OS POMBOS Observando retrospectivamente a obra de Elia Kazan, sou levado a crer que as contradições que nela têm vindo a ser apontadas, do escândalo dos primeiros filmes ao mal-estar suscitado pelo seu comportamento perante a omissão McCarthy — e pela justificação de tal atitude nos filmes seguintes —, assentam todas numa apreciação apressada da postura do cineasta que tende a ocultar a coerência profunda das posições por ele assumidas. O trajecto de Kazan de A STREETCAR NAMED DESIRE a SPLENDOR IN THE GRASS, passando por EAST OF EDEN, parece marcado pela preocupação de encenar uma concepção freudiana da patologia provocada pelo recalcamento. Todavia, a teoria psicanalítica só serve de suporte para uma problematização mais simples — mas não menos complexa de resolver — do conflito natureza/cultura. Nestes filmes, ao apresentar o eros como pulsão que domina as personagens, Kazan não encara a possibilidade duma satisfação simples da líbido; muito pelo contrário, interroga-se sobre as condições de satisfação das pulsões animais no contexto social. E toma sempre partido pelo compromisso, o «arrangement». Os heróis positivos de Kazan são invariavelmente aqueles que conseguem dominar os ímpetos naturais, os quais conduziriam a uma assimilação da sociedade à selva — AMÉRICA, AMÉRICA, porventura em parte autobiográfico, narra a sua partida enquanto escolha contra os instintos, filiais, territoriais, etc. Em contrapartida, THE VISITORS mostra claramente que o ajuste de contas coincide com um regresso à selvajaria. O reconhecimento das pulsões, com toda a sua dimensão turva e ambivalente, não implica a defesa do reflexo natural, mas obriga a constatar a ineficácia da repressão e a sua profunda hipocrisia. Em ON THE WATERFRONT, a sociedade humana e a sociedade animal estão constantemente colocadas em paralelo através da figura polissémica dos pombos: simultaneamente animais e modelos ideais de conjugalidade, e no entanto indefesos, necessitados da intervenção do homem no papel de protector, logo capaz de atitudes que sublimam o instinto. O pombo é por conseguinte um modelo a ultrapassar: Terry tem de renunciar tanto à fidelidade — baseada no medo — como à vingança directa — Jonhny Friendly perde o poder quando bate em Terry. Aliás, o pombo é desde o início caracterizado pela falta de consciência: é a pretexto de lhe devolver um pombo que Terry provoca a morte do seu amigo... O corolário desta concepção da humanidade é que o homem só escapa à bestialidade através da renúncia e caracteriza-se no fim de contas pela sua resistência à dor que esta provoca. Trata-se de escolher o grupo, de aceder à humanidade, dessolidarizando-se do que poderia ser satisfação primária das necessidades animais. A obra de Kazan representa incontestavelmente uma apologia do sofrimento e de um sacrifício que não vai até ao aniquilamento — por isso mesmo, apesar do seu fundo crítico e da presença da temática da redenção, o fim de ON THE WATERFRONT não deve ser considerado como um happy end forçado; é justamente porque
Terry sobrevive que ele representa o triunfo do homem. O próprio método elaborado pelo Actor's Studio é neste aspecto revelador: o objectivo não consiste em representar falsamente sentimentos, mas em vivê-los de facto — e Kazan retoma a abordagem de Stanislavski; contudo, para os exprimir, o actor não pode deixar-se dominar por eles nem deixá-los transparecer, deve sim desviá-los para um pormenor de postura que os trairão. Reconhecimento e libertação controlada dos instintos não constituem pois dois pólos e não traduzem nenhuma mudança de atitude por parte de Kazan: se as condições históricas o levaram a privilegiar inicialmente o primeiro e a adoptar uma posição de aparente oposição à moral em vigor, foi apenas porque o puritanismo americano o pressionou nesse sentido. No fim de SPLENDOR IN THE GRASS, embora o espectador entreveja a sombra dum arrependimento em Warren Beatty perante Natalie Wood, não há a menor dúvida de que ele assume a sua opção, a sua mediocridade, e de que Kazan lhe dá razão. Não é impossível que a escolha da peça de Tennessee Williams, no momento em que Kazan começa a ser reconhecido como cineasta, tenha dado azo a este mal-entendido que pairou sobre a sua obra e que o autor tentou repetidamente desfazer, através dos papéis de Zapata e de Terry, a imagem da sensualidade triunfante que colara à pele Marlon Brando como uma máscara em A STREETCAR NAMED DESIRE (cf. o artigo de Pedro Ludgero «Raiva e dignidade»). A via do compromisso só podia levar Kazan a tomar uma posição anticomunista — não por pensar realmente que o partido camuflava uma actividade de gangsterismo, mas mais radicalmente porque duvidava dos seus objectivos: que parte do homem se procurava libertar? Da mesma maneira que a recusa da animalidade pode apresentar duas faces, a da dignidade que decorre do ressentimento ultrapassado e a da patologia causada pelo recalcamento imposto, a animalidade também é ambígua: selvajaria e fragilidade ao mesmo tempo. Os animais não são todos iguais e Kazan impõe ao homem um dever de solidariedade e de protecção — de onde a importância do papel do padre. Reminiscência talvez das suas origens — que lhe ensinaram que hoje em dia ainda há povos condenados à servidão ou ao massacre —, Kazan perfilha, juntamente com os valores americanos, a figura do irmão mais velho que os Estados-Unidos julgam representar no palco geopolítico do mundo. E a questão coloca-se: não somos nós os pombos? Dificilmente aceitamos a metáfora que nos descreve «a cair como patos» (pígeons em inglês) mas a imagem da ingenuidade indefesa convida-nos a reflectir sobre os instintos que determinam os nossos actos e sobre o nosso papel de peões. S.