OS QUADROS DENTRO DO QUADRO Haverá, volvidos cinquenta anos, algo a acrescentar à notável análise que Bazin fez do Mystère Picasso? Talvez convenha começar por dizer que estes cinquenta anos de cinema em nada aprofundaram o mistério da criação pictórica — no máximo podemos constatar que a personagem do "pintor" entrou no rol dos grandes papéis de composição (cf. o nosso artigo "Entrada dos artistas" in "A Grande Ilusão" nº 13). Assim, o filme de Clouzot continua a ser um farol, quanto mais não seja por assumir praticamente condições de laboratório no que respeita ao registo do processo criativo, mas sobretudo por ser a 90% composto pela simples tela — que ocupa todo o ecrã, substituindo-o de algum modo —, isto é, por ter confiado o gesto, com um mínimo de efeitos de montagem, a Picasso. Aquilo que ocupa apenas a sequência final de O Pintor e a Cidade de Oliveira constitui a quase totalidade do filme de Clouzot. E apesar da evidência de que assistir ao gesto criador não nos permite compreender os impulsos ou o génio, algo do seu mecanismo se revela: a) Picasso começa por brincar, primeiro com Clouzot, e por intermédio dele, com o espectador: trata-se de o surpreender. Voluntariamente, Picasso, que já tem pelo menos uma ideia do tema do quadro final, começa por apontamentos laterais, no seio dos quais o motivo central só mais tarde surgirá. Picasso joga com esta expectativa e com a decepção, fazendo a demonstração da sua capacidade gestual e visionária. b) Picasso previne a dada altura Clouzot: "tenho uma surpresa guardada para ti." E esta consiste na infinita capacidade que Picasso possui de metamorfosear o objecto do desenho: o peixe transformase em galo graças ao acréscimo de alguns traços que fazem surgir a cabeça, a cauda e as patas. Ora o que essa metamorfose torna sensível — porque atinge o objecto figurado — é parte integrante de cada pincelada, simultaneamente aleatória e provisoriamente definitiva. Picasso parece economizar todos os "rascunhos" tradicionalmente necessários para chegar à perfeição do traço. c) A metamorfose generalizada que, a partir do traço, atinge tudo o que é representado, funciona por associações: de uma mesma base triangular, Picasso faz um corpo ou uma zona de sombra, conforme o traço que a primeira engendrar, conforme o contraste criado entre essas duas manchas, etc. A liberdade de Picasso reside na distância virtual que as tais associações vão abolir. (O jogo das cores adquire aqui uma importância primordial, sendo a pele o único elemento ao qual o pintor não atribui cor...) d) Picasso trabalha por acumulação: nenhuma camada é totalmente apagada, elas sobrepõem-se e dão aos objectos esse relevo múltiplo característico do autor: a mulher oferece-se de perna afastada e deitada sobre o flanco e de pernas cruzadas e estendida de barriga para baixo... o touro baixa o focinho e levanta-o e muge e dá uma cornada... cada etapa deixa um rasto que o resultado final deve, sinteticamente, integrar. e) O quadro final é uma totalidade complexa em que os diversos elementos — presentes desde as primeiras hipóteses — por um lado devem atingir a forma certa, por outro devem harmonizar-se com os restantes. Os avatares do último quadro — para a composição do qual Picasso, estimulado pelo "risco" obviamente parou de "brincar": é neste que Picasso já não se diverte a "fazer Picassos" — aparentemente condenado ao insucesso (pelo menos assim parece a dada altura), são reveladores: os elementos humanos não encontram a sua "escala" na paisagem da praia; à banhista junta-se um companheiro, depois ambos formam um casal, começam a crescer — em detrimento dos outros elementos. Tendo atingido um estado de insatisfação — em relação ao resultado — mas não menos de certeza — em relação ao objecto —, Picasso pega numa folha virgem e, numas poucas pinceladas, encontra imediatamente a síntese global que as etapas da primeira tentativa não tinham permitido obter. f) Por fim, e é esse o paradoxo do filme de Clouzot, o tempo de apreciação do' quadro "acabado" é tão curto comparado com o tempo de observação da sua elaboração que cada estado nos parece tão satisfatório como outro qualquer e mesmo até como o último — já que é a interrupção que o faz "último". A memória não retém os quadros mas sim a multiplicidade de quadros que cada um contém. Talvez o filme de Clouzot não desvende o segredo do "mistério Picasso", nem sequer o da
génese dos seus quadros; contudo permite-nos tomar consciência — e tanto quanto sei continua a ser o único a tentar fazê-lo — da multiplicidade dentro da unidade, do abyme da sua construção. Saguenail