Os limbos

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OS LIMBOS PERSONAGENS Eugénio, um cientista inventor (ambicioso e ingénuo; fez uma descoberta cujas aplicações terão incalculável valor económico) Olímpia, uma banqueira (filha de uma família da alta, apreciadora de luxo; como o trabalho no banco é totalmente frustrante, vinga-se nos clientes) Firmina, uma secretária (vem de uma família que migrou do campo para o subúrbio e aspira a sair da sua classe; espera pacientemente pela oportunidade de tomar o elevador social; tirou um curso rápido de secretariado; cínica, já sabe que deve mais o emprego que tem às suas pernas do que à competência) Vladimiro, um patrão (filho de pais comunistas, subiu a pulso mas está crivado de dívidas, sempre na corda bamba) + As suas quatro almas ou consciências adormecidas que despertam quando um dos protagonista se «ausenta», por exemplo adormecendo ou ficando absorto, e são designadas como «Fantasma de...»

LUZ Uma sala de aspecto um tanto vetusto. Um sofá de três lugares, de veludo coçado, um maple de couro, uma cadeira de braços tipo Voltaire e outras cadeiras espalhadas. No chão, vários tapetes com ramagens ou outros motivos, muito usados e pousados de modo enviesado. Eventualmente uma mesinha baixa. Uma gaiola portátil de laboratório com ratos brancos lá dentro. BLACK OUT A LUZ SOBE Há quatro corpos estendidos no chão. Parecem dormir um sono que só se torna porventura agitado pouco tempo antes de saírem do seu estado de letargia.


Espalhadas pelos assentos, quatro personagens de meia-idade, dois homens e duas mulheres. Dois deles estão envolvidos numa conversa que parece ter começado há pouco tempo. O mais falador, Eugénio, tem a gaiola portátil pousada a seu lado. Os quatro fantasmas usam roupa igual em feitio, detalhes e adereços à personagem viva a que correspondem, mas tudo o que usam é absolutamente branco. EUGÉNIO (envergando um fato completo com camisa e gravata que lhe dão um ar apalhaçado; tom insistente) – Claro que percebo que o seu patrão é um homem muito ocupado. Eu também sou um homem muito ocupado. Somos feitos para nos entendermos. FIRMINA inflexível – Ele não tem agenda. Sei de que estou a falar. Sou eu que lhe marco todas as entrevistas, reuniões, etc. EUGÉNIO – Deve haver uns entres, uns parênteses, umas abertas, umas curtas folgas... Eu digo depressa o que tenho a dizer. E depois ele há-de querer ouvir-me, garanto-lhe. FIRMINA – Não me faça perder tempo com... com... EUGÉNIO – Com mentiras. Desculpas. Tampas. Eu sou cientista mas não nasci em Marte. Sei que tem instruções para se livrar dos chatos, dos intrusos. E sobretudo dos pelintras que vestiram um fatinho para serem recebidos. Certo? Silêncio. Firmina não consegue reprimir um breve sorriso. Cruza a perna como se precisasse dessa postura para se concentrar. EUGÉNIO abrindo um sorriso como se lhe estendesse o cachimbo da paz – Certo? FIRMINA – Se é verdade que consegue fazer-me um briefing rápido talvez eu possa... EUGÉNIO – ...eu possa? FIRMINA – Fazer um relatório. O senhor começou por dizer que tem em mãos uma descoberta. Uma descoberta revolucionária. EUGÉNIO – Eu empreguei esse adjectivo?


FIRMINA – Julgo que sim. (Pausa.) Não, tenho a certeza. O Dr Vladimiro é um homem muito apoquentado com o futuro da humanidade... EUGÉNIO – A humanidade não precisa de humanismo. Precisa de actos. De acções de salvação. FIRMINA (exagerando no tom frívolo) – Acha? EUGÉNIO – Acho. Eu sei que agora está na moda a ideia de assistir ao fim do mundo e viver, pela força da destruição, uma espécie de morte... de morte colectiva. Mas tenho a certeza de que a minha ideia é melhor. FIRMINA (cruzando e descruzando as pernas como se tivesse olhos nos joelhos) – Não me diga! Será magia essa sua ideia «melhor»? EUGÉNIO – Magia? Nunca tinha pensado nesses termos. Mas sim, de facto. A química é uma variante da magia. O laboratório do mago e o do cientista não diferem tanto assim nos livros para crianças... FIRMINA (fazendo-se de estúpida) – Sim, os livros para crianças são um fabuloso nicho de mercado. EUGÉNIO (prosseguindo o seu discurso sem a ouvir, como que treinando para a entrevista) – As coisas que o homem é e faz não diferem substancialmente, se olharmos para elas sem paixão. Em contrapartida, na grande família da vida, há grandes distinções. FIRMINA (ironizando e tentando não se entusiasmar com o entusiasmo da personagem) – Os ricos e os pobres? EUGÉNIO (olhando para ela, atónito) – De todo... As grandes diferenças são entre animais e plantas. Bem vistas as coisas, foi a nossa mobilidade de bichos que fez de nós consumidores doentios. Quanto mais elegantes e inteligentes são os tropismos e outros hábitos do mundo vegetal!!! Quanto mais... Firmina torce o nariz. EUGÉNIO (corrigindo-se) – Se exceptuarmos a beleza das mulheres. A beleza que as mulheres cultivam. E, está a ver, não será por acaso que os poetas estão sempre a compará-las às flores. FIRMINA – Não me venha com essa da linguagem das flores... Sabe a quem se oferecem flores?


EUGÉNIO – Às mulheres... FIRMINA – E aos mortos. Eugénio retoma fôlego e fala como se conferenciasse perante uma plateia imaginária. EUGÉNIO (sente-se que treinou para a sua retórica ser sintética e convincente) – Foi pesado o preço a pagar pelo perpétuo reboliço que faz de nós eternos insatisfeitos. Muito pesado. Porém, assim como não perdemos certos instintos ancestrais, também conservámos seguramente potencialidades. Sabemos fabricar ácidos. Foi a partir de cogitações deste tipo que fui alimentando a convicção de que é possível transformar o azoto. O metabolismo das plantas não as faz capazes de processar o azoto? Um tempo. Firmina está visivelmente aterrada mas cada vez mais rendida aos encantos do inventor. EUGÉNIO – Percebi que havia, tinha de haver, uma enzima capaz de decompor o azoto. Esse gás tão abundante e tão mal amado...! De o decompor e de o tornar passível de ser absorvido pelo organismo. A aplicação da minha descoberta tem um alcance incalculável. A partir da deixa anterior, os fantasmas de Vladimiro e Olímpia, cada qual no seu canto, despertam do estado de letargia em que se encontravam e, lentamente, erguem-se, buscam-se um ao outro. E depois começam a conversar, murmurando frases ininteligíveis. FIRMINA (só para mostrar que o está a escutar e assim disfarçando que se sente perturbada) – Tem a certeza do que afirma? EUGÉNIO (falsamente modesto) – Um cientista nunca tem certezas absolutas. A ciência faz-se no provisório mas não é menos rigorosa e exaltante por isso. (Passando a mão pelos cabelos.) E as consequências da minha descoberta vão do mais primitivo ao mais complexo. Só para lhe dar uma ideia: por um lado, os humanos passariam a alimentar-se graças ao simples acto de respirar, por outro o quebra-cabeças do fornecimento de energia deixaria de existir... Fim da fome. Definitivamente. Fim das crises cíclicas. Para todo o sempre. FIRMINA (sonhadora) – Todo o sempre. Isso é muito tempo. Vou ver o que posso fazer por si. Agora tenho de ir preparar a sala de reuniões.


EUGÉNIO – Eu espero. É a primeira lição da ciência empírica: saber esperar quando e o quanto preciso. Entreolham-se medindo-se. EUGÉNIO – Eu preciso de dinheiro. Mas o dinheiro precisa de mim. Firmina retira-se. Eugénio acomoda-se no cadeirão Voltaire e fecha os olhos. Os Fantasmas de Vladimiro e Olímpia que se buscavam encontram-se. Ficam face a face. Ela parece meia perdida. O FANTASMA DE OLÍMPIA - Será que me pode indicar onde fica o salão de festas? O FANTASMA DE VLADIMIRO – Festas? Foi isso que nos trouxe até aqui? O FANTASMA DE OLÍMPIA – Não sei. Ignoro o motivo que aqui me trouxe. Apenas sei que vim. E que estou. (Pausa.) Sinto-me bem. Não preciso de ir mais longe. O FANTASMA DE VLADIMIRO – É estranho. Eu também fui trazido por uma espécie de brisa que sopra da terra para o céu. Fui lançado em órbita sem tirar os pés do chão. Acho que é a sua companhia que me está a subir à cabeça. Como champanhe. O FANTASMA DE OLÍMPIA – O senhor fala como um livro. Nem parece andar perdido. Apetece tocar nas suas mãos. Para virar as folhas, está a perceber? O FANTASMA DE VLADIMIRO – Tocar, apertar, arrancar. São suas. Faça delas o que aprouver. O FANTASMA DE OLÍMPIA – Ler. Gostaria de ler. Mas as mãos ou as palavras desfazem-se mal a gente se fixa nelas. Ou será que não conseguimos agarrar os olhos? (Pausa.) No fundo, que libertação... O FANTASMA DE VLADIMIRO – Tudo pode ser ainda menos complicado... (Pausa.) Desculpe. Nem lhe perguntei o seu nome. Ambos se retiram e penetram numa zona de penumbra. Caminham como se dançassem. De súbito, o Fantasma de Vladimiro desfalece e cai por terra. O Fantasma de Olímpia não reage e prossegue a sua deambulação. No canto oposto da sala, a luz revela a presença de Firmina que, de gatas, apanha uma série de comprimidos que rolaram pelo chão. Finda a tarefa, enfia um


pelas goelas abaixo, empurrando o medicamento com água que bebe directamente do gargalo de uma garrafinha de plástico. Vladimiro aparece por detrás, parece não valorizar a cena a que assiste, oferece a mão a Firmina que se ergue e se compõe. VLADIMIRO(divertido) – Isto nem parece seu!!! Então a Firmina tem estado na letra com um Paracelso de trazer por casa? FIRMINA – Nem pó. Ele tem estado agarrado ao computador. A fazer companhia aos ratinhos. Sim, sim. Espero que não tenha adormecido ao colo de uma enzima. Ele é fabuloso, Dr Vladimiro. Fabuloso. VLADIMIRO – Deixá-lo ruminar um bocado. De manhã uma pessoa está com a pica toda. Depois esmorece. Quem esmorece amolece. E eu não me posso dar ao luxo de conversar com excitados. Os Fantasmas de Olímpia e Eugénio emergem da penumbra. Buscam-se embora estejam a uns escassos dois metros de distância. FIRMINA – O sujeito é encantador. Espero que não esteja a pensar em depená-lo. Em maltratá-lo. VLADIMIRO – Não se maltrata a galinha sem saber se ela dá ovos de ouro, minha senhora. Além de que eu tenho a minha ética. Vladimiro arrasta familiarmente Firmina para um recanto mais escuro. Num outro recanto, Eugénio adormeceu frente a um computador. Ela deixa-se arrastar sem reservas. Os Fantasmas de Olímpia e Eugénio chegam a uma zona iluminada e caem nos braços um do outro. E não se largam. FANTASMA DE EUGÉNIO – Esse seu perfume dá-me tonturas. FANTASMA DE OLÍMPIA – Eu não uso perfume. Deve haver engano. FANTASMA DE EUGÉNIO – O melhor perfume é aquele que não se usa. FANTASMA DE OLÍMPIA – Que lindo galanteio! FANTASMA DE EUGÉNIO – A qualidade é do ouvido de quem escuta e não da boca que profere. FANTASMA DE OLÍMPIA – Não me lembro de ouvir outros galanteios. Parece-me que estou a ouvir pela primeira vez...


FANTASMA DE EUGÉNIO – Senhora, essa sua lisonja é ainda mais galante, não achas? FANTASMA DE OLÍMPIA – É estranho. Estranho é uma palavra. Disse «estranho» e inventei-a. Disse-a para não a perder. Mas ela ganhou vida própria. E voou. Que agradável surpresa as palavras não nos pesarem... FANTASMA DE EUGÉNIO – Eu tenho uma no bolso. Por vezes, confundese com a minha mão. FANTASMA DE OLÍMPIA – Sim, as mãos são muito versáteis. Podem ser palavras e pássaros. Podem ser aranhas. Podem ser serpentes, peixes, toupeiras. (Suspirando.) Está a ver: basta eu abrir a boca e parece-me ter mão em toda a criação. O Fantasma de Eugénio larga o Fantasma de Olímpia a custo, cambaleia e cai por terra adormecido. Olímpia não tarda a imitá-lo. Vladimiro encaminha-se para Eugénio, sacode-o delicadamente. Este último acorda estremunhado, pousa o computador no chão e deita uma olhadela aos ratinhos brancos que se agitam chiando na gaiola. EUGÉNIO – Desculpe lá, eu sou um noctívago. A luz do dia tem sobre mim o efeito de uma pastilha para dormir. Ainda por cima, ultimamente, por causa da minha Azoteia tenho feito horas extraordinárias... VLADIMIRO (sentando-se) – Extraordinário é eu estar aqui a falar com um sujeito que convenceu a minha secretária de que podia transformar o chumbo em ouro de lei. EUGÉNIO – O senhor tem a sorte de ter uma secretária esperta. Quem me dera a mim uma ajudante que me ajudasse na minha missão. VLADIMIRO – Ui, você não faz nada por menos. Missão??? EUGÉNIO – Missão, então não? Um homem que consegue desestabilizar o azoto, que é o gás mais presente na composição da atmosfera, e o torna capaz de... de ser absorvido, consumível, combustível é alguém que descobriu uma fonte de matéria-prima inesgotável. Sim, por assim dizer, inesgotável. Silêncio. Vladimiro presta-lhe agora mais atenção. VLADIMIRO – Você... você está mesmo convencido de que tem o mundo na mão. Há muito quem esteja no manicómio por manias mais inofensivas.


EUGÉNIO erguendo-se para falar de pé e em situação de dominação – Nitrogénio. A palavra diz-lhe alguma coisa? Nitrato do Chile, nitroglicerina... VLADIMIRO – Não me diga que inventou a pólvora seca. EUGÉNIO enchendo-se de paciência para não falhar a investida final – Nitrogénio é sinónimo de azoto. Aliás, «azoto» é um termo que se está a tornar obsoleto. Nitrogénio. Símbolo químico N. Número atómico 7, o número da sorte. Número de massa 14: 7 protões, 7 neutrões. Sorte a dobrar. Desempenhou um papel bastante específico na História. Um papel negro. Simbolicamente, está ligado à ruína – já que se obtém através da dissolução dos materiais – mas também à revolução, dado que serve para fabricar explosivos. VLADIMIRO – Julgava quer você queria fazer negócio. Não o imaginava a militar por uma causa revolucionária. EUGÉNIO – A última revolução será não violenta... Paira no ar um «je ne sais quoi» de êxtase. Eugénio tocou na corda sensível de Vladimiro que se põe a acenar positivamente com a cabeça sem dar por ela. EUGÉNIO – Mas voltando à vaca fria: na verdade, apesar de mal amado, o azoto tem já múltiplas e valiosas aplicações. A fertilização. A refrigeração. Mas a minha descoberta possibilita transformações... fundamentais. VLADIMIRO – Fundamentais como? EUGÉNIO – A pobreza e a rarefação dos recursos naturais neste planeta são ou não os nossos problemas fundamentais? O que eu lhe digo é que a Azoteia é, potencialmente, uma solução para essas e outras preocupações. Mas começa a ser cansativo carregar com o peso desta... responsabilidade! VLADIMIRO (tentando não parecer ganancioso) – Sim, calculo que deve ser muito desgastante andar com um filho... uma filha dessas ao colo. Mas é para fazer crescer esses filhos que servem os homens da indústria. Se não forem canalizados devidamente e desenvolvidos como merecem, murcham antes de darem frutos. EUGÉNIO (um pouco agastado) – O senhor costuma falar por metáforas ou é só para tornar esta entrevista mais... mais poética?


VLADIMIRO – Costumo. Quer dizer não costumo. Ou melhor: depende. Sabe, eu fui criado numa família para quem o homem novo e o progresso eram venerados como novos e verdadeiros deuses. De resto, devo dizer-lhe que é uma das razões pelas quais pode confiar em mim: eu vou tratar bem da sua invenção porque acredito no bem que ela vai trazer ao mundo. Mas dizia eu: educado por pais sindicalistas e militantes, sinto-me mais à vontade na linguagem, digamos, materialista. EUGÉNIO – Comigo pode estar à vontade. Eu trabalho com matéria. A matéria para mim é a poesia. Os espíritos dão-me vontade de espirrar. VLADIMIRO – Então estamos entendidos. O Eugénio decerto não ignora que um invento, uma descoberta, um salto no conhecimento só ganham estatuto de ciência e valor de mercado quando testados as suas potencialidades e as aplicações. Isto é um processo longo mas menos do que se poderia imaginar. EUGÉNIO – Eu tenho em mãos a prova experimental que corrobora a minha hipótese. Vladimiro fica boquiaberto mas depressa compõe um ar blasé. VLADIMIRO – Claro, nem outra coisa seria de esperar de um... de um profissional da ciência. EUGÉNIO – Estou em condições de dirigir quaisquer operações de alargamento dos resultados que detenho a outras escalas, digamos, planetárias. VLADIMIRO – Eu não estava a duvidar... Nem do seu saber, nem da excelência da sua descoberta. EUGÉNIO – O senhor sabe onde me encontrar. E também sabe que eu não vou parar até encontrar uma oferta... credível. De financiamento. Eugénio retira-se. O toque do telefone desperta Olímpia que atende. Percebemos que está falar com Firmina mas não ouvimos o que dizem. O telefonema é rápido. Olímpia desliga e abeira-se de uma mesinha. Dobra-se içando o rabo e snifa uma linha de coca. Limpa as narinas com o indicador e ergue-se. Vira a cabeça e dá de caras com Vladimiro.


OLÍMPIA – Desculpe ter declinado o seu convite para almoçar. Penso melhor de barriga vazia. E estou quase a tornar-me vegan. O que só complica, não é? VLADIMIRO – Posso então deduzir que a Drª Olímpia... OLÍMPIA- Olímpia. A terceira pessoa, faço questão... Por motivos de higiene. Mas dispenso outros salamaleques. VLADIMIRO – Posso então deduzir, dizia eu, que a Olímpia é uma mulher sensível (escolhendo as palavras a medo) ao problema das boas práticas, do consumo inteligente, da poupança energética... do futuro do planeta. OLÍMPIA (para desarmar Vladimiro) – Ssss. Sim. Sim. Nem mais nem menos que o cidadão medianamente consciente. Começo pelo planeta do meu corpo e vou por aí fora. Salvar o pêlo, não é? Só quem for tapadinho é que não... VLADIMIRO (entregando-lhe um dossier) – Claro. Eu sei que a Olímpia é uma mulher muito atarefada. Por isso lhe enviei uma pequeníssima síntese do dossier que lhe quero submeter. Sou bom jogador. Gosto de adversários... preparados. Até porque o que aqui está em jogo é mesmo... o bem comum. Em todos os sentidos., não sei se me faço entender. OLÍMPIA – Perfeitamente. VLADIMIRO – E? OLÍMPIA – E... eu sou uma mulher de cabeça. Preciso de tempo. Preciso de reflectir. VLADIMIRO – Tempo é... OLÍMPIA – Dinheiro. Não venha ensinar o padre-nosso ao padre. Na verdade é preciso ler essa frase ao contrário. Ou seja: o tempo é tão precioso que qualquer precipitação se torna uma perda pesada. VLADIMIRO (um pouco desnorteado com o rumo da conversa) – Certo. O assunto é demasiado... há demasiado capital em jogo para... OLÍMPIA – Para brincar com a parada... VLADIMIRO (quase aflito) - Mas os dados estão lançados. E esse génio, esse Eugénio anda por aí à solta. Sujeito a ser aliciado. E a gente fica a chuchar no dedo.


Passa uma ambulância, o Fantasma de Eugénio deambula pelo salão parcialmente na penumbra. Dá de caras com o Fantasma de Firmina e oferece-lhe galantemente o braço. FANTASMA DE FIRMINA – Não o estou a reconhecer. FANTASMA DE EUGÉNIO – Eu também não. Conhecemo-nos de algum lado? FANTASMA DE FIRMINA- Não, acho que não, quem sabe...? FANTASMA DE EUGÉNIO – Se eu a conhecesse, reconhecê-la-ia entre todas as mulheres. FANTASMA DE FIRMINA – São tantas as caras... FANTASMA DE EUGÉNIO – Mas nem todas tão belas como a da... FANTASMA DE FIRMINA – Firmina. Sim eu sei, é pouco corrente. Dantes, nas aldeias, sabe... FANTASMA DE EUGÉNIO – É isso mesmo. A... F... Firmina cheira a aldeia. A erva e a lareira. A alfazema e mel. A Firmina é toda ela um lugar. Com uma encosta onde bate o sol e uma que fica na sombra. FANTASMA DE FIRMINA – Acha que se pode ser feliz num lugar como eu? Não lhe parece pequeno e asfixiante? FANTASMA DE EUGÉNIO – Não. Soa-me a cama larga e a céu grande. Até o eco dos passos diz a grande distância entre as coisas. Os Fantasmas de Eugénio e Firmina desfalecem elegantemente e caem adormecidos no chão como bonecos esvaziados. Vladimiro, refastelado no maple, esteve a beber whisky durante todo o diálogo dos fantasmas. Visivelmente ébrio, levanta-se a custo, caminha inseguro e tropeça no Fantasma de Eugénio e cai estatelado. Olímpia, que até ali estivera a ler o dossier que Vladimiro lhe entregou levanta os olhos e vê chegar Eugénio com a sua gaiola portátil onde os ratos de laboratório chiam insistentemente. Afável mas formal, sugere com um gesto que Eugénio puxe por uma cadeira e se acomode. OLÍMPIA – Então é você o homem da bomba?


EUGÉNIO – Da bomba? Muito pelo contrário. Eu sou pacifista convicto. E mais: tudo o que faço é a favor da paz. OLÍMPIA – Isso é o que dizem todos os cientistas e olhe em que estado as grandes descobertas da ciência deixaram o nosso mundo? EUGÉNIO – Os cientistas não têm culpa que os donos do mundo o queiram vender às postas. (Pausa. Respira fundo.) Mas vejo que a Drª Olímpia se preocupa com... com o estado do planeta. OLÍMPIA – Talvez. Digamos que gostaria de não ter de andar pela rua com máscara de oxigénio ou... ou de usar uma pele artificial para me proteger das radiações. Coisas assim. Silêncio. EUGÉNIO – E...? OLÍMPIA – E... isto vai-lhe parecer tremendamente egoísta, mas a verdade é que começo a sentir, à minha escala, os sinais de uma mega-desregulação. EUGÉNIO – A Drª Olímpia é uma mulher sensível, quer isso dizer. OLÍMPIA – Talvez mais «sensível» do que outros. Não por feitio, mas porque nasci num berço de ouro. Filha única. Muito protegida. Mas não me venha com a história da pobre menina rica. Adoro dinheiro, não dispenso o luxo, não passo sem conforto. EUGÉNIO – O que eu tenho para lhe contar não é, em nada, incompatível com as comodidades que o dinheiro permite. OLÍMPIA – Ainda bem. Porque a minha vida é fazer dinheiro. Fazer dinheiro com dinheiro: muito, pouco ou nenhum. E não vou à bola com a popularização da ciência, canal descoberta e companhia. Nem sequer aprecio ficção científica. Portanto vamos ser breves e factuais, senhor... EUGÉNIO – Eugénio, chamo-me Eugénio. A minha descoberta tem a ver com uma enzima. Parece modesto, mas é colossal. Azoteia – chamei-lhe Azoteia. A minha enzima altera a estrutura molecular do azoto de modo a torná-lo apto a combinar-se, transformar-se. Logo a ser absorvido. Estou a ser claro? OLÍMPIA – Transparente. Gasoso.


EUGÉNIO – O azoto é o gás mais abundante no ar. Uma riqueza em boa parte por explorar. Graças à absorpção do azoto, podemos matar a fome à humanidade e acabar com a crise energética. Que é endémica. Temos muito a ganhar aproximando-nos das nossas amigas plantas. Os Fantasmas de Vladimiro e Firmina buscam-se, encontram-se e começam a dançar. OLÍMPIA – Isso da suposta benfeitoria das plantas é tanga. É uma moda como foram moda os iogurtes ou o alho que supostamente tornavam centenários os seus adeptos. Eu, tornei-me vegan, e ainda não me sinto mais saudável... EUGÉNIO – Falava eu de satisfazer as necessidades energéticas. Satisfazêlas, modificando o funcionamento do metabolismo. Não mais ingestão, não mais digestão, portanto não mais fome no mundo. Não mais diarreia ou prisão de ventre porque não mais evacuação de fezes. Porque as fezes mais não são do que matéria azotada. Está a ver onde eu quero chegar? Isto é um negócio de milhões. Quem o agarrar será obscenamente rico. OLÍMPIA – Mas os humanos vão deixar de... defecar... de produzir esterco? EUGÉNIO – Nem mais. Fecha-se o compêndio de escatologia. Olímpia não estava manifestamente à espera disto. Quer mostrar-se afável, mudar de táctica. OLÍMPIA – Vamos ter muito que conversar. Sirvo-lhe alguma coisa? Um conhaque? Um café? Não lhe proponho o sumo de cenoura e aipo que tenho no meu frigorífico... EUGÉNIO – Não...nada... nada. Quer dizer: importa-se que eu enrole um charro? Os Fantasmas de Vladimiro e Firmina dançam. FANTASMA DE VALDIMIRO – Está a ouvir a música? FANTASMA DE FIRMINA – Estou a ouvir ambas as músicas. A sua e a minha. Ouço duas músicas. FANTASMA DE VLADIMIRO – Perfeitamente entrelaçadas. FANTASMA DE FIRMINA – Sim, perfeitamente entrelaçadas. Como as fibras de uma corda. Entre o céu e a terra.


FANTASMA DE VLADIMIRO – Você é tão leve, tão leve que tenho medo que me escape levantando voo. FANTASMA DE FIRMINA – Na dança a qualidade é de quem conduz. FANTASMA DE VLADIMIRO – Na dança, a qualidade é não se saber quem conduz quem é conduzido. FANTASMA DE FIRMINA estacando – Na dança, a qualidade seria não dançar, apenas imaginar que se dança. FANTASMA DE VLADIMIRO – Nem dançar, nem imaginar. Ficar entre o movimento e a imagem. FANTASMA DE VLADIMIRO – Acha isso possível? FANTASMA DE FIRMINA – Bem, eu não o conheço de lado nenhum, mas vou-lhe dizer que consigo tudo é possível. FANTASMA DE VLADIMIRO – É muito amável da sua parte. Quase me sinto como não sou, sendo mais do que nunca eu e aqui. FANTASMA DE FIRMINA – Não quer que continuemos a rodopiar? FANTASMA DE VLADIMIRO – Para quê se sinto a cabeça a andar à roda? Os Fantasmas de Firmina e Vladimiro desfalecem. Entretanto, os de Eugénio e de Olímpia também estão como que ausentes. No salão súbita e integralmente iluminado, as quatro personagens juntam-se num convívio festivo. Percebe-se que, por diferentes motivos – excesso de álcool, de marijuana, de cocaína ou de pastilhas de anti-depressivo – todos estão ébrios e mais do que alegres. OLÍMPIA cambaleante, de taça de champanhe na mão – Um dia não são dias... Só de pensar nos benefícios da Azoteia à minha escala, vivencial e financeira, apetece-me infringir todas as regras que impus. À saúde do Geniozinho...! Levanta a taça e quase tropeça. Eugénio chega a tempo de impedir que ela se estatele. EUGÉNIO – À nossa! OLÍMPIA – À saúde do meu salvador. Não há transtorno maior do que os distúrbios... digestivos... crónicos. E eu sofro disso há... já nem me lembro


de poder comer sem sofrer tormentos. E o pior nem são as dores da barriga... O mais insuportável é sentir o enfartamento como se o meu corpo estivesse sempre intoxicado. FIRMINA – E acha que a pele não se vai ressentir de um gás tão... tão venenoso. O Eugénio fala das plantas como se elas fossem suas irmãs. Mas as flores murcham. Nem uma estação inteira duram. E se forem cortadas, nem uma semana... OLÍMPIA – A Firmina nunca ouviu falar da crioterapia? Eu já me andei a informar por aí... Os tratamentos são à base de azoto. Para além das lesões cutâneas... (Abafa um soluço.)... graves, também serve para emagrecer, combater a celulite, a flacidez, as verrugas... Nitrogénio lí-qui-do! VLADIMIRO – Santos Deus, Olímpia. Quem a ouvisse havia de pensar que a senhora vai trocar a banca por um gabinete de esteticista. Todos se riem como se o dito tivesse montes de piada... EUGÉNIO – Na verdade, quando andava a meditar acerca do nome a dar à minha descoberta, comecei por querer afastar-me da referência ao azoto que põe as pessoas de pé atrás. Mas depois pensei que «Azoto» é, em língua grega, o nome da cidade de Gaza. E eu tenho um fraquinho pela causa palestiniana. David contra Golias, está a ver...? OLÍMPIA – Sabe, Eugénio, nem todas as pessoas aprenderam pela cartilha do Dr Vladimiro. Os donos deste mundo não querem mudá-lo. Querem melhorá-lo. A diferença é de monta. VLADIMIRO ripostando – Sim, mas o Dr Vladimiro sabe contar pelos dedos da mão e sabe pôr as mãozinhas a multiplicar os cifrões. Vamos dizer que ponho a mão na massa para não dizer mesmo que ponho a mão na merda. Todos se riem como se o dito tivesse montes de piada... OLÍMPIA – Eu sei que o Dr Vladimiro é daqueles que acham que o dinheiro tudo paga. Sobretudo quando anda com falta de liquidez... Mas olhe que eu, para ter saúde, experimentei de tudo: medicamentos, remédios de ervanária, dietas. Sem glúten. Sem carne. Sem gordura. Sem açúcar. Sem álcool. Sem. Sem. Sem. Virei vegan. Por descargo de consciência. Passei a rapar uma fome de cão. Mas cada vez que como um pratinho de lentilhas parece que devorei um leão.


FIRMINA – Isso é do stress, Drª Olímpia. Neutrotransmissores, seratonina e outros palavrões desse calibre. Quando o céu se abate sobre a nossa cabeça, a coisa não vai com tisanas e comidas de grilo. (Abrindo o braços e despejando uma parte do champanhe contido na sua taça). Mas o nosso EUgénio vai conseguir o jackpot da sociedade sem classes e do desenvolvimento sem impasses! O que deve reduzir drasticamente o número de depressões. EUGÉNIO – A minha maior... ambição é... é que os homens se virem para o amor do conhecimento. Que tenham tempo e meios para isso. FIRMINA (dando uma volta sobre si mesma) – Virar? Mas virar para dentro ou virar para fora? EUGÉNIO – Não estou a falar de uma guerra de egos, nem de um torneio de umbigos. Todos se riem como se o dito tivesse montes de piada... OLÍMPIA – O conhecimento mais profundo sem aplicações é como o melhor tenor a cantar dentro de um poço. A nossa enzima sim, merece o investimento do capital neuronal porque merece o investimento do capital financeiro. VLADIMIRO – E o know-how do empresário. Uma novidade tão radical como a Azoteia requer um empresário da nova geração – com um pé em terras da bolsa e outro na nação sindical, o coração no paraíso sustentável e a cabeça na selva da concorrência. Todos se riem como se o dito tivesse montes de piada... FIRMINA (aproximando-se de Eugénio até ficar a um escasso palmo dele) – O que eles querem dizer é que você deu o melhor de si e tem de continuar a dar se quer ver os frutos e os frutos dos frutos. VLADIMIRO (olhando-a de cima a baixo) – A sua avó percebia muito de fruta, está visto. Mas este camarada não me parece (Entaramela-se.) Pudres... prudes... putrescível. Esperemos que não seja imp... imprudente. Porque precisa de uma nota preta para passar dos ratos aos homens. OLÍMPIA (metendo o seu veneno mas transbordante como a sua taça de champanhe que a si mesma serviu) – E não é fácil acertar sempre na mouche como o Eugénio conseguiu. Eu só me meto nesta aventura pela


circunstância... excepcional... de lucrar na esfera privada e na esfera da finança. VLADIMIRO (agarrando familiarmente Eugénio pelo ombro como um amigo de longa data) – Fácil ou difícil, camarada Eugénio, você tem o mundo a seus pés. Silêncio. VLADIMIRO – Sim. Mas corre camarada, o velho mundo está atrás de ti. A questão é mesmo decidir se «atrás de ti» significa um virar da página ou uma perseguição cerrada. Todos se riem como se o dito tivesse montes de piada... OLÍMPIA – Camaradas, eu não sou empregada, nem empresária. Levantome com as galinhas. Não quero estragar a festa, mas permitam-me que me retire... FIRMINA (muito depressa, aproveitando a deixa) - Eu também. De manhã preciso de tempo para passar do piloto automático ao robot inteligente. E vou ter de levar este senhor (Designa Vladimiro com a cabeça.)... estes senhores (Aponta para Eugénio com a cabeça.) a casa. Conseguiram beber cinco vezes mais do que eu. É obra!!! Todos se retiram, cumprimentando-se efusivamente. A sala mergulha numa penumbra espectral. Os quatro Fantasmas – o de Eugénio, o de Firmina, o de Olímpia, o de Vladimiro – erguem-se, espreguiçam-se e deambulam como se, num primeiro tempo, não se enxergassem. Até que convergem para determinado ponto da sala e começam a conversar. Tocam-se e afagam-se ao de leve enquanto falam. FANTASMA DE FIRMINA – É curioso... não consigo fixar o pensamento. Tento lembrar-me mas só me lembro do que vejo. FANTASMA DE OLÍMPIA – Percebo bem o que quer dizer. Mas não tem a sensação, muito vaga é certo, de já ter visto o que está a ver? FANTASMA DE FIRMINA – Sim, mas na verdade isso acontece por eu estar a ver e viver tão intensamente o que estou a ver e viver. FANTASMA DE VLADIMIRO – Sim, vemos como se tocássemos e tocamos como se estivéssemos apenas a ver.


FANTASMA DE OLÍMPIA – Não me recordo de ter visto o que vejo. Mas é como se... é como se o que vejo se recordasse de mim. FANTASMA DE EUGÉNIO – É como as palavras. Elas lembram-se de mim, tenho a certeza. Chegam-me à boca com doçura, sem eu ter de as chamar. Não tenho a certeza de as entender, nem de compreender o que querem de mim. FANTASMA DE FIRMINA – Não vale a pena simplificar ou complicar. Porque vem dar ao mesmo. Sem tirar nem pôr. Eu esqueço o que falo à medida que falo e esqueço o que vejo à medida que vejo. FANTASMA DE VLADIMIRO – Minha querida senhora, o que vem então a ser a palavra lembrar na sua boca? FANTASMA DE OLÍMPIA – É como uma flor. Não vê que é como uma flor. FANTASMA DE VLADIMIRO – Agora que me está a dizer isso quase vejo. Lembrar deve ser assim, quase ver quando se ouve. FANTASMA DE FIRMINA – Creio que a flor é o ouvir e também o dizer. FANTASMA DE OLÍMPIA – É muito forte a flor do ouvir e do dizer. Ocupa o espaço todo e exala um vapor que nos torna imperceptíveis. Quer dizer; só intermitentemente perceptíveis. FANTASMA DE EUGÉNIO – Ninguém conhece ninguém. Ninguém se cansa de ninguém. Esperamos esperar. Mas é tudo tão concreto... FANTASMA DE FIRMINA – Mas é maravilhoso e bom não ter por onde fugir. Os fantasmas retiram-se. A luz sobe. Olímpia está à conversa com Firmina. Os fantasmas de Olímpia e de Firmina caem como bonecos esvaziados. FIRMINA – Sim, não posso deixar de admitir que ele é muito... autocentrado. Mas é um sujeito fascinante e convincente. O que é raro. OLÍMPIA – De aves raras estou eu farta, Firmina. Seja como for, não é essa a questão. A questão é mais perceber o que esta revolução protagonizada por uma enzima significa. E o que dela advém.


FIRMINA – Paz? Progresso? Prosperidade? OLÍMPIA – Isso é que era doce...! Essa trilogia é pura propaganda. Deixámo-nos seduzir por uma promessa perigosa. Muito perigosa. (Pausa. Olhando Firmina nos olhos.) Se aquilo que o senhor cientista antevê se realizar, o que é que vai acontecer? Pense um bocadinho antes de responder. FIRMINA (quase sem hesitar) – Uma humanidade sem fome. Um mundo sem miséria. Um planeta sem guerra... OLÍMPIA – E... FIRMINA – E isso é o que todos nós queremos. OLÍMPIA – É? FIRMINA – Acho que sim. OLÍMPIA – Ora puxe lá um bocadinho pela cabeça. Pense, por exemplo, no que será do negócio do Vladimiro a médio prazo, logo do seu emprego. FIRMINA – Estamos convencidos de que o negócio vai conhecer um desenvolvimento exponencial. A firma vai sair do... sair da letargia e prosperar a olhos vistos. Muito rapidamente, as aplicações terão uma procura incalculável. E que a sua implementação revolucionará a vida na terra. OLÍMPIA – Que lindo! Se a Firmina não estivesse na casa dos quarenta bem conservados eu diria que tem dezasseis para dezassete. E muita música no coração... FIRMINA – Eu sou uma fulana dura. Nada me caiu do céu. Nada. Um silêncio. Como que de respeito mútuo. OLÍMPIA – Portanto paz, progresso e prosperidade sustentáveis. Talvez mesmo decrescer em vez de desenvolver, quem sabe... Em todo o caso será – seria – o fim do nosso sistema capitalista. Daquele que nos dá de comer. Mas não só de comer porque nos habituámos à sobremesa toda-poderosa. Olímpia olha Firmina nos olhos. OLÍMPIA – Nenhuma das máscaras do capitalismo – corporativo ou tecnocrata, financeiro ou liberal, tardio ou neoliberal, pós ou pós pós, anarco-


cena ou de compadrio, Keynesiano ou monopolista de estado – subsistirá se as necessidades básicas dos homens forem simplesmente satisfeitas. E quais são elas? São as necessidades energéticas, quer se trate das energias de renovação do indivíduo enquanto corpo, mente e força de trabalho, quer se trate da sociedade enquanto corpo compósito, corpo gregário e organizado. Portanto... FIRMINA – A Olímpia fala como um livro. Mas a história dos homens não é assim... assim tão... assim tão linear. Há viravoltas e reviravoltas que só são vistas como previsíveis depois de acontecerem. Não é? OLÍMPIA – Sim. Mais ou menos. Acho que não. Porque é aí que entra um factor determinante. De regulação e de regeneração. A guerra. As guerras. Que são um mal necessário. Que devastam para que a fénix humana renasça com mais sangue na guelra. Não sou eu que o digo... FIRMINA (em tom de desolação) – É dos livros. OLÍMPIA – Sim, é dos livros. Se não houver guerras, não haverá venda de armas. Não haverá mercado negro. Não haverá regulação demográfica. Não haverá renovação tecnológica. Não haverá experimentação em larga escala. Não haverá mobilidade social. Não haverá necessidade de reconstrução. Não haverá mudança de hábitos de consumo. Não haverá chicotada psicológica. Tudo coisas necessárias a uma economia de mercado saudável. Silêncio de desabamento. OLÍMPIA – Portanto precisamos de impedir o gato de ir às filhoses. E, se quer que lhe diga, não há-de haver muitas maneiras de pôr o gato a ronronar. Firmina interpreta a sugestão de Olímpia como um descarado convite à manipulação pela sedução. Levanta-se de supetão. Estende a mão a Olímpia e sai precipitadamente murmurando uma frase de despedida. Entretanto os Fantasmas de Eugénio e Vladimiro saíram do torpor, procuraram-se, encontraram-se e passeiam de pelo palco de mãos dadas. FANTASMA DE EUGÉNIO – A linha do seu ombro não é estranha. FANTASMA DE VLADIMIRO – A curva da sua nuca também não.


FANTASMA DE EUGÉNIO – Daqui a pouco, quando eu lhe pedir que pouse a sua nuca no meu ombro, acho que vamos descobrir que ambos encaixam perfeitamente. FANTASMA DE VLADIMIRO – É um facto. Há factos assim que é preciso provar para saber. Estão escritos à face das coisas. FANTASMA DE EUGÉNIO – Claro, aliás que as coisas aconteçam ou possam apenas acontecer, que as coisas seja vividas ou apenas possam vir a ser vividas, que as coisas sejam ditas ou apenas possam vir a ser ditas... vem dar tudo ao mesmo. Mas é cansativo pensar estas coisas. FANTASMA DE VLADIMIRO – Provavelmente mais ainda do que fazê-las. FANTASMA DE EUGÉNIO – Saber que podemos fazer o que nos apraz também é um prazer bastante mais intenso e duradouro do que fazê-lo. FANTASMA DE VLADIMIRO – Não fazer é prolongar o prazer. Mas será que fazer é encurtá-lo? Os fantasmas de Eugénio e Vladimiro caem como bonecos esvaziados. Simultaneamente Firmina acorda Vladimiro que está visivelmente a curar uma ressaca. FIRMINA (delicada mas firme) – Precisamos de falar. Vladimiro. Acorde. Vai rebentar uma bomba à sua porta. VLADIMIRO (abrindo os olhos) – Uma bomba? A Firmina anda a ver filmes a mais... (Endireitando-se.) Não... A minha Firmina não é mulher de fantasias. Que vem a ser essa pressa? FIRMINA – A Drª Olímpia está um bocado passada. VLADIMIRO – A Drª Olímpia É um bocado passada. Olha a grande novidade! Mas se não os podes derrotar, junta-te a eles. E quem são eles? Eles são uma ela. Uma e ela mesma. E ela é um império. FIRMINA – Desça à terra, Dr Vladimiro. Ela vai roer-nos a corda. (Sentandose como que exausta.) E o pior é que não tenho a certeza de que não tenha razão. Carradas de razão. VLADIMIRO – Ou ela lhe deu a volta ao miolo ou a Firmina entrou em roda livre. E esse cérebro auto-gerido está a torná-la confusa.


FIRMINA – Confusa uma ova. O que ela diz tem fundamento. Esta descoberta do Eugénio é uma prenda envenenada. Pode ser o nosso fim. VLADIMIRO – O nosso fim? FIRMINA – O nosso fim, sim! O fim do sistema. O desmoronar do capitalismo. O declínio da sociedade de consumo, da sociedade de mercado, da sociedade... VLADIMIRO – Ok... Ok... Já captei. Mas não é isso que eu quero desde que penso logo desde que existo? FIRMINA (dura) – Deixe-se gracinhas. O que é que o Vladimiro vai fazer sem esta empresa, esta razão social, esta ocupação? Eu já nem falo em mim... Silêncio que se prolonga. VLADIMIRO – Sirva-me um. Sem gelo. Não. Com gelo. Para eu acordar. E deixe-me pensar. Firmina retira-se para atender ao pedido do patrão. Vladimiro de cotovelos pousados nos joelhos, agarra a cabeça. O Fantasma de Eugénio ergue-se e sacode-se delicadamente. O Fantasma de Olímpia aproxima-se dele pelas costas, tapa-lhe os olhos com as mãos e... FANTASMA DE OLÍMPIA – Quem sou eu? Não adivinha? FANTASMA DE EUGÉNIO – Adivinho. A senhora é a mulher que tapa os os olhos com uma venda feita de mãos. Certo? FANTASMA DE OLÍMPIA – Bravo! Que perspicaz! Foi um impulso, um furor, um ímpeto, um arroubo que me deu. Sem causa. FANTASMA DE EUGÉNIO – Nem efeito. FANTASMA DE OLÍMPIA – Perfeito. Detesto o peso das intenções, já nem sei bem o que isso é. Mas ainda odeio mais o peso dos actos. FANTASMA DE EUGÉNIO – Não a vejo a odiar. Não me parece que tenha queda para isso. FANTASMA DE OLÍMPIA – Se me concentrasse muito, talvez conseguisse... odiar. Mas sinto que gasto todas as forças em estar em mim.


FANTASMA DE EUGÉNIO – Estar em si? FANTASMA DE OLÍMPIA – Não basta estar. Nem querer estar. É preciso concentrar-me para não me dissolver. FANTASMA DE EUGÉNIO – Agora que a estou a ouvir, também me parece que toda a luz que tenho uma ligeira brisa poderia apagá-la... FANTASMA DE OLÍMPIA – Se acaso a sua luz se apagasse, eu dividiria a minha luz consigo. FANTASMA DE EUGÉNIO – Vamos pelo menos evitar as correntes de ar. FANTASMA DE OLÍMPIA – Não. Em lugar de apagar, elas serão capazes de nos atiçar. Não acha? Os fantasmas de Eugénio e Olímpia continuam a deambular conversando inaudivelmente. Vladimiro esvazia de um só trago um copo de whisky. Firmina dispõe-se a ouvi-lo... VLADIMIRO – A Senhora Banqueira é fina que nem um alho. Brinca com o nosso dinheiro mas calcula as jogadas. FIRMINA – Criada nos corredores da bolsa e do casino, não podia ser de outra maneira. Filha de peixe graúdo... nasce ensinada a nadar. VLADIMIRO – Isto que a gente se prepara para desencadear neste nosso mundo, vai destruí-lo. Num abrir e fechar de olhos. Se houver comida e combustível a rodos, haverá saciedade e abastança para todos. Se houver sustento e conforto para os explorados, acaba-se a mão-de-obra tratada como mercadoria. Acabam-se sindicatos. Acaba-se a luta de classes, acabase a livre concorrência. O mercado vai de vela. FIRMINA – Mas isso não é a revolução, o mundo utópico e o homem novo com que me tem enchido os ouvidos? VLADIMIRO – É e não é. É mas só na aparência. Repare que, na minha concepção de revolução, a tomada de consciência, a identificação dos inimigos e dos aliados de classe, o combate na frente laboral, o derrube pela força do poder instituído são factores sine qua non. Ninguém liberta ninguém do jugo do opressor – os oprimidos devem tomar em mãos as rédeas do seu destino e inventar a luta à medida que a travam.


FIRMINA – Estamos a fugir com o rabo à seringa ou estamos simplesmente acagaçados? VLADIMIRO – A sua avó dos provérbios não lhe ensinou que quem tem cu tem medo? FIRMINA – Agora sim, estamos ao nível dos proletas: encostadinhos à parede. VLADIMIRO – Bem, eu disso já nem falo: a empresa, os postos de trabalho, a linha de produção, etc. vai tudo ao ar. Mas a questão é que vai ao ar para dar lugar a uma falsa utopia, a uma santidade humana com pés de barro... FIRMINA – O que significa que... VLADIMIRO – O que significa que temos de parar o processo. Temos que entravar a difusão da descoberta do menino Eugénio. Temos que impedir o menino Eugénio de chegar à ribalta. FIRMINA – Ele é um sujeito teimoso. Paciente. Resiliente. VLADIMIRO – Nesse aspecto, a gente come-o ao pequeno-almoço. Não, isto é como uma caçada, temos de fazer as coisas com jeitinho para não afugentar a presa. FIRMINA – Está a pensar em suborná-lo? VLADIMIRO – Ainda não sei. Quem não caça com cão caça com gato. Às vezes mais vale um gato... trepador do que um cão esfomeado. FIRMINA – Eu só não vejo a necessidade de falar por código. Francamente. VLADIMIRO – A estratégia é a coisa que mais facilmente se desgasta, sabe. Às vezes, basta falarmos dela para ela se tornar falível. Cometemos um erro. A partir de agora não podemos falhar. FIRMINA – E a Drª Olímpia? VLADIMIRO – Você acha que eu ando a dormir na forma? Já lhe liguei. Já acertámos agulhas. FIRMINA – E fala o Vladimiro da ralé a tomar em mãos o seu destino... VLADIMIRO – Falo e assumo. Só que mais vale um pesadelo do que um sonho mal realizado.


Os fantasmas de Eugénio e Olímpia andam perdidos um do outro. Procuram-se em todas as direcções, cruzam-se sem se verem. Por fim, como que esgotados, instalam-se nos assentos mais confortáveis e adormecem instantaneamente. VLADIMIRO (prosseguindo a conversa, como se tivesse havido uma elipse entre a última deixa e esta) – ...mas quando ouve falar de bolsa e de accionistas, de nichos de mercado e de jogos de especulação, vira ouriço, o nosso menino de coro. O gajo parece quase... alérgico à pasta. FIRMINA – Os ouriços e os ursos não resistem melhor ao perfume da pasta do que as gatas. É tudo uma questão de tempo, Dr. Vladimiro. Melhor dizendo: de tempos. Só não sei é onde vamos desencantar a nota. Não temos dinheiro para mandar cantar um cego quanto mais para mandar calar um anarco-cientista. VLADIMIRO – Mas isso não está na cara? A nossa banqueira não quer pagar a conta pesada dos maus tratos que o ecossistema infligiu à barriga dela, mas vai ter de pagar para não cair de muito alto. (Pausa.) O sábio louco deve estar por aí a pintar. Protocolo nº 5. É só para não dar cônfia. Vladimiro retira-se. Eugénio aproxima-se de Firmina que se instala no canapé de três lugares. Traz consigo a gaiola portátil. FIRMINA – O Dr Vladimiro teve uma reunião inadiável mas já deve estar a caminho. Recomendou-me vivamente que tratasse de si como do Xá da Pérsia. EUGÉNIO – Esse sujeito foi exilado e substituído por um aiatola. Eu quero revolucionar o mundo mas sou menos radical. (Um tempo.) Não, pensando bem, sou mais radical. FIRMINA tom frívolo – Pensando melhor, não sei se será suficiente. O outro não houve Reza que lhe valesse. Ambos se sentem obrigados a rir, ela para se convencer de que é espirituosa, ele para não ferir susceptibilidades. Curto silêncio. EUGÉNIO – A Firmina não se ofende se eu aproveitar para trabalhar um bocado, pois não. Vou para a saleta... Eugénio vai-se instalar numa cadeira. Pousa a gaiola e saca um lap top do estojo. Passados escassos instantes, Firmina vai ter com ele.


FIRMINA – O motorista do Dr Vladimiro acaba de me mandar uma mensagem. Estão retidos num engarrafamento. EUGÉNIO – Eu não lhe dizia: a mobilidade dá cabo de nós. (Um tempo.) A propósito: pode-me indicar onde se encontram os sanitários? Firmina e Eugénio afastam-se. Os Fantasmas de Olímpia e Vladimiro erguem-se buscam-se e conversam de braço dado. Fantasma de Olímpia – Isto é tão grande... Tenho a sensação de andar sempre perdida. Fantasma de Vladimiro – Sim. Eu diria antes: tenho a sensação de que não sei para onde vou. Fantasma de Olímpia – E de que nunca passo duas vezes pelo mesmo sítio. É maravilhoso. Fantasma de Vladimiro – É mesmo. Podermos estar num local que nos é totalmente familiar e, ao mesmo tempo, completamente desconhecido é um privilégio. Fantasma de Olímpia – Ainda por cima com tão boa companhia. Fantasma de Vladimiro – É muito amável da sua parte. Aliás, tudo em si é amável. Tudo. Fantasma de Olímpia – Quer você dizer que tudo em mim deseja ser amado. É bem verdade. Tudo. O Fantasma de Vladimiro desfalece. Olímpia continua a deambular como se nada fosse. Vladimiro «regressa» de uma suposta saída. Dirige-se para Firmina, evidenciando pressa. VLADIMIRO – Então você deixou-me fugir o bicho? FIRMINA – Nem pó. Está agarrado ao computador. A fazer companhia aos ratinhos. VLADIMIRO – Ok. Espero que não tenha adormecido ao colo de uma enzima. Deixá-lo ruminar um bocado. De manhã uma pessoa está com a pica toda. Depois esmorece. Quem esmorece amolece. E a gente não se pode dar ao luxo de deixar esse aluado à solta.


Vladimiro fica como que suspenso. Depois arrasta familiarmente Firmina para um recanto mais escuro. Num outro recanto, Eugénio adormeceu frente ao computador. Ela deixa-se arrastar sem reservas. Os Fantasmas de Olímpia e Eugénio emergem da penumbra, procuram-se, chegam a uma zona mais iluminada, caem nos braços um do outro. E não se largam. FANTASMA DE EUGÉNIO – Que leveza! E no entanto eu sinto que, se abrir os braços, você pode cair. Você vai cair. FANTASMA DE OLÍMPIA – Por favor, não abra os braços. Aperte-me sem me magoar. É tão bom saber que não vou cair, embora me sinta já caindo. Como se nunca tivesse deixado de cair. FANTASMA DE EUGÉNIO – Confie em mim. Eu sei que não nos conhecemos de lado nenhum mas preciso de si como se tivesse passado a vida à sua espera e este momento fosse... fosse... FANTASMA DE OLÍMPIA – Não ponha palavras num amor que é cego surdo e mudo. Deixá-lo encontrar a sua história sem o estorvo das palavras. Ficamos bem melhor sem falar, não acha? FANTASMA DE EUGÉNIO – Ficamos bem de todas as maneiras. É como queira. Os Fantasmas de Eugénio e Olímpia desfalecem agarrados um ao outro. Vladimiro e Firmina reaparecem. Eugénio acorda estremunhado. VLADIMIRO – A Olímpia deve estar por aí a pintar. Ela costuma ser pontual. FIRMINA – Estou a ouvir a porta. É...é ela. Vladimiro instala-se no cadeirão Voltaire. Eugénio, trazido por Firmina, prefere arrastar uma cadeira sem braços. Olímpia aparece como que trazida por uma corrente de ar e senta-se no maple. Firmina fica de pé. EUGÉNIO – Não estava à espera desta reunião. Mas fico muito grato (olha em seu redor) aos três por se terem disponibilizado tão rapidamente para... lançar... o navio à água e... Desculpem, estou extenuado e sou mau orador. OLÍMPIA – Percebemos perfeitamente que esteja cansado das andanças destes últimos dias. Seja como for, não lhe pedimos que fale. Pedimos-lhe que ouça.


EUGÉNIO (estranhando o tom muito formal de Olímpia) – É para isso que aqui estou. OLÍMPIA (sem o deixar respirar) – O Eugénio terá decerto percebido o entusiasmo com que nós acolhemos – o entusiasmo com que eu acolhi – a sua descoberta e – porque não confessá-lo? – a sua pessoa. O fruto da ciência e também a aura do cientista. E é exactamente por essa faceta – a da ciência – que quero começar esta nossa conversa. (Respira fundo e enceta um discurso que, manifestamente, foi bem preparado.) E o que vem a ser a ciência? A ciência resulta, ninguém pode contestá-lo, do esforço dos homens que, desde a noite dos tempos se esforçam por combater a adversidade, a incerteza e a insegurança, melhorando as condições de vida na terra. A prazo, a ciência, mesmo a ciência pura, visa erradicar a miséria à face do planeta. Ao reflectir sobre as singulares aplicações da sua descoberta, Eugénio, eu não tardei a dar-me conta de uma série de contingências alarmantes. E porque várias cabeças pensam melhor que uma só, contactei alguns dos meus parceiros e investidores mais habilitados a dar-me uma opinião. E todos concordamos. A introdução das novidades radicais que dela decorrem da sua descoberta aniquilará a própria ciência. Se resolver totalmente o problema que justifica a sua existência, a ciência deixará de existir. Não que não existam amantes desinteressados do conhecimento. O Eugénio faz certamente parte dessa estirpe. Mas por que carga de água alguém haveria de viabilizar a investigação se as necessidades básicas e até menos básicas tiverem sido satisfeitas? Silêncio. EUGÉNIO (encontrando a custo um argumento) – Não foi unicamente por interesses económicos que a exploração do espaço foi financiada. OLÍMPIA – Excelente exemplo. Ela foi o ai-jesus dos governos das grandes potências durante a guerra fria e, finda a competição entre americanos e soviéticos, ficou reduzida à sua mais simples expressão. Pior: não cumpriu as promessas que deixou pairar. Silêncio pesado. Ouvir-se-iam as moscas se houvesse moscas. OLÍMPIA – Mas não é só o desaparecimento brutal de uma actividade tão nobre como a ciência que pode advir do reinado da Azoteia. Pense bem: se não tiverem de lutar pela vida, os homens deixarão de trabalhar. Os homens só são capazes de ver um lado das coisas. O lado que lhes parece mais imediatamente positivo. Os homens obedecem à lei do menor esforço. O


regresso à barbárie acontecerá muito rapidamente. Os desempregados serão mais que as mães e sabe deus como irão queimar o seu tempo. Os camponeses abandonarão as terras e a natureza voltará a tomar conta dos territórios que os humanos levaram milénios a conquistar-lhe... Está a ver o filme, Eugénio? É que o filme é um filme de terror, Eugénio. EUGÉNIO (consciente de que o seu comentário é frívolo) – Eu pensava que era para regular a vida gregária e controlar o irracional nos comportamentos das massas que os banqueiros – ou seja, no fundo, o dinheiro que é de todos – financiavam os políticos. VLADIMIRO (tom paternalista de reprovação) – Ò Eugénio, não nos dê baile. Eu sei que não é fácil ouvir quem põe em causa o corolário de anos e anos de devoção. Mas será que nunca se deu ao trabalho de imaginar as consequências da sua invenção, considerando a possibilidade de algumas serem nefastas? EUGÉNIO – Considerei tudo e mais alguma coisa mas só me saltaram aos olhos benefícios para a humanidade. VLADIMIRO – Não acredito que tenha perdido muito tempo com isso... Porque só apenas e unicamente a supressão das fezes e da produção de merda é altamente problemática, embora pareça ter agradáveis vantagens. Repare que a caca, o cocó, os excrementos, o esterco, o estrume são potentes fertilizantes. E as suas queridas plantas, que você nos apresenta como modelo, não assimilam o azoto do ar. É o azoto do húmus que elas processam, ou seja, em grande parte o das fezes. As excreções têm sido ancestralmente utilizadas para enriquecer as terras cansadas. (Carregando o sobrolho.) E olhe que os nossos antepassados sabiam o que faziam. EUGÉNIO – O discurso contra o progresso é velho como o mundo. VLADIMIRO – Certamente. Mas a reflexão sobre a fragilidade da espécie consegue ser mais antigo. Aliás o elo entre fragilidade e inteligência tem sido sublinhado por gente muito respeitável. Deixe-me dar-lhe só um exemplo colhido entre os malefícios mais que prováveis: a evolução do Terceiro Mundo. Se os gajos do Terceiro Mundo virem resolvido o problema da subsistência, eles que já não curtem propriamente horários e obrigações deixarão pura e simplesmente de trabalhar. Ora, como o Eugénio sabe a estabilidade e o estilo de vida dos nossos países ocidentais dependem da situação nos países em vias de desenvolvimento. Libertar esses países, tudo bem, mas não convém não libertá-los de mais. Porque, para além da mama


dos recursos, eles são os clientes principais das nossas armas. Fim da dependência alimentar significa fim das indústrias de armamento, do tráfico de armas e de todas as actividades que de ambos dependem. EUGÉNIO (tom de desprezo) – E dizia-se você um patrão comunista e libertário. VLADIMIRO – Dizia e não me desdisse. Mas lutar pela equidade não quer dizer empurrar a humanidade para o abismo. O fim da agricultura, de que falou a Drª Olímpia, será a porta aberta aos incêndios, ao regresso das feras, à selva e à sua lei. E se os homens se tornarem ociosos, voltaremos à lei do mais forte. Esse retrocesso civilizacional não será nunca uma revolução. No melhor dos casos, será um caos. No pior, será o fim do mundo. Silêncio. Firmina tem uma tontura, apoia-se em Vladimiro e senta-se no canapé de três lugares. Cruza nervosamente as pernas e procurando os olhos de Eugénio, fala-lhe num tom quase suplicante. FIRMINA – O Eugénio tem que reconsiderar. Tem que parar para pensar. Tem que fazer marcha atrás. O Eugénio é um homem bom... EUGÉNIO – Estou a ver que cada um defende o seu confortozinho com unhas e dentes. O humanismo é mesmo uma badalhoquice. E a mim? E a mim quem me paga as centenas e centenas de horas de trabalho, a renúncia, o isolamento, a fadiga, os cabelos brancos? OLÍMPIA – O Eugénio é um homem bom, mas nós somos boa gente. Claro que não se trata de deitar a perder anos e anos de dedicação. Isso calculase. Tudo se calcula. E isso paga-se. Aquilo que lhe pedimos... FIRMINA – ...é que nos ajude a calcular o montante da sua... o montante do seu... da sua indemnização. Não queremos fazer contas ad hoc. VLADIMIRO – Não queremos parecer pouco generosos ou, pelo contrário, empenhados em subornar o Eugénio. Isto é um assunto de superior importância. Ultrapassa-nos. E também o ultrapassa a si. Eugénio levanta-se e tem um irreprimível ataque de riso. Quase se desequilibra. Apoia-se no encosto da cadeira. Exprime-se num tom definitivo que não admite réplica. EUGÉNIO – Metam as vossas ideias e o vosso dinheiro pelo cu acima. (Saindo apressadamente.) E passem muito bem.


Mal Eugénio se afasta, os três outros ficam mergulhados numa penumbra conspiradora. VLADIMIRO – Ele tem o seu feitiozinho... OLÍMPIA – Eu que o diga. Convidei-o para jantar, levei uma tampa. Convidei-o para um café, ele veio e disse-me que enquanto o sonho dele não ganhasse contornos de realidade, não estava disponível para amar... FIRMINA – Há homens que preferem as morenas. Poucos mas alguns. VLADIMIRO – Minhas senhoras, eu não queria interromper o chá das cinco, mas temos aqui um ganda berbicacho... Como diria o meu homónimo Illitch Ulianiov: que fazer? OLÍMPIA – Não é preciso ser leninista para perceber que, nesta conjuntura, a acção justa decorre da adequação dos meios aos fins. (Virando-se para Firmina, com um misto de desdém e rancor da voz.) E o que são os fins, neste caso? FIRMINA – Parar o processo de transformação de uma descoberta científica num leque de aplicações com elevado valor económico a curto prazo e muito discutível valor a médio prazo... OLÍMPIA – E quais são os nossos meios? FIRMINA – Convencê-lo... VLADIMIRO – Fazendo-o escutar a voz da razão. OLÍMPIA – Coisa que acabámos de fazer e falhou redondamente. Resta-nos pois. VLADIMIRO – Voltar à carga... FIRMINA – Inútil. Ele é teimoso como uma mula. OLÍMPIA – Então... VLADIMIRO – Eu diria que só temos uma alternativa: roubar o sujeito, sacar o segredo científico, a fórmula ou lá o que aquilo é... FIRMINA – Roubar? VLADIMIRO – Sim. Roubar, furtar, usurpar, abafar, surripiar, afanar, despojar, aliviar...


FIRMINA – E depois? Quem inventa uma vez, inventa duas vezes. Quem descobriu hoje, volta a descobrir amanhã. VLADIMIRO – O homem que invente e descubra à vontade. A partir do momento em que terceiros registarem o invento, ou NÓS por exemplo (Com o indicador em riste, designa os três presentes.), patentearmos a novidade, ele deixa de poder fazer seja o que for. Com ratos ou sem ratos. OLÍMPIA – Ó camarada, foi isso que andou a aprender quando militava no Partido Comunista? Chapeau! (Suspira de felicidade.) Bravo! VLADMIRO – Agora deixai-me traçar um plano A e um plano B. Até logo meninas... Olímpia e Firmina retiram-se e perdem-se no escuro. Os Fantasmas de Olímpia e Firmina despertam, recomeçam a deambular, procuram-se durante algum tempo, encontram-se, olham-se com espanto pintado no olhar. Mas depois avançam a par um do outro, tagarelando. OLÍMPIA – É curioso: apesar de saber que o bom tempo se tem prolongado indefinidamente, sinto frio. Não sei se por dentro se por fora. FIRMINA – É curioso: apesar de saber que não me confundo como que está à minha volta, deixou de fazer sentido haver dentro e haver fora. OLÍMPIA – Sentemo-nos. FIRMINA – Sentemo-nos junto uma da outra. OLÍMPIA – Permita-me que lhe dê a minha mão. FIRMINA – Na verdade está gelada. Vou afagá-la e friccioná-la para a aquecer. Firmina faz o que anuncia. OLÍMPIA – A sua ternura transmite pensamentos. FIRMINA – Pensamentos? OLÍMPIA – Sim. Os olhos dos poros abrindo caminho. A dança dos dedos que inventam atalhos. A grinalda de falanges, toda ela rosa carne. FIRMINA – É curioso: você lê em mim pensamentos que eu não tenho.


OLÍMPIA – É curioso: os seus pensamentos afugentam os meus. Os meus maus pensamentos. Olímpia e Firmina fecham os olhos como se quisessem perseguir mentalmente os seus fugidios pensamentos. Imóveis, parecem adormecer. Eugénio atravessa o espaço cénico precipitadamente. Vai em direcção a Vladimiro que está absorto a beber um whisky. Eugénio traz a cólera estampada no rosto. EUGÉNIO (sem deixar Vladimiro saudá-lo, fora de si) – Alguém entrou em minha casa. Alguém que se apoderou da minha chave porque a porta não foi arrombada e a fechadura não foi forçada. VLADIMIRO (erguendo-se de supetão e ripostando) – O Eugénio enlouqueceu. Primeiro, não admito que me fale nesse tom. Segundo, se veio pedir ajuda, tem que se explicar com calma, de outro modo não vamos a lado nenhum. Certo? EUGÉNIO – Eu não recebo lições de empresários embriagados. VLADIMIRO – Eu não recebo queixas de cientistas charrados. Silêncio. EUGÉNIO (rebentando) – Alguém entrou pela minha casa dentro. Mexeu, remexeu. Abriu gavetas, esvaziou armários, desarrumou estantes. Abriu a gaiola das cobaias. Lixou um computador. Pôs tudo em pantanas... VLADIMIRO – Já foi à polícia? EUGÉNIO – Já. Perguntaram-se se eu tinha tido algum arrufo com a minha namorada? Disseram que aquele caos era obra de mulher em fúria. Silêncio. VLADIMIRO – O Eugénio não está a pensar que a Firmina fez esse... esse serviço. EUGÉNIO – A vosso mando, talvez. A mando do patrão. Ela é o seu pau mandado, não é? E é a única pessoa que esteve suficientemente perto de mim e da minha casa para me ter surripiado a chave. VLADIMIRO (fingindo grande espanto) – Aaaaaah...!!! Silêncio.


VLADIMIRO – Mas eu conheço bem a Firmina. É incapaz de uma coisa assim. Encantadora e encantadeira. Dura de roer mas sempre pronta a derreter. Fiel que nem um cão. (Suspiro estudado.) Eu reparei que ela tinha um fraquinho por si, lá isso reparei. Um fraquinho é favor: topei a... a... inclinação e a admiração. A dada altura só tinha olhinhos para si. (Pausa.) Julguei que o Eugénio não lhe ligava nenhuma. Constato que me enganei. EUGÉNIO – A Firmina é uma mulher, eu sou um homem, não lhe vou dar uma lição de biologia. VLADIMIRO (sorrindo) – Claro, claro. (Pausa. Fingindo grandeza de alma.) Eu nestas coisas de mulheres sou bom perdedor. Não tenho ciúmes nem guardo rancores. (Parecendo reflectir.) Mas mesmo assim, eu ponho as mãos no fogo pela Firmina. Firme nas convicções. Incapaz de trair. Pausa. A cabeça de Vladimiro está a mil. EUGÉNIO – Mas quem mais podia passar a minha casa a pente fino... em busca de qualquer coisa? Em busca de uma coisa que não podia encontrar. (Batendo com o indicador na cabeça.) Porque o essencial está aqui dentro da cabeça. Ninguém mo pode roubar. VLADIMIRO – Eugénio, eu percebo que você esteja passado, enfurecido, raivoso como um cão. Continuo no entanto a ser peremptório. A Firmina armada em ladra? Nem pó!!! Aliás... Desculpe, com a electricidade no ar até me esqueci de lhe oferecer alguma coisa para beber. EUGÉNIO – Não quero nada. Só quero tirar esta coisa a limpo. Só. VLADIMIRO – Ia eu a dizer que a Firmina, que é uma rapariga às direitas, bonita mas nada burra e muito prestável – enfim, o Eugénio também já a conhece –, a Firmina, estava eu a dizer, ia justamente convidar-nos todos para uma pequena soirée em casa dela. Ela cozinha divinamente. E é uma boa anfitriã – enfim, o Eugénio também já sabe disso. É que... (sublinhando subtilmente o que afirma)... é que ela ficou muito mal impressionada com a nossa última reunião, acha que fomos todos muito desagradáveis consigo. Acha que fechámos uma porta quando apenas queríamos alertar para alguns perigos. Queríamos ser sinceros, fomos brutos. Queríamos ser ouvidos, fomos surdos. Queríamos testar a sua obstinação e acabámos nós por fazer uma perrice. Silêncio. Eugénio está atarantado. Vladimiro ergue-se e serve-se de whisky arvorando uma expressão de hipócrita serenidade.


VLADIMIRO – Mas por favor, não diga que eu lhe contei isto quando ela lhe telefonar. A Firmina é bem capaz de considerar – e com toda a razão – que o patrão está a abusar da... da familiaridade. E eu não quero perder a minha secretária. (Deitando as mão à cabeça como se se tivesse esquecido de fazer alguma coisa.) Com licença... eu já volto. Com a conversa... obliterei completamente... Vladimiro afasta-se para fazer um telefonema. Saca nervosamente do telemóvel e marca o número de Firmina. Firmina, na outra extremidade do espaço cénico, atende. VLADIMIRO – O menino Eugénio está fodido. Consegui segurar os cavalos e pus o gajo em banho-maria. Agora ele está todo baralhado. Bom. A tentativa de usurpação da patente falhou. Temos de activar rapidamente o plano B. Rapidamente quer dizer já. FIRMINA – Ok. Já já já. (Sonhadora e dura.) É como se fosse para ontem. Os fantasmas de Olímpia e Eugénio despertaram e após um tempo de deambulação, encontraram-se. Frente a frente, de mãos dadas como antes de começar a dançar, falam e, muito lentamente, vão se deslocando no espaço cénico. FANTASMA DE OLÍMPIA – Alguma coisa, uma coisa muito forte, não sei se vinho se veneno, me subiu à cabeça. Estou bêbeda. Peço desculpa. FANTASMA DE EUGÉNIA – Para quem está bêbeda, disfarça muito bem. Mas deixe-se levar. FANTASMA DE OLÍMPIA – Eu deixo. Eu deixo tudo. Quem me dera ser desencaminhada. FANTASMA DE EUGÉNIO – Desencaminhada? FANTASMA DE OLÍMPIA – Sim. Gostava de queimar todas as etapas. FANTASMA DE EUGÉNIO – E a meta seria? FANTASMA DE OLÍMPIA – A meta seria continuar sempre a queimar etapas. Estar sempre... sempre ao rubro. FANTASMA DE EUGÉNIO – Sim. Eu já vejo chama. Já oiço o ruído de champanhe do corpo a crepitar. E todo o lugar cheira a vermelho, não sei se está a reparar.


FANTASMA DE OLÍMPIA – Sim. Caminhamos sobre brasas. Não dançamos sobre cinzas. Somos pira sobre pira. Cheira a vermelho. E já não somos nós que respiramos é o ar que agora nos respira. FANTASMA DE EUGÉNIO – Como se chama a chama? FANTASMA DE OLÍMPIA – A chama chama-se chama. Por vezes cala-se. Mas nunca se apaga. Os Fantasmas de Eugénio e Olímpia caem por terra. A luz torna-se intensa e festiva. Dos quatro cantos do palco surgem Olímpia, Firmina, Vladimiro e Eugénio. Todos de copo na mão. Passam por cima dos corpos adormecidos dos fantasmas EUGÉNIO (prosseguindo uma conversa já encetada no tom de quem já está bem bebido) – Podem achar estranho, mas a dada altura falava mais com ratos do que com homens. Este trabalho é realmente muito obsessivo. Uma pessoa perde um bocado a noção das regras da etiqueta e das normas de conduta... VLADIMIRO – O Eugénio tem que se soltar um bocado. Parece que está sempre na defensiva. Trabalho é trabalho. Mas há que deixar um tempo para o conhaque. OLÍMPIA – Até eu abro excepções na minha vida quase... VLADIMIRO – ...monástica??? OLÍMPIA – Exactamente. Hoje, por exemplo, mandei a dieta vegan à urtigas e empanturrei-me com o delicioso jantar da Firmina... FIRMINA – Obrigada. OLÍMPIA – O prazer foi todo meu. EUGÉNIO – A cabidela de javali... hmmm... sublime. Mas na verdade eu estou a sentir umas guinadas na barriga. Desabituei-me da comida feita em casa como me desabituei das pessoas... Olímpia, Firmina e Vladimiro entreolham-se. Eugénio está agarrado à barriga OLÍMPIA – Sais de fruta. A Olímpia não tem sais de fruta. É remédio santo. FIRMINA – Vou ver. Eu sou mais de tisanas. Tenho ali uma mistura de tomilho, limonete, rosmaninho e camomila que é tiro e queda. Um bocadinho


amargo mas perdoa-se o mal que sabe pelo bem que faz. (Abre um sorriso.) Eu vou pôr água a aquecer na chaleira. Faz-se num instante. Não custa nada. Firmina dá meia volta e desaparece. VLADIMIRO (para Eugénio, sublinhando as intenções) – A Firmina revela-se uma verdadeira fada do lar. É certo que ela passava a vida a falar de uma avó para aqui e de outra avó para acolá. Mas eu nunca pensei que podia estar a frustrar uma verdadeira dona de casa. Eugénio, agarrado à barriga, tenta reprimir uivos de dor. OLÍMPIA – Você já foi operado ao apêndice? É que uma apendicite aguda dá assim umas dores lancinantes... VLADIMIRO – Se não acalmar com a tisana, temos de o levar ao hospital. Firmina reaparece com uma grande chávena de vidro cheia de um líquido fumegante. Aproxima-se de Eugénio que está curvado sobre a barriga e entrega-lhe o recipiente com a tisana que o doente bebe a custo. Três pares de olhos observam o comportamento de Eugénio que não tarda a cair morto. FIRMINA – Agora, meus senhores, paz à sua alma solitária e vamos tentar não perder o sangue-frio. Há que esvaziar a casa de todos os adereços que utilizámos para a encenação do jantar. O Fantasma de Eugénio acorda. Levanta-se, olha à sua volta e não vê ninguém. Chama. FANTASMA DE EUGÉNIO – Onde estais? O Fantasma de Eugénio procura os convivas e passa por entre eles sem os ver. VLADIMIRO – Você não fez uma lista? FIRMINA – Fiz. (Saca de um papel escondido no fundo do bolso.) Louça de mesa e de cozinha. Roupa de mesa e de cozinha. Copos e bebidas. A chaleira e a chávena. As flores. Enquanto fala percorre o apartamento e vai amontoando os items que vão ter de fazer desaparecer. Olímpia prepara uma linha de coca.


VLADIMIRO – E os papéis. O gajo chegou aqui com uma data de papelada e espalhou tralha por todo o lado como é… melhor dizendo era, hábito dele. OLÍMPIA (interropendo a linha de coca) – Eu trouxe uns mega-sacos do lixo pretos. Opacos. Resistentes. Amanhã o estafeta do banco leva tudo para a central de incineração. FANTASMA DE EUGÉNIO – Isto é um jogo? Onde se esconderam? VLADIMIRO – Toalhitas para limpar todos os recantos. OLÍMPIA – Que comovente este homem a dias! VLADIMIRO – Comovente não: previdente, prudente... por vezes mesmo eficiente. Vladimiro serve-se muito generosamente de whisky antes de enfiar a garrafa quase vazia num dos sacos trazidos por Olímpia. FANTASMA DE EUGÉNIO – Se isto é um jogo, acho que já chega. Para mim, acabou-se o jogo. OLÍMPIA – Quando estiver tudo ensacado, eu passo o aspirador. VLADIMIRO – Aí eu ensaco o defunto, arrasto-o até à garagem, meto-o na mala do carro e vamos dar uma volta até... sei lá... até à falésia das Galhetas. Está uma noite sem luar... mas muito amena. Firmina, exausta e eléctrica ao mesmo tempo, senta-se, saca do bolso um frasquinho e engole uns três ou quatro comprimidos. Sem água. O Fantasma de Eugénio deambula desnorteado, lançando inquietos «u-us» como se estivesse a jogar às escondidas sem ter sido prevenido. A princípio os «uus» são ascendentes, nítidos, quase divertidos, mas vão diminuindo em volume e intensidade, até se tornarem gemidos. BLACK OUT Ouve-se a queda de um corpo na água revoltosa, a partir de um ponto muito alto.


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