ORIGINALIDADE E PECADO O paradoxo do último filme de Martin Scorsese, O CABO DO MEDO, não reside na escolha de um género menor — o cineasta nova-iorquino sempre demonstrou um certo gosto pela antologia cinematográfica de género: a fita de boxe (O TOURO ENRAIVECIDO), a fita de gangsters (TUDO BONS RAPAZES), o filme de iconografia religiosa (A ÚLTIMA TENTAÇÃO DE CRISTO), etc. —, mas no facto de conseguir desenvolver a sua mensagem pessoal — que tem vindo a elaborar de filme para filme, independentemente do género escolhido, para a aprofundar — mantendo-se, pelo menos na aparência, fiel aos códigos mais consagrados do filme de terror — enquanto que, até aqui, o género era sistematicamente pervertido pelo tratamento que o autor lhe aplicava: o boxe servia de quadro para uma adaptação shakespeariana (cf. o nosso artigo «The Color Red» in A Grande Ilusão nº 6), os mafiosi não conseguem eliminar a sua vítima, o próprio Cristo não sabia que caminho e que moral defendia. Todavia, o relevo e a complexidade atribuídos em O CABO DO MEDO ao personagem psicótico de Max Cady tornam, por contraponto, ainda mais óbvio o que está em jogo no filme, a saber: a redenção da família Bowden marcada por um crime antigo. Os temas da selva social e da regeneração individual estão presentes em todos os filmes de Scorsese, mas a problemática moral que eles ocultam vai-se revelando de filme para filme: o pecado original é reconhecido, contudo é preciso sobreviver, não para o apagar da memória mas para descobrir uma saída que não decorra dessa culpa — nem o talião, nem a crucificação. Em suma, trata-se de construir uma moral através da descoberta dos tabus não divinos mas humanos — o crime em TUDO BONS RAPAZES não é uma desobediência ao sexto mandamento, é a trangressão de uma lei natural. Os poderes quase sobrenaturais de Max Cady são apenas a projecção paranóica da angústia do advogado culpado que, incapaz de a exorcizar, «enaltece» o demónio interior do seu pecado. O simbolismo da ficção é reforçado pela escolha de um lugar «neutro» — nem cidade, nem campo, contrastando radicalmente com os cenários urbanos dos filmes anteriores — onde as forças sociais se reduzem a indivíduos (o chefe da polícia, o juiz, o advogado, etc.) e pelo tratamento da parte final em que, fora do mundo — o barco representa a ruptura com a terra; a viagem desenrola-se nas trevas; o próprio nome do Cabo designa uma força imaterial —, as personagens vão desaparecer e renascer através de uma nova génese na qual participam os quatro elementos. Scorsese procura, desde há muito, definir o espaço do humano num mundo que o humano só aparentemente controla: as leis deste mundo nem são as leis naturais nem são leis do ideal — o crime compensava em O REI DA COMÉDIA, Eddie rompia as regras que ele próprio havia formulado em A COR DO DINHEIRO. O simbolismo de Scorsese tem um sentido político: os traumas não são apenas individuais, são marcas duma sociedade urbana — por exemplo, a realidade do gangsterismo em TUDO BONS RAPAZES— em situação de pós-guerra — a personagem do ex-soldado aparece em TAXI DRIVER e em NEW YORK NEW YORK. No entanto, a abordagem de Martin Scorsese está de algum modo nos antípodas da de Oliver Stone (cf. o nosso artigo sobre este último): a terapia é de ordem moral e o exorcismo não passa pela descoberta de uma verdade ao nível das causas mas pela necessidade de suportar a culpa. Ao substituir a «missão» individual — do jogador em A COR DO DINHEIRO ou de Cristo em A ÚLTIMA TENTAÇÃO DE CRISTO— pela afirmação da culpa, Scorsese revela retrospectivamente a componente dolorosa da «missão» e aconselha todos aqueles que não têm o estofo de Cristos a ceder, não à tentação, mas à sua verdade prática: ser apenas humano com toda a dificuldade que tal estatuto comporta (por ser assimilável ao anonimato como se depreende da conclusão de TUDO BONS RAPAZES, ou à substituibilidade em LIÇÕES DE VIDA). Em contrapartida, o respeito pelas regras do género acarreta certos riscos: a violência que em TAXI DRIVER era repulsiva torna-se atractiva para o espectador que já está condicionado pelo próprio título — observamos um percurso relativamente semelhante em Michael Cimino, de O CAÇADOR para O ANO DO DRAGÃO e ao mais recente A NOITE DO DESESPERO, sendo evidente alguns paralelismos entre este último filme e O CABO DO MEDO —; assim, é muito provável que a mensagem de Scorsese passe desapercebida, a menos que o espectador consiga contrabalançar o prazer do medo, doravante simples distracção e já não exteriorização do demónio interior, e
distanciar-se da violĂŞncia que o realizador interroga para nĂŁo ser levado a confundi-la com a agressividade de que o gĂŠnero faz a apologia complacente. S.