Os puritanos

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OS PURITANOS A ficção americana parece condenada à mumificação — as mesmas histórias de gangsters e polícias, de cowboys ou de «casos sociais» —, arvorando contudo novas maquilhagens — doravante os heróis fodem, cagam e mijam, os polícias são corruptíveis, a receita do maniqueísmo simplista foi abandonada. Em plena era do segundo grau, a ficção americana, consciente de que a imagem é tão-só um reflexo, começa a mostrar, sob os artifícios de cosmética, o verdadeiro rosto. Devo confessar que não partilho o entusiasmo com que a crítica europeia tem vindo a celebrar os novos realizadores americanos, A. Ferrara, Q. Tarantino e, em certa medida, os irmãos Coen. Trata-se de um cinema de argumentistas cuja força reside sobretudo nos diálogos e em que o desempenho dos actores é essencialmente centrado no trabalho de dicção. Os diálogos funcionam dramaticamente a vários níveis: 1. pela escolha de uma certa crueza, são acima de tudo naturalistas e vêm reforçar a estética «realista» do cinema americano; 2. pela importância quantitativa, transformam as personagens em tagarelas compulsivos e reforçam a estética teatral do cinema; 3. pelo mecanismo de ruptura — interrupção, prolongamento, suspensão, etc. — em relação à acção, acentuam também o carácter simbólico da problemática. Quer isto dizer que os diálogos, portadores de uma virtual consistência das personagens, fazem passar a acção em si para segundo plano — esta última nunca traz nada de novo, limitando-se a retomar chavões, tratando-os no modo paródico —, favorecendo a emergência da natureza profundamente religiosa do discurso. Já era consabido que a moral veiculada pelas histórias de gangsters e cowboys assentava num velho fundo puritano, mas o cinema hollywoodiano clássico dava prioridade à problemática social — nascimento de uma nação e de uma civilização, perigos de perversão dos mecanismos jurídicos e sociais do sistema, inviabilidade da «margem», etc. — e a questão religiosa só episodicamente marcava presença através de algumas figuras de pregadores. Ora, nas ficções recentes, o mais vulgar gangster cita a Bíblia (PULP FICTION), os polícias têm crises místicas (BAD LIEUTENANT) e os psicopatas são assimilados aos cavaleiros do apocalipse (BARTON FINK). Em todos estes filmes, a violência é apresentada como um fenómeno fundador, a corrupção como parte integrante de um sistema em que a vida humana não tem nenhum valor positivo em si (1500 dólares é o montante em que uma vida é avaliada em PULP FICTION). Num mundo social condenado, as personagens encontram-se perante uma vaga de manifestações divinas ou diabólicas e o seu comportamento só ganha sentido numa perspectiva de hipotética salvação individual. Assim, o espectador, a pretexto de aventuras convencionais, tem de aguentar com sermões de duas horas, sob forma de parábolas. A pregação lida com os temas maiores do perdão e da redenção (BAD LIEUTENANT, PULP FICTION). Os valores tradicionais do modelo americano (coragem viril, patriotismo, fidelidade à palavra dada) nunca são postos em causa — mesmo o episódio do


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