Os pós modernos

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OS PÓS-MODERNOS Se amanhã lesse num cartaz o anúncio da estreia duma nova fita de Stanley Kubrick, desconfio que o meu espírito pouco ecléctico havia de arranjar maneira de ir adiando a ida ao cinema até acabar mesmo por não encontrar ocasião para ir ver o filme. Assim funcionam os preconceitos e, pela parte que me toca, concebi um forte e feio contra Kubrick: é o tal autor que trabalha sobre as experiências limites, limitando-se à experiência sem questionar os limites, ou seja, negando pela forma — pela prática cinematográfica — a possibilidade de os transcender. Esta opinião pouco benevolente não nasceu dum «ouvir-dizer», mas antes dum «ver-fazer» e, em certa medida, dum «deixar-se levar». Da meia-dúzia de filmes que vi de Kubrick — FULL METAL JACKET já não gozou do benefício da dúvida — ficou-me sobretudo a memória dos efeitos mais ou menos frouxos — os psicadelismos baratos e a metafísica de trazer por casa de 2001: ODISSEIA NO ESPAÇO (dos quais esqueci os motivos, os motores...); Beethoven de olhos arregalados e uns décors muito «design» em LARANJA MECÂNICA (o qual confusamente associo a Bons Vian (?) que também estava na moda em setenta e tal; em ambos recuso o infeliz namoro da violência, pré e pós estética pop); o novo-riquismo de Barry Lyndon (do qual o autor talvez pudesse dizer «c'est moi»); e aqueles intermináveis tapetes em SHINING (do qual nada recordo, exceptuando que as alcatifas me incomodaram e que a acção se desenrola num hotel). Teria porventura algum obscuro interesse (conhece-te a ti próprio...) estudar o significado destes fragmentos de lembrança, mas o leitor não fez mal nenhum a Deus. Resta-me pois defender o melhor da minha relação com o autor, a saber: a descoberta (recente) de um aceitável LOLITA e a adesão (remota) a alguns achados do DR. ESTRANHOAMOR. Com a visão deste último, adolescente que era, formulei uma pergunta: «Sobreviver a quê?» E respondi para mim: «Se, em última análise, formos todos sobreviventes, devemos no mínimo inventar algo a que valha a pena sobreviver». O DR. ESTRANHOAMOR, na sua extrema simplicidade, é um complemento sagaz do discurso de alguns Chaplin porque, enquanto comédia, se constrói a partir de uma terrível constatação: a impossibilidade do burlesco. A identidade física de personagens opostas (barbeiro judeu/tirano militarista) que fazia de O DITADOR uma obra provocatória (panfletária) não pode funcionar num contexto em que a guerra passou a ser um estado permanente — todas as personagens interpretadas por Peter Sellers estão no mesmo barco infernal de responsabilidades e, por extensão, todos quantos se renderam ou renderão à ilusão dum reencontro (de corpos no abrigo ou de almas no além) depois da bomba rebentar, como reza a canção ilustrada pelas explosões e pelas nuvens. O segundo título de DR. ESTRANHOAMOR é, significativamente, «como deixei de me preocupar com a bomba». Para compreender a «despreocupação» segundo Stanley Kubrick, que aponta para um happy end agridoce, o visionamento de LOLITA foi-me precioso: neste outro filme, o mesmo Peter Sellers funciona como um deus ex machina que, pela encarnação sucessiva das várias caricaturas de «consciência», acaba por redimir Lolita da perversão que lhe tínhamos suposto. Em ambas as encenações da tentação, a ambivalência dos delírios que conduzem os protagonistas a comportamentos paranóicos, não consegue libertar-se da casca convencional e acaba por retrair-se na ficção, como o caracol, evitando a desestabilização de parâmetros éticos que a loucura provoca. Fascinado por essa perda de referências mas aparentemente avesso a grandes inversões de marcha da moral, Kubrick virá a trocar o «frisson» dos temas explosivos pelas deflagrações de efeitos técnicos. São essas as manias toleráveis de quem está «na plena posse das suas faculdades» R. G.


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