OS PASSOS TRAÇAM O CAMINHO O Van Gogh de Mário Dionísio é anterior à Paleta e o mundo, livro do qual se apresenta como um esboço, aplicado ao estudo dum só pintor. Há títulos de capítulos que passam de uma obra para a outra, aprofundando-se – «O HORRÍVEL ESTÁ EM TODA A PARTE», «UM PÁSSARO PRESO NA PRIMAVERA» – enquanto a obra do pintor holandês já só ocupa um capítulo no terceiro volume, depois do consagrado a Cézanne e antes do dedicado a Gauguin. Entre os dois escritos, a reflexão alargou-se e pormenorizou-se: em 1947, Mário Dionísio ainda é membro do Partido Comunista Português e a sua «defesa» do «realismo», entendido como noção suficientemente vasta para englobar todas as deformações operadas pelo trabalho pictórico, do simbolismo ao expressionismo, passando pelo fauvismo e pelo cubismo, embora já enuncie a «inseparabilidade» do fundo e da forma, ainda os distingue e admite que se atribua a prioridade ao «conteúdo». O caminho percorrido entre 1952 ou 53 – data das oito lições sobre a pintura moderna proferidas na Associação de Estudantes da Faculdade de Ciências – e 1962, tempo da redacção d’A paleta e o mundo, pode resumir-se, mais do que à descoberta, à compreensão da pintura abstracta, pelo que, definitivamente, fundo e forma já não se opõem – durante quase 20 anos, a questão teórica e estética que esse binómio levanta suscitou uma longa polémica com Álvaro Cunhal, dirigente do Partido Comunista Português e pintor, que, sob o pseudónimo de António Vale, refutava precisamente as teses de Mário Dionísio, só reconhecendo valor pictórico em caso de «conteúdo» social e político explícito. Em 1947, ao analisar o percursos e os quadros de Van Gogh, o importante parece-lhe ainda ser sublinhar as preocupações sociais do pintor que se mantêm do período holandês ao período provençal e unir, por detrás da sua aparente antinomia, as trevas terrosas do primeiro e os violentos e luminosos contrastes do segundo. É porventura a este nível que se pode vislumbrar os limites da análise de Mário Dionísio: a preocupação social diminui na vida e na obra de Van Gogh em proveito de uma consciência mais ampla da condição humana – sendo a miséria social tão-só uma exacerbação da miséria ontológica – e o negrume da mina não é o mesmo que o da noite, tal como as curvas e as pinceladas em vírgula das primeiras telas não são semelhantes aos turbilhões cósmicos que sacodem os rostos e as paisagens das últimas telas. Mas a discutível vontade de fazer de Van Gogh um pintor «realista» nada retira à inteligência e à subtileza da análise. Para Mário Dionísio, o pensamento é inseparável da acção. Intelectual dado ao convívio com pintores, levado a interessar-se pela modernidade pictórica nos anos 40, começou por se consagrar à prática e, embora essa vocação lhe tenha sido relativamente tardia, como aliás também o foi no caso de Vincent, acabou por se dedicar à pintura como praticante paralelamente à sua actividade crítica. A análise que propõe das manchas de tinta e dos contrastes nas telas de Van Gogh – do gesto do pintor e da sua pinceladas – é feita a partir de dentro, pelo olhar dum outro pintor. É a prática que lhe permite acompanhar, passo a passo, a evolução expressiva de Van Gogh. No seu estudo, formula primeiramente o objectivo teórico, histórico e político da pintura e o surgimento do conceito de «realismo» a partir de Diderot – primeiro capítulo: O HORRÍVEL ESTÁ EM TODA A PARTE. A seguir resume minuciosamente a biografia do pintor, de esperança em esperança e de fracasso em fracasso, não omitindo nenhuma das tentativas de escapar à solidão a que as suas firmas convicções o condenavam – segundo capítulo: UMA MÚSICA CALMA E PURA. O capítulo seguinte, que aborda os quadros de Van Gogh, desenvolve dois aspectos geralmente subestimados da vida do pintor: por um lado, as suas leituras e o seu posicionamento ideológico e estético relativamente à literatura do seu tempo, por outro, a sua escrita que revela, através da correspondência, a análise constante e lúcida de cada uma das suas opções pictóricas – cores, contrastes, deformações – cientemente escolhidas para cada uma das suas telas pintada – terceiro capítulo: UM PÁSSARO PRESO NA PRIMAVERA. Após esta primeira abordagem, opõe a atitude de Van Gogh aos privilégios que o estatuto de «artista» pode trazer aos pintores que se mostram satisfeitos com o estatuto social e, fechados na sua torre de marfim, recusam a dimensão política das suas opções estéticas – quarto capítulo: A ARTE É UM COMBATE. Depois retoma a análise dos quadros, desta feita estritamente sob o ângulo pictórico, e enuncia a unidade da forma e