Os passos nas pegadas

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OS PASSOS NAS PEGADAS O cinema aborda raramente a realidade à qual o espectador pertence, os problemas que ele vive no quotidiano; a maior parte dos filmes visualizam um universo puramente ficcional — a polícia, a «escória», os negócios, os aventureiros... — e seleccionam os cenários mais ou menos magníficos, sempre magnificados, onde acontece a «acção» que se opõe à vida. Quando por vezes nos chega um filme oriundo duma cultura diferente, a primeira impressão é de estranheza total perante ficções não regidas pelas entidades que nos pretendem impingir como universais mas que de facto são ocidentais — americanas ou imitações. O exotismo, visto por dentro, não corresponde à imagem fabricada que dele nos fornecem. Isto é verificável tanto em MILHO VERMELHO de Zhang Yimou, produzido na China, como em YEELEN (A LUZ) de Souleymane Cissé proveniente de África. Porém, observando mais atentamente ambos os filmes, damo-nos conta que as situações apresentadas — a organização duma comunidade rural no primeiro, a busca e o combate entre o bem e o mal no segundo — não nos são desconhecidas. Mais: que se trata de situações centrais no «género» mais fértil do cinema ocidental, o western. A estranheza dos filmes não se prende pois com os temas mas com as formas de os abordar. Em primeiro lugar, a paisagem não intervém como cenário, antes desempenha um papel comparável ao do actor — raros são os westerns que apresentam o espaço americano como elemento condicionante das atitudes das personagens: na maioria dos casos, os locais são escolhidos em função do seu carácter impressionante excepcional. Depois, o objectivo não é justificar um modo de civilização mas questioná-lo: a tradição — o casamento forçado em MILHO VERMELHO, a obediência à autoridade paterna em A LUZ — é posta em causa. Apesar de ambos os filmes serem concebidos como parábolas onde se defrontam forças míticas — o vinho contra o fogo, a «luz» contra os valores aceites de autoridade —, estas últimas não aparecem de forma maniqueísta e rígida em termos de positivo e negativo, antes são dadas como complexas, a avaliar em função de um projecto que a ficção, sem deixar de tomar partido, não relega para o implícito consensual: a comunidade do «milho vermelho» nasceu duma violação e de um assassínio, o herói portador da «luz» é um pária em fuga. No entanto, o traço mais marcante e que permite estabelecer um parentesco entre os dois filmes — ainda que um se situe num contexto histórico preciso (datado pela invasão japonesa) e o outro, pelo contrário, se desenrole num fora-dotempo mítico e eterno —, é o tratamento épico que pressupõe uma fé inteira nas imagens e no próprio média, o qual não pode limitar-se à função de «entertainment» — cuja força expressiva deve compensar a limitação dos meios técnicos e financeiros: a escolha de elementos simples — o campo de «milho vermelho»; a savana e a terra seca; objectos com carga simbólica, as ânforas de vinho, o bordão mágico —; a narração reduzida aos episódios significativos — em detrimento da continuidade que não raro implica imagens inúteis; referência quase «naïve» a forças simbólicas primárias com as quais as personagens ainda não perderam o contacto. Se o tipo de narração nos remete para o Westem, a forma é típica dum cinema ainda em construção, que acredita no seu futuro com uma pujança como há muito não víamos — seria preciso recordar Eisenstein ou filmes excepcionais que assumem o lirismo épico, do Paradjanov de AS SOMBRAS DOS ANTEPASSADOS ESQUECIDOS ao Paulo Rocha de MUDAR DE VIDA. A despeito de algumas imperícias que o fôlego geral supera, estes filmes chegam-nos como uma lufada de ar não poluído e afirmam que o padrão ocidental não logrou modelar tudo, que nenhuma convencionalização é definitiva, que as cinematografias novas, conquanto o seu desenvolvimento passe pela reinvenção de figuras já exploradas, têm para nos oferecer outras imagens e um discurso outro. S.


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