envolto numa poeira dourada que ele próprio espalha soprando para o vidro de um espelho na mão). Apolo (mundano) Eu te saúdo, filho de Atreu. Só eu sou mais brilhante do que tu... Devo confessar Que cheguei a invejar A fama Tão humana Que te bafejou. Agamémnon Já homem não sou Apolo Pois tanto melhor... Dirás a verdade sem peias nem dor. Corifeu (Erínia) A vaidade nunca morre. E o rabo Do pavão decapitado Ainda corre! Apolo (olhando de soslaio a Erínia) Mais vale um homem vaidoso Que o modesto mentiroso. (Para Agamémnon, irónico) Clitemnestra, tua esposa exemplar Amiúde nos veio recordar A tua excessiva ausência.
Agamémnon É de elementar decência Omitir o que ela quis sublinhar. Corifeu (Erínia) (malévolas) Foste corneado... Disso te podes gabar! Agamémnon (cabisbaixo) Vejo que o mal compensa. Atena Saber de uma antiga ofensa É essencial Para este tribunal. Teu filho foi acusado De assassínio frio e premeditado. Agamémnon (olhando a assembleia) Que vos posso contar? Apolo O que levou Orestes a matar. Agamémnon Orestes matou por obrigação. Apolo E quem lhe confiou essa missão? Agamémnon Tu próprio o encorajaste... Da minha vingança o encarregaste. Apolo Qual a razão directa da vendeta? Agamémnon O adultério de uma mãe impura Que da minha ternura se aproveitou E num banho de amor me degolou. Apolo Algum motivo teria Para tanta aleivosia... Agamémnon Quem vai ao mar, perde o lugar. O mar atravessei Para lavar a honra de meu irmão. Meu reino abandonei à sua mão E ela, a cadela,
Logo arranjou um amante Meu primo Egisto... um tratante! Atena (sentenciosa) Ao deixares Argos ao abandono Do teu reino já não eras dono. Agamémnon Helena que Páris raptou A castigar Tróia nos obrigou. A honra de Menelau, meu irmão, Devia ser resgatada Sem contemplação! Todos os senhores da Grécia Tinham feito uma promessa Uma jura: Se alguém tocasse em Helena A mais dura pena Havia de sofrer. Ao pacto dos aliados Não podíamos desobedecer Sem perder A dignidade Que dos reis é a primeira qualidade. Corifeu (Erínia) E haverá desonra maior Para um senhor Do que um reino desleixado A uma fraca mulher confiado?
CENA VIII Corifeu (Velhos) Agamémnon, bem aventurado Que bom estares de novo a nosso lado Como saudar-te, ó rei, Destruidor de Tróia Filho de Atreu, coroado de glória? Senhor meu, Nestes dez anos de ausência A cidade chorou tua imprudência Pois o gemido facilmente sobe à boca... Mas quem na praça chora e se lamenta Traz no gemer verdade muito pouca! Só o pastor Conhece os balidos do seu rebanho Das dores o sentido Do fingimento o tamanho. Porém, Lembra-te, ó rei, Que o povo cala a fome E esquece a lei Que o povo cala e come. Quando de Argos abalaste Para castigar a afronta De uma mulher tonta Nós, os velhos Não tivemos o nosso rei em boa conta... Agora Ao ver-te coberto de honrarias Desejamos crer Que hoje será o mais belo dos dias. Ai, se a luz nos cega os olhos E a alegria tolda a nossa voz Não vá a esposa que entre nós deixaste Manchar a fachada do futuro Já que do passado lavaste o muro. Agamémnon Eu vos saúdo anciãos Que desta terra guardais A semente mais o fruto Da minha sombra. Aos donos da memória Aos senhores do esquecimento Dedico esta vitória Pois nenhuma honra tem valia Sem seu consentimento e sua guia. Como a esposa anseia O regresso do guerreiro, Dormir no seio Dessa dama que há muito não vejo
É o meu primeiro desejo. Clitemnestra (assomando à porta do palácio; para os velhos) Falai-me de fachada, ó anciãos E observai que na minha (apontando para as mãos) Graças ao zelo destas brancas mãos Não cresceu erva daninha. Vossas fachadas estão velhas Cheias de fundas engelhas... Vossa boca venenosa Como uma ruga recente A cada palavra mente. (Para Agamémnon) Ah, saudoso esposo Se deres dois passos Poderei cair nos teus doces braços. Deixa-me contemplar a tua imagem Com os olhos apagar Toda a rota da viagem Onde julguei naufragar. Pois embora o lar seja o meu navio Nenhuma tropa embarcada Sofreu a fome e o frio Desta tua criada. Boca privada de amor E calafrios de horror Na travessia sem fim Em que te perdi de mim... A todos os sóis poentes Subia ao mais alto mastro Perguntar a cada astro Notícias dos combatentes. (Apontando para o céu) Mas este céu mudo e quedo Sabia guardar segredo. Se tivesses morrido tantas vezes Quantas nesta corte Tuas mortes foram anunciadas Teu corpo estaria como as redes Furado por mil facadas. Mas eis-te salvo e são Da casa, cão de guarda Da nau, cabo salvador Do trono, pilar maior. Desce pois desse carro vitorioso Sem mais demora, meu esposo, E pisa os tapetes rituais Reservados aos seres imortais. Agamémnon (sentencioso) Manda a sapiência desconfiar
De quem só fala para elogiar. O louvor deve vir de boca alheia E de falar lisonjas Anda a terra cheia. O louvor suborna, o luxo corrompe E a glória que me cobre a fronte Não carece de ser apregoada Nem precisa de tapetes De seda bordada... Clitemnestra Por uma vez sê sincero... Prometes? Agamémnon Contigo quero sempre ser sincero! Clitemnestra E eu quero um juramento. Agamémnon Juro que direi meu pensamento Clitemnestra Se o teu inimigo Tivesse obtido a vitória Que faria? Agamémnon Sobre iguais tapetes caminharia! Clitemnestra Que temes então? Agamémnon Que a voz do povo não te dê razão. Clitemnestra Sim, mas homem que não seja invejado Invejável não será. Agamémnon Poucas mulheres haverá Com um discurso tão obstinado! Clitemnestra Feliz o ser que se deixa vencer. Agamémnon É assim tão importante eu ceder?
Clitemnestra (ardilosa) Será tua a glória Se por amor me cederes a vitória. Agamémnon (emproado) Seja! A púrpura pisarei A esses encantos sucumbirei. Mudando de assunto: trouxe uma estrangeira Irmã de Páris, agora escrava minha. Acolhe-a pois da melhor maneira. Privado de uma rainha Com ela me consolei. Clitemnestra (ignorando Cassandra) Meu rei, a nossa riqueza Não serve de nada Se não for por ti ostentada. À mesa dos deuses Foste convidado: Não vais fazer-te rogado... Os deuses só ajudam os mortais Se os mortais aos divinos se igualarem E fracos não se mostrarem. À sombra do teu poder Esta casa se há-de proteger! Caminha, ó minha árvore frondosa Estende os ramos à esposa Que quer abraçar Esse tronco secular. (Agamémnon entra em casa.) Ai, assim possa eu bem acabar Aquilo que já soube começar… (Clitemnestra vai no encalço de Agamémnon)
CENA IX Apolo Atena, Ao tribunal quero agora chamar Uma testemunha assaz preciosa Que tão bem como a esposa Sobre a morte do marido, Como um herói recebido, Nos pode elucidar. Cassandra se chama ela Bela cativa do rei. Corifeu (Erínia) Na cama segundo sei, Não era de deitar fora. Apolo Ora, ora A cama não é para aqui chamada. Corifeu (Erínia) Negais os talentos da vossa amada? Apolo (menosprezando) Foi um pequeno flirt sem consequência... Corifeu (Erínia) Mas a vossa paixão assolapada Deu-lhe o dom invejável da vidência. Cassandra (entrando imaterial, fantasmática) Ninguém me inveje esse dom Por ele fui vitimada... Corifeu (Erínia) Você mantinha boas relações Com o tal rei dos pavões? Cassandra Foi meu companheiro no fim da vida. Junto ao seu corpo morri Como uma serva bem agradecida... Corifeu (Erínia) (irónico) É a história mais linda que jamais ouvi. O corno morre às mãos da encornadora Agarrado à puta Com quem corneava a sua senhora. Nesta interessante disputa O tamanho dos cornos temos de medir Antes de decidir
A morte de um canalha Que matou a fraca mãe Para vingar um pai da mesma igualha. (Para Atena) Falei bem? Cassandra Melhor do que a Erínia saberei contar O que vi, o que vivi E o que pude adivinhar. Atena Fala já sem hesitar. Cassandra À porta do palácio, Clitemnestra, Muito mestra de si Convidou-me a entrar. Pelo meu sexto sentido informada Senti um forte cheiro a carne assada E entrevi Tiestes a devorar Os irmãos de Egisto Que Atreu a seu irmão dera a manjar. Como dizer o meu horror perante isto? Apolo (para Atena) O caso é irrelevante. Corifeu (Erínia) Grandessíssimo pedante! Saiu-te furada a bela testemunha Ou não conseguiste meter-lhe cunha? Atena (segura) Prossiga, Cassandra. É a voz da justiça que assim manda. Cassandra O sangue chama o sangue Disse eu para comigo... Corria um enorme perigo O filho de um pai infame Pois ia pagar o antigo vexame Do amante fogoso Que cedo tomou seu lugar de esposo. Apolo (atento) Esse amante era Egisto com certeza E Clitemnestra era sua presa. Tudo quanto ele exigia A rainha consentia.
Corifeu (Erínia) Não era o único que a compreendia? Privada da sua primeira cria Em Egisto encontrou um aliado. No peito dele guardou Seu coração destroçado. E ele, o último filho de um pai traído, No leito da leoa encontrou O grito do seu sangue adormecido. Apolo (elevando a voz) Balelas! Dois assassinos conjurados Não são por divisão menos culpados. Corifeu (Erínia) Quem está no banco dos réus? Orestes ou sua mãe? Cassandra (sonâmbula) De longe vem O uivo lancinante dos vencidos Que entre o céu e a terra andam perdidos.
CENA X Coro (Velhos) Ai coração agitado A bater desenfreado Dentro deste pobre peito Que a velhice tornou estreito Negra, negra asa Que varres o telhado desta casa... Negra asa, faz-me cego, Quero morrer em sossego Pois aprendi de meus pais A nunca saber de mais... (Clitemnestra, apressada, assoma à porta do palácio) Clitemnestra (para Cassandra) Irmã de Páris, minha escrava, A estrada que a sorte cava Não pode ser evitada. Entra pois nesta morada Dos deuses a preferida. Coro (Velhos) (a Cassandra) Estrangeira, Não deves fazer-te desentendida. Haverá maneira de recusar O convite de quem pode obrigar? Clitemnestra Entende a nossa língua, a criatura? Corifeu (Velho) (a Cassandra) Ainda que te sintas insegura Deves seguir as ordens de quem manda! Clitemnestra (a Cassandra) Anda! Não tenho vagar para conversar. As ovelhas estão prontas no altar. Esperei muito tempo por esta hora Não sofre demora a felicidade. Corifeu (Velho) Em Tróia, sua cidade Outro idioma se fala... Por isso a serva se cala. Clitemnestra Quem cala sempre consente... Será que é demente? Chega de uma cidade conquistada
E atreve-se a resistir? Não hei-de eu ser insultada E essa cabra desmamada Daqui não pode fugir. (Sai Clitemnestra.) Corifeu (Velho) Tenho pena de ti, ó estrangeira… Mas não há maneira De escapares ao teu destino. Ganha tino e obedece. Cassandra Ai Apolo! Ouve a minha prece. Corifeu (Velho) Esquece quem não te pode proteger. Cassandra Apolo, Apolo, ouve o meu apelo! Corifeu (Velho) Aqui nenhum deus te pode valer! Cassandra Apolo me deu o dom da vidência. Corifeu (Velho) Falas sem prudência E com rebeldia... Cassandra Apolo, Senhor dos caminhos Sê meu guia! Corifeu (Velho) Entre dois caminhos Escolhes o pior... Cassandra Haverá maior abismo Do que a casa de Atreu? Ai, Apolo, senhor meu Levaste-me ao matadouro... Corifeu (Velho) (inquieto) Escrava, o silêncio é de ouro. Como ousas recordar Uma história que é preciso abafar? Cassandra
Ela grita dentro de mim! Corifeu (Velho) (atónito) Como assim? Cassandra Gritam as carnes assadas Por Tiestes devoradas. É uma história do passado Cruelmente enganado, o irmão de Atreu Seus próprios filhos comeu. Maldito tecto Que abrigou um crime tão abjecto Corifeu (Velho) Não estamos em tempo de profecias. Cassandra O mal não escolhe os seus dias. E o remédio apropriado Foi de há muito exilado. Corifeu (Velho) Não é tido na conta de vidente Quem diz o que é evidente. Cassandra Ela, só ela dá força às profecias! Na banheira de finas pedrarias Ei-la que lava o guerreiro cansado. Ei-la de braço levantado. Ele engana-se. Ele dana-se por ela. Julga que a sombra de seu longo braço Se estende para lhe dar um abraço. Como pode um gume Jorrar tanto sangue da cor do lume? Corifeu (Velho) Estás louca, mulher estranha Donde te vem ousadia tamanha? Cassandra A ousadia vem a quem já nada tem. Vi morrer o lugar onde vivi E com essa morte me confundi. Coro (Velhos) Triste profecia a tua! Aos nossos ouvidos soa Como uma melodia sem melodia...
Cassandra À toa me entregarei Ao gume que me há-de degolar… Choro pois a minha morte Antes de ela me matar. Coro (Velhos) Mas quem te deu o dom de adivinhar? Cassandra Apolo mo concedeu... Dantes tinha vergonha de o mostrar. Coro (Velhos) Por isso falas bem a língua grega. Cassandra Pressinto o sentido O peso escondido Que a palavra em si carrega. Sei o que me espera E a fera já limpou o sebo à presa Cassandra será sua sobremesa. Coro (Velhos) Certamente serás castigada Pois não respondeste à sua chamada. Cassandra À toa À toa Me ofereço às garras da leoa. Ai, ai, morrer não custa Quando já se perdeu pai e irmãos Mas o desejo de morrer Nunca está nas nossas mãos. Coro (Velhos) Estrangeira, a tua história comove O coração de quem ouve... Cassandra (entrando no palácio) Atrás de mim virá Alguém que à luz do sol Rasgará o véu da noite sem fim Que se abateu sobre mim. Coro (Velhos) Poderá algum mortal Gabar-se de escapar Às malhas do mal?
CENA XI Coro (Velhos) Ver e ouvir e calar Crescer e desaparecer É esse o preço a pagar Por nos deixarem envelhecer. Nada ter, tudo temer E se possível esquecer A toda a hora ceder É esse o preço a pagar Por nos deixarem envelhecer. E ter medo Ter medo Que os nossos olhos não guardem segredo. Borrar-se por dentro Se alguém lê no nosso pensamento. Não ter parecer Não ter opinião Aprender a olhar para o chão. Ver, ouvir e concordar E viver de fingimento Fugir, mentir, escapar Deixar o sangue reinar Com total consentimento. Fechar os olhos aos mortos Fechar os olhos à morte Fechar bocas e ouvidos Fechar janelas e portas Vencidos e convencidos Estamos prontos a pagar Para não falar Para não falar. Velhos de nascença Mamámos o leite Morno, frio, quente Da indiferença.
CENA XII Apolo (abanando a cabeça) Quem disse Que a velhice Traz sabedoria? Atena (pensativa) A vida cabe num dia... Um segundo chega e sobra Para desfazer a obra De um pai e de uma mãe. Pode mais o mal que o bem E o poder de matar É maior que o desejo de criar. (suspirando) Falta interrogar O fantasma do amante Que durante a ausência do rei Aqueceu a cama Da primeira dama Segundo sei... Corifeu (Erínia) O homem que poupou a Argos Os amargos dissabores Que ameaçavam um estado Por Apolo abandonado. (tom de ênfase) Importa que isto seja sublinhado. Apolo (vexado) Até o deus mais eficaz Não é capaz de acudir a tudo... Corifeu (Erínia) (mordaz) Confessa que aquele cornudo Não era do teu agrado! Apolo O meu gosto pessoal Não é para aqui chamado. (Entra Egisto) Seja bem aparecido O filho do canibal No seu orgulho ferido... (teatral) Amor próprio, amor fatal Que inspirou o criminoso... Egisto Parece-te motivo para gozo?
(Justificando-se) Enquanto deus, és eterno Não estás preso ao inferno Do passado. Corifeu (Erínia) Se o cavalo relinchar Não te deixes humilhar! (cínica) O senhor Apolo Só sabe cantar a solo Não há pachorra para o escutar! (Para a assistência) Além do mais Já ninguém lê o que ele escreve nos jornais... (Pausa) Tu eras um bom rei, Egisto, Melhor do que o outro, está visto. Egisto (exaltado) O trono Que ficou ao abandono A meu pai foi confiscado E o direito do sangue violado. Se a lei do mais forte Deu a Argos um rei tirado à sorte Devia eu aceitar com humildade As injúrias do destino E a legitimidade Do reles descendente de um assassino Que tomou de assalto a minha cidade? Atena (neutra) Por isso pensaste: “O seu a seu dono!” - E subiste ao trono... Contudo Ao crime levaste Uma mulher tresloucada Que foi mera executante Dessa tua empreitada. Apolo (retórico) É um alma danada o tratante! Que vil cobardia! Egisto (para Atena) Ela assim o exigia Porque odiava o marido. Ó garras do desejo confundido Com o poder e suas grandes asas! Em nenhuma casa da cidade
Reinava a felicidade Do nosso pacto. Pois o acto de matar É o mais forte dos laços... Só a mão da morte Nos podia separar.
CENA XIII (Dentro do palácio, ouve-se o grito lancinante de Agamémnon.) Voz de Agamémnon Ai esposa querida Teu abraço rouba-me a vida! Velho (Corifeu) Escutem! Quem grita desta maneira? Voz de Agamémnon (tom de lamento) Ai! Na guerra a morte esquivei E em casa me finei. Velho (Corifeu) O acto está consumado! Face ao triste facto Como agir? Fugir Ou assumir o papel arriscado De justiceiros? Segundo velho Permitiremos que dois desordeiros Na maior impunidade Doravante governem a cidade? Terceiro velho A tirania espreita! Quarto velho Desta feita Não há meio de evitar A montanha que caminha E tudo há-de esmagar! Já o cume se adivinha... Segundo velho Deixaremos então assassinar O rei que tanta falta fazia? Quarto velho Rei de um dia, a vil morte prometido. Quinto velho Só ouvimos um gemido Um grito de amor louco porventura. Terceiro velho A tirania espreita! Quem mal faz a cama nela se deita.
Corifeu (velhos) Seja como for Não é connosco a falar Que o morto poderá ressuscitar. (A porta do palácio abre-se, revelando os cadáveres de Agamémnon e Cassandra. Clitemnestra exibe a arma ensanguentada.) Clitemnestra Sem ronha Nem vergonha Empunho este gume ensanguentado. Um fado feliz Quis que a alegre tarefa me coubesse Os deuses ouviram a minha prece! Ai, ao mapa do destino Nenhuma viagem escapa! Eu apenas segui o meu caminho... A caçadora bem-aventurada Pelo sangue da presa salpicada Exige que festejem o seu crime. Corifeu (velho) Falas com a ousadia De quem cometeu algo de sublime!? Clitemnestra E outra atitude não conviria A uma mulher sem medo... Coro (velhos) Não fazes segredo Do teu crime odioso? Clitemnestra Quando o meu maldito esposo Condenou a filha à morte Para que os ventos da sorte Soprassem a seu favor Nenhum de vós soube elevar a voz Nenhum de vós soltou gritos de horror! Coro (velhos) Serás odiada pelos Argivos. Clitemnestra (dura) Pelos que escaparem vivos (elevando o punho) A este pulso de ferro? Preparai o vosso enterro!
Coro (velhos) Quem do ferro se socorre Um dia com ferros morre! Clitemnestra Balelas! Estas belas mãos Mataram dois coelhos de uma cajadada: O conquistador e a sonsa da escrava. Seu canto do cisne ouvi com prazer... Coro (velhos) Dos prazeres de mulher somos reféns. Nem boas esposas, nem zelosas mães Mandam mais que os machos, as fêmeas de agora! Clitemnestra (insolente) Em boa hora o ouço dizer! Vejo que começais a perceber... Coro (velhos) Ai, rei glorioso Como havemos de chorar Este golpe impiedoso Que encurtou o teu reinado? Clitemnestra Engole as lágrimas, ó ancião São vãos os vossos queixumes... Coro (velhos) Ai, rei malogrado Alguém virá castigar Quem encurtou teu reinado. (Entra Egisto.) Egisto (para os velhos) Será que desejais acompanhar O rei sem eira nem beira Na viagem derradeira? Corifeu (velhos) Egisto, o negro crime pagarás! Na pele sentirás A cólera do povo! Egisto (rindo) O povo rema no banco de trás Quem governa o leme Nada teme.
Corifeu (velhos) Atrás de uma mulher te escondeste... Por cobardia O teu próprio crime não cometeste. Egisto A minha carne não sujaria Com o sangue de um homem odiado. Corifeu (velhos) Por isso foi o crime confiado Àquela em quem o rei mais confiava. Egisto Estava escrito! Corifeu (velhos) Dar a vida e não matar É o destino da mulher. Egisto Dessas palavras te hás-de arrepender. Corifeu (velhos) Pobre galo empoleirado No poleiro da galinha... Egisto Serás castigado Por essa língua mesquinha. Corifeu (velhos) Outro galo cantará E outro fado falará Quando o filho exilado À pátria regressar... Clitemnestra (impedindo Egisto de responder) Deixa-o ladrar à vontade. Não tardará a entender Quem manda nesta cidade. E lamberá os pés de quem lhe dá sustento. Para um cão esfomeado O estômago aconchegado É o mais forte argumento.
CENA XIV Atena Ao que me é dado entender Da mudança de poder Orestes aqui presente No banco dos réus sentado Passou a ser desejado Pela cidade doente. Quem é na verdade este rapaz Desterrado na guerra, desejado na paz? Quem conhece o poço Do coração deste moço? Que regaço acalentou A cabeça deste órfão Que a rainha enjeitou? Que braços o embalaram? E que olhos o choraram Quando de Argos partiu E ninguém lhe acudiu? (Durante a fala de Atena, a Ama de Orestes avança lentamente até ao banco das testemunhas.) Ama Eu o criei Ó filha sem mãe, E o vigiei Como o bem mais precioso do mundo. Meu leite de ama é sangue de amante. Amor mais pujante Do que o cio Que enche o ventre vazio. O meu afecto Foi seu chão, seu berço, seu tecto. A rainha das manhas, das patranhas Arrancou-o às minhas entranhas. Porém, Algo me dizia Que Orestes voltaria. Não tive tempo, nem alento Para chorar sua morte E, por sorte, Uma serva de mim teve piedade Contando-me metade da verdade. A rainha sem rei nem respeito Desterrou a carne do meu peito... Dos três filhos que pariu A primeira preferiu. Aos outros não deu carinho E, quanto a Orestes, Tratou de o afastar do seu caminho.
Ama e amada de Orestes menino Confesso com muito agrado Que, sem saber do crime planeado, Fui braço direito do assassino! Atena Como assim? Ama Atraindo Egisto a certo local Onde ele desferiu o golpe fatal. Corifeu (Erínia) (martelando as palavras) Não serão circunstâncias agravantes As provas de acto premeditado? Tudo atesta que o crime foi pensado Bem antes de ter sido cometido! (apontando para Orestes) Acreditais no seu ar combalido? O ar de carneiro mal morto engana... Ama (revoltada) Ouvi Electra, sua mana, Se quereis avaliar O inferno que era aquele lar.
CENA XV Atena Sigamos o conselho desta ama Pois quem ama sem proveito Merece respeito. (A assembleia ri do dito espirituoso de Atena, habitualmente grave) Corifeu (Erínia) Vejo que a razão carece de frieza E se compadece com a vileza Duma pata choca De fala bacoca. Apolo (dirigindo-se à silhueta de negro que entra no tribunal) Avance Electra... Chegou na altura certa. Electra Filha eleita de meu pai E da justiça Não poderia deixar De entrar nesta liça. Corifeu (Erínia) Se és do calibre do teu irmão Arrancaste a raiz ao coração... Terás o atrevimento De defender o seu procedimento? Electra Meu irmão querido Salvou meu orgulho ferido. A cabra que diz ser minha mãe Foi também quem me fez escrava... (veemente) O gesto de Orestes lava A cara da família! Corifeu (Erínia) (desdenhosa) Fraca mobília... Electra (para a Erínia) Ó filha da noite escura Pelo sol humilhada Como tu fui espezinhada Pela loucura Duma mãe desnaturada. Mas tu és divina E tens divina força
Enquanto eu era uma menina Pobre corça tresmalhada No bosque dos desenganos Das perdas e danos. Apolo Diga-me Electra: Quando Orestes regressou Do longo exílio Que de si o apartou Desde a guerra contra Ílio Qual foi o seu primeiro ensejo? Electra Meu primeiro desejo Com o seu se confundia: Fazer justiça no próprio dia!
CENA XVI Orestes (frente ao túmulo de seu pai, Agamémnon) Deus subterrâneo Que velas pelo crânio E por todo o esqueleto Do meu pai dilecto, Sê meu salvador e aliado! (após uma profunda inspiração) Do exílio regressado Aqui estou saudoso pai... E possa o ai Que não soltei, O adeus que não pronunciei No sangrento funeral Chegar ao local Onde não podes repousar... em paz. Aqui te ofereço Um anel do meu cabelo Para marcar o começo Do novo elo Que a mim te liga E à vingança me obriga. (avistando o cortejo das Coéforas encabeçado por Electra) Mas quem serão estas suplicantes Que de véus negros esvoaçantes Decerto vêm prestar Ao rei falecido O culto que lhe é devido Para sua justa cólera aplacar? No meio das carpideiras Reconheço as maneiras Mais tristes E a bela atitude Mais discreta De minha irmã Electra... Pílades, vamos esconder-nos De longe descobriremos Qual a razão da visita De um cortejo que chora, geme e grita... (Orestes e Pílades escondem-se.) Corifeu (Coéfora) Arranhei a cara, cobri-me de luto E de olho enxuto Aqui estou sem dor nem asco A carpir a morte do meu carrasco. Rasguei o vestido, cobri-me de preto E de olho seco Aqui estou sem dor, nem rancor A carpir o senhor
Que me fez escrava... Ai! Sendas que a sorte lavra Esta hipócrita embaixada Por Clitemnestra enviada Deve calar o protesto Da vítima atraiçoada Que um sonho muito funesto Fez ouvir à rainha desvairada. Ai guerreiro Que arrasaste Tróia, minha cidade, Mal tu sabias que o destino desordeiro Te reservava tanta indignidade. Electra (para as Coéforas) Cativas Que como eu nesta vida Estais mais mortas que vivas Ajudai Electra, a filha ofendida! Que recado deve ela transmitir Ao pai que no além a sabe ouvir? Contar-lhe a mágoa mentirosa De sua cruel esposa? Pedir-lhe que envie pronto pagamento Aos causadores de tanto sofrimento? Ou derramar em silêncio absoluto Esta libação em sinal de luto? (com veemência) Falai sem rodeios servas troianas Minhas manas no ódio e na dor Vosso conselho parecerá tanto melhor Quanto se parece com o meu rancor! Corifeu (Coéfora) Faz a tua libação Rezando uma oração Em favor dos que amam o defunto. Electra E quem são eles, pergunto. Corifeu (Coéfora) Os que odeiam o regente. Electra (tristemente cínica) Eu e tu provavelmente... Corifeu (Coéfora) Pensa bem Não haverá mais ninguém? Electra Que outra pessoa seu fim deseja?
Corifeu (Coéfora) Teu irmão Orestes, por longe que ele esteja... Electra Bom conselho! Se ele voltar Egisto não chega a velho Nem minha mãe o poderá salvar. Contudo, Não será impiedoso Desejar um mal Que só a mim dá gozo? Corifeu (Coéfora) O mal com o mal se paga... Palavra de escrava. Electra (vibrante) Ó deuses infernais Que tudo gerais Trazei Orestes ao meu frio seio! Acalmai o meu receio! Insuflai a fúria assassina Na palavra da menina! Que o braço vingador do meu irmão E a sua mão pura Realizem a conjura Do meu coração! A conjura dos meus desejos... No mar dos meus beijos Os rios do sangue desaguarão... Coro (Coéforas) Ó morte, solta o coração do morto Faz com que esta oração Chegue depressa a bom porto. Electra (voltando a si) Olhai! Só agora estou a reparar Num facto assaz singular: Sobre o túmulo pousado (baixando-se para apanhar o anel de cabelo) Um anel de cabelo cortado. A quem pertencerá? Coro (Coéforas) O teu sexto sentido to dirá! Electra É estranho O tom castanho escuro da madeixa...
Corifeu (Coéforas) ...Não deixa razão Para a mais pequena hesitação. Electra Só um neto de Atreu Pode ter um cabelo igual ao meu. Corifeu (Coéforas) Será então um presente secreto Do tal neto? Electra (sombria) Orestes foi banido desta corte... Corifeu (Coéforas) Só a morte o impediria de voltar. Electra (perturbada) Não consigo acreditar! Ai visão enganadora... Agora vejo também Marcas dos passos de alguém. E esse alguém vem acompanhado Pois observo lado a lado Passos aos meus pés iguais E outros bastante mais largos. Ai, segundos amargos! Num breve instante se perde a razão... Orestes (saindo do esconderijo) Oxalá cada oração tua Chegue aos ouvidos da lua Como esta à luz do dia Chegou a quem pretendia... Electra Conheces pois seu destinatário? Orestes (rindo) É meu fiel secretário. Electra Que mais sabeis, estrangeiro? Orestes Que teu irmão verdadeiro Acorre ao teu chamamento. Electra Onde se encontra então neste momento?
Orestes Tão perto que não o vês. Electra (amarga) Talvez aches divertido Troçar de um bicho ferido... Orestes Minha dor cresceria ao magoá-lo... Electra É com Orestes que falo? Orestes Não me reconheces? Electra Ó fruto das minhas preces Busca no meu seio O princípio, o fim e o meio E a forma da justiça Que o teu coração cobiça. Orestes Órfãos somos, enjeitados à nascença Sozinhos no mundo por malquerença E pela sorte obrigados A queimar a inocência No altar da vingança Na pedra da violência... Os deuses enchem a pança Pois o vento da mudança Aguça-lhes o apetite. (olhando fixamente Electra) Pedi-te em sonhos Electra Que a tua fala instigasse A minha vendeta. Apolo ma ordenou Mas mortal e fraco sou. Preciso da tua voz E desses nós cegos Que me prendem ao destino Para entrar na pele do assassino Que existe dentro de mim. Coro (Coéforas) Ei-lo enfim, o bom demónio Salvador do lar paterno Saído das entranhas do inferno.
Electra Orestes, Juro perante a terra e o céu Que o teu crime será meu. E o teu corpo será O meu cavalo de Tróia Sangue do sangue do sangue do sangue Templo da memória Onde só mora o primeiro grito! Corifeu (Coéfora) Se a vitória é nosso fito Não faleis alto de mais... Os muros têm ouvidos E estes escuros umbrais Escondem dentes compridos... Electra Querido irmão O teu gesto vingará Minha longa humilhação: A cadela tratou-me como um cão! Corifeu (Coéfora) A cadela pressente uma ameaça... E a cada noite que passa Tem um novo pesadelo. Orestes Como podes tu sabê-lo? Corifeu (Coéfora) Tenho sido despertada Pela rainha a rondar Como uma alma penada... Orestes Seus sonhos sabes contar? Corifeu (Coéfora) No seu sonho mais recente Uma pérfida serpente Sugava-lhe o branco seio. Orestes Minha mãe nunca pôs freio Aos seus sonhos imorais. Porém, jamais teve um sonho mais verdadeiro Do que o derradeiro...
CENA XVII Atena Interroguemos também O espectro da mãe De seus filhos odiada... Corifeu (Erínia) Um crime é um crime! Não serviu de nada Esta longa digressão. Em vão vasculhámos no passado Pois ele apenas nos diz Que cada um foi infeliz e incapaz... Porém o nosso rapaz Teve a suprema ousadia De matar quem não podia Rompendo o laço sagrado Que o ligava ao ventre onde foi gerado. Fala, mãe enxovalhada Pela língua viperina Duma filha mal-amada Pela lâmina afiada Duma cria mal criada Má sina! Cruel sorte! Clitemnestra (com um ar de fera cansada, arrastando-se, sangrenta, até ao banco das testemunhas) Mais uma vez volto da minha morte Esperando que justiça seja feita... Quem se aproveita Da minha ausência Não merece clemência! (após um profundo suspiro) Tive três filhos: Dois monstros e uma bela... A bela cedo partiu. Alguém me restituiu A alegria de viver Que morreu com ela? (para os cidadãos) Senhores, ficai a saber Que nesta vida se pode morrer Sem o coração deixar de bater... Apolo (com desprezo, para Clitemnestra) Fraco folhetim, o seu... (para os cidadãos) Como pode uma mãe falar assim Dos filhos que seu marido lhe deu? Serão eles os monstros ou será ela a besta?
Onde já se viu criatura como esta? Corifeu (Erínia) (sarcástica) O mais inconstante dos sedutores Que mata os corações e logo os abandona Tem agora a lata De troçar da dona e das suas dores. Ai, deus novo, deus novo... Não sei o que o povo vê em ti! Apolo (com uma vénia) Vê em mim a claridade Que até se confunde com a verdade... (para Clitemnestra) Diga-me, senhora dolorosa Porque razão misteriosa Exilou seu filho varão? Clitemnestra Não exilei, protegi... Protegi-o da ira do meu rei. E não o teria feito Se soubesse o que hoje sei. (para Orestes; olha fulminante, voz de trovão) Orestes, sê maldito Que o meu grito Fure os teus tímpanos, as tuas pupilas! Que o meu veneno Transforme em fel o suor das tuas axilas E em vinagre o suor da tua fronte! Que a fonte da tua boca Jorre o que há de mais imundo Neste mundo! (para os cidadãos) Ó povo de Atenas Que julgais as minhas penas, Já que fui infeliz na maternidade Quero ser virgem para toda a eternidade!
CENA XVIII Egísto (entrando, com um olhar desnorteado) No palácio paira uma nuvem de morte... Será que a alma de Orestes Morto o seu corpo exilado Errante veio assombrar O lar onde foi criado? Será verdade ou rumor O que diz o mensageiro? Seja como for O que é contado por terceiro Nunca é certeiro... Coro (Coéforas) Indagai, indagai Junto às fontes do boato... Esse dado novo Pode provocar muito desacato No seio do vosso povo. Egisto retira-se precipitadamente. Coro (Coéforas) (radiantes) A ama deu bem conta do recado... Egisto não vem acompanhado. Voz de Egisto (off; gritando) Ó verdade má e crua De Orestes usas o nome! Sua fome meu sangue secará E a pó me reduzirá... Corifeu (Coéfora) Ala irmãs! Fujamos do teatro das operações! Todas as precauções são poucas E as nossas palavras vãs... Ouvistes as roucas queixas de Egisto? Coéfora 1 E haverá prazer maior Do que ouvir o estertor Desse estupor? (Esfregando as mãos) Afinal não foi fútil a promessa E bem depressa foi executada! Corifeu (Coéfora) Eis que chega a mãe desnorteada. Descobre o cadáver do amante E durante uns instantes cambaleia;
Mas logo lhe ocorre uma boa ideia: Seduzir o filho, roubar-lhe a coragem. Coéfora 2 Assim agem As fêmeas sem moralidade... Coéfora 1 Mas Orestes não se deixa convencer... Já vai longe a tenra idade Em que chorava pela mãe ao entardecer. Agora só tem o pai na cabeça E ninguém lhe peça compaixão Pois o ódio de Electra, a justiceira Encheu o seu coração. Coéfora 2 Matará Clitemnestra a sangue frio? Corifeu (Coéfora) Não. A quente, Doente de despeito, sua mãe degolará... E naquele peito adolescente Não mais haverá pureza Viverá na incerteza E, na dúvida, homem se fará.
CENA XIX As Coéforas, cabisbaixas e vestidas de negro, entram no tribunal. Parecem autómatos. Atena (virando-se para Apolo) Donde vêm estas moças de preto? (Para as Coéforas) Pelo vosso aspecto Servas deveis ser... Quem vos pediu para comparecer Neste tribunal recém-inventado A fim de que fosse julgado O crime de Orestes? Coro (Coéforas) Orestes foi como nós De sua pátria desterrado... Como nós escorraçado Da terra de seus avós. Corifeu (Coéforas) Viemos prestar o nosso tributo Ao filho do rei que nos pôs de luto. Sabemos, por experiência pessoal Que não há mal maior do que o exílio. Ah, saudosa Ílio, Quantas vidas me separam de ti As que vivi e as que não vivi... Corifeu (Erínias) Como podem as filhas de Tróia Atraiçoar a memória De seus pais, de seus parentes Defendendo com unhas e dentes O assassino filho de assassino? Corifeu (Coéforas) Quis o dedo do destino Que Electra, sua irmã, órfã de mãe Como nós servas Também se transformasse em refém De um segredo mal guardado No palácio assombrado. Juntámos nosso rancor Contra o tirano Nosso amo e senhor E contra a traidora, nossa senhora. Apolo (pedante) Boas moças as cativas! Moças de alta condição... E a boa educação
Deixou nelas marcas vivas. Não será de admirar Que elas tenham preferido Um rapaz bem parecido Ao patrão já desgastado. (Suspirando) O trabalho dos deuses é somar Juventude e mocidade O fogo e a flor da idade E ninguém queira apartar O que a nossa divindade Condenou à unidade. Corifeu (Erínia) (irónica) Que uma serva queira mal à patroa Não prova que ela não seja boa. Se detestar o patrão Não prova que ele seja um papão.
CENA XX Orestes Ergue-te, palácio arruinado, Sobre os cadáveres do casal danado! Levanta-te, velho lar, Abre as tuas portas de par em par Para mostrar ao povo soberano Os despojos do tirano. Vede que fêmea tão feia Lembra a víbora ou a moreia? Bicha venenosa é certamente Daquelas que, mordendo, matam gente... Mas presentemente está morta: Sua boca já não tem arfar. Ai, possa eu encontrar Uma companheira Em tudo diferente desta rameira. Corifeu (Coéfora) Pobre rapaz Nunca mais terás paz. Coro (Coéforas) As garras do destino Não largam o assassino. Orestes Matei por devoção a meu pai Matei por obrigação. Coro (Coéforas) Em vão esperas compaixão... Diz a lei Que o matricida não tem perdão. Orestes Bem o sei. Mas vós podeis testemunhar Que eu não podia adiar Este crime justo. Coro (Coéforas) A todo o custo tentarás afastar A culpa que há-de minar O teu coração. Orestes Tendes razão... Ah, mundo cão À minha volta já vejo rondar As cadelas raivosas
De minha mãe... Pode alguém sonhar Com esposas mais encantadoras Do que estas senhoras Espumantes Gotejantes Sangrentas Agoirentas Repelentes como serpentes? (Horrorizado). E basta eu olhar Numa direcção Para essa praga se multiplicar! Coro (Coéforas) Num só lugar poderás encontrar Esperança de salvação. Orestes (aflito) Servas, que lugar é esse? Coro (Coéforas) O templo de Apolo. Orestes (aflito) Ai, Apolo, ouve a minha prece! Coro (Coéforas) Busca refúgio no seu santuário. Corifeu (Coéfora) Só lá poderás escapar A esse exército imaginário Que consegue derrotar As mais íntimas certezas... Coro (Coéforas) Os deuses guardem os homens De altos feitos e proezas! Corifeu (Coéfora) Eis que se abate a terceira tormenta Sobre o palácio de Atreu. Na primeira Tieste seus filhos comeu. Na segunda, a rainha Clitemnestra Que tinha pêlo na venta. A seu marido deu morte funesta. E agora é a vez de Orestes, o exilado Matar quem o havia deserdado. Será que Orestes vai sobreviver À fúria das fúrias Da qual nenhum mortal se sabe defender?
CENA XXI Atena Orestes, porque não se quedou você então No templo do deus que lhe dava protecção? Orestes A pitonisa, ao ver a minha aflição, Foi de opinião Que eu devia procurar a cidade amena Onde se adora a justa deusa Atena A fim de lá ser julgado... Corifeu (Erínia) (sarcástica) E este meu cu não queres lambê-lo, meu safado? Ah!... Conversa lisonjeira! Não é bajulando dessa maneira Uma juíza que se diz imparcial Que vais manobrar este tribunal. (Apontando para os cidadãos) Os cidadãos que ali vês São de boa rês, Não vão à bola com um mariola Que mata a mãe sem piedade E depois dá graxa a uma divindade. (Para Orestes) Impunidade? Não faltava mais nada. A tua sina está predestinada. Apolo Neto de Atreu, não se deixe abater... O nosso partido decerto há-de vencer E convencer os bons jurados! Os dados estão lançados. Atena Mas antes de haver Convencimento ou descrença Terão de debater. A sua sentença Será ponderada Para não parecer precipitada. Corifeu (Erínia) (para o público) Entre o ser e o parecer Qual a máscara mais adequada? Os Cidadãos formam um círculo e bichanam para deliberar. Cidadão 1 (mais alto do que o sussurro constante do grupo) Declaro Orestes culpado! Não pode ser perdoado
Quem tira a vida Àquela a quem deve a vida. Cidadão 2 (com veemência) Não! Orestes é inocente como o anho. Como o cordeiro expulso do rebanho Regressou ao velho prado Ao pasto que lhe fora arrebatado... Cidadão 3 Se fosse apenas comigo Orestes não escaparia ao castigo! Cidadão 4 Tende piedade De um moço na flor da idade. Por desespero matou A mãe que o abandonou... Cidadão 5 O matricida não merece Que ouçam a sua prece. A voz da sorte ordena sua morte. Cidadão 6 Por uns instantes só, imaginai A cólera de um pai assassinado Que exige de seu filho deserdado O gesto castigador O gesto de amor Que lava a honra salvando a linhagem... Teríeis coragem de dizer não Ao vosso pai na mesma situação? Atena (solene) Antes da nossa comum decisão Mais uma vez quero ouvir As duas partes em confrontação. Apolo (para os cidadãos) É meu desejo esgrimir Um novo argumento Que pesará no vosso julgamento: O respeito pela mãe Muitas vezes invocado Como costume sagrado De facto não tem Fundamento adequado. A mãe tão só alimenta Aquilo que o pai gerou; Em seu ventre acalenta
O grão que o pai semeou. O pai gera e não a mãe. Se o digo A prová-lo cabalmente também me obrigo E quem melhor comprova esta verdade Do que a patrona da vossa cidade? De macho parida Não conheceu as trevas da barriga... À luz de seu pai gerada Não precisou para nada Duma mãe... Porém é uma criatura perfeita. De corpo e mente escorreita. Corifeu (Erínia) Sou velha como a terra que aqui piso E pasmo em ver que do céu Descem deuses com tão pouco juízo! (Para os cidadãos) Homem, ouvi o vosso coração Os novos deuses serão como são Mas vós, se nascestes de uma barriga, Respeitai a lei antiga. Mais vale uma mãe na mão Do que uma deusa a voar: Não preciso de o provar! Atena (serena) Em último lugar me vou pronunciar. O meu voto juntarei Aos que em favor de Orestes contarei. Não sou filha de uma mãe. O homem É para mim superior à mulher. Não me deixo comover Pelos gritos de histeria de uma galdéria. Fêmea e megera Essa fera É um exemplo impressionante Do que a terra fez de mais repugnante. Orestes (suspenso nas palavras de Atena) Minha mãe de adopção Poderei contar com o perdão Ou terei de me enforcar Para escapar Às fúrias devastadoras Das Erínias vingadoras? Atena Em caso de empate na votação Alcançarás o perdão...
Corifeu (Erínia) Mãe, noite negra e soturna Põe os teus olhos na urna! Permitirás que os mortais Sejam libertados Das trevas originais A que estão acorrentados? Os cidadãos votam em silêncio. Nos seus olhos lê-se o terror que a Erínia inspira. Apolo Pesai bem os votos, homens da cidade! Da vossa sagacidade Depende o futuro de um velho estado Mas também o devir Por Atena desenhado Deste novo tribunal. Nos tempos que hão-de vir A ele se dirigirão Os que praticam o mal Quer mereçam o perdão Ou a mais severa condenação. Os cidadãos entregam a Atena o resultado da votação. Atena Orestes aqui presente Embora não inocente Ficará absolvido Do delito cometido. Houve tantos votos contra Quantos houve a favor. Feita a conta Com o meu voto pessoal O partido ganhador Dá-lhe total liberdade De regressar à cidade Donde fora escorraçado Por um fado mal fadado. Orestes Adeus Atena, a teu nome fico obrigado. Este povo, pela razão guiado, Para sempre será meu aliado. Do meu país jamais nenhum guerreiro Invadirá este solo estrangeiro. E se após a minha morte tal acontecer Os maus agoiros o farão retroceder. Orestes retira-se.
Coro (Erínias) Ah! Deuses na flor da idade Que espezinhais a mais antiga divindade Grande será a desdita Desta cidade maldita! Nas suas ruas e casas A sombra das nossas asas Espalhará um mal eterno! E o inferno reinará em Atenas Pois não mais haverá horas amenas! Estéreis serão as mães, putas as filhas Dos olhos das crianças brotarão As mais monstruosas maravilhas Contra as quais Em vão lutarão seus pais! Atena Escutai, deusas da era dos avós Se neste mundo andais sós Dos humanos desprezadas Vós apenas sois culpadas. Mais forte do que a fome da vingança É o apetite da felicidade... Se os passos da vossa dança Trouxessem prosperidade A quem vos adora Apolo, defensor do capital, Que brilha nas páginas do jornal Teria menos adeptos E vós Mais adoradores secretos... Corifeu (Erínia) Serás tu melhor que ele Pobre solteirona? Que sabes do coração obscuro Do ser humano, por natureza impuro, E do fel que o alimenta? Peneirenta! A ordem que tu propões No fundo Fará da vida no mundo Um jogo de polícias e ladrões. Atena (seca) Quem despreza quer comprar! Doravante o tribunal Transforma num ritual A avaliação do bem e do mal. A ele virão queixosos Inocentes e culpados E nele serão julgados
Os crimes mais ódiosos Como os pequenos delitos Entre protestos e gritos. Punição e ilibação Decerto dependerão Do poder das duas partes Peritas nas novas artes De ataque e de defesa De surpresa. A justiça será mais um ofício Uma moda, um vício, Virtude de bem-falantes Em selvas muito elegantes. Se continuassa a reinar A lei do mais forte Que à morte condena o fraco Sem lhe dar A menor hipótese de protestar Vós ficaríeis caladas… No silêncio reinaríeis Como fúrias saciadas. Corifeu (Erínia) A prosperidade Que tanto elogias Essa que confunde as noites e os dias E à merda confere A qualidade das mais finas iguarias Não fará dos homens Alegres macacos Fracos imitadores dos deuses Nas suas piores manias? Atena (amena) Os homens precisam de esperança! A esperança é seu sustento... Se os passos da vossa dança Lhe derem essa ilusão Vossos adoradores logo serão. A felicidade é reles fingimento Só os deuses sabem isso E os homens vivem sob o seu feitiço. Corifeu (Erínia) Basta então prometer felicidade Para vergar um homem à nossa vontade? Atena Claro. Verás que o vosso altar Ser-lhe-á mais caro Que o filho varão... Tudo sacrificará
Às novas deusas da prosperidade... Corifeu (Erínia) E ter-nos-á lealdade? Atena Ficará tanto mais preso Quando souberdes manter bem aceso O fogo da ilusão No seu coração. As Erínias formam uma roda. Erínias (cantando e dançando em círculo) Dancemos em roda Uma nova moda Feita de esperança E de confiança. Vibra, ó lira cor-de-rosa Um doce som de mentira Aos ouvidos mais formosa. Suspira, homem, suspira Espera em nós ardentemente Para todo o sempre Para todo o sempre.