Os tres discursos

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OS TRES DISCURSOS A estrada do Sul apresenta-se como um documentário de "autor": o autor toma a palavra — sobre planos filmados da sua (?) janela, sobre o leitmotiv dos passos que fazem rolar o barril — para introduzir outras palavras — o filme é essencialmente composto de depoimentos — das quais o cineasta se retira: não se ouvem as perguntas, não se vê o entrevistador. Assim, o filme consiste numa estruturação de três níveis de discurso, o das pessoas entrevistadas, o do cineasta que as filma, o do autor que organiza a sequência das imagens e dos depoimentos. I. As palavras O filme começa em Amesterdão: os habitantes rejeitados para os subúrbios decidiram ocupar comunitariamente as casas desabitadas do centro. A palavra é desenvolta, reivindicadora; a ideologia é objecto de discussão. Na segunda sequência dedicada aos squats de Amesterdão, verificamos que a luta, independentemente do seu sucesso ou insucesso na prática, leva a uma tomada de consciência quanto aos valores de vida — testemunho duma mulher mais velha que descobre a "razão" dos jovens à sua volta e a riqueza insuspeitada da vida comunitária. A esta palavra opõe-se o silêncio desconfiado dos marroquinos expulsos da igreja onde se tinham refugiado, o discurso submisso ou queixoso dos imigrantes parisienses, os louvores ao padre da Calábria que montou uma cooperativa de confecção — o discurso da costureira revela a sua impotência sem a intervenção providencial do sacerdote, i. e. a sua total obediência a um destino que lhe escapa. E à medida que a viagem avança rumo ao Sul, o discurso degrada-se até ao ponto culminante do guarda-nocturno egípcio que já só fala se a isso for quase obrigado. II. As imagens A câmara de Van der Keuken, sempre carregada ao ombro — donde uma imperceptível mas constante oscilação do enquadramento que traduz a sua participação física na gravação das imagens — sabe encontrar o enquadramento que situará os discursos: contraluzes que realçam a penumbra do squat, armação de ferro do metro que emoldura o mercado magrebino da "Goutte d'Or", luzes dispersas em estilhaços nas poças de água das cidades do Norte (Amesterdão ou Paris)... Certas imagens parecem emblemáticas em si: a garrafa gigante de uma publicidade para a Seven Up que se ergue simétrica ao minarete de uma mesquita do Cairo; os peões obrigados a curvar-se para chegarem ao passeio passando por baixo da barreira que delimita a calçada —materialização do metafórico "buraco de uma agulha" bíblico... III. O filme O percurso de Amesterdão ao Sul do Egipto surge como uma viagem às avessas, um retorno aos locais donde vieram os imigrantes que procuram encontrar o seu lugar nas cidades do Norte. Ao percorrê-lo, o filme deixa entrever outros movimentos de deslocação, em particular o êxodo rural que tanto deixa marcas na Alta Provença como na Calábria ou no vale do Nilo. Porém, a problemática do espaço urbano não parece paralela em Paris e no Cairo. Pois sobre este fundo, o percurso rumo ao Sul corresponde a uma perda da palavra, a um domínio cada vez menor dos habitantes sobre o lugar onde vivem e sobre o seu destino — facto que explica porventura a migração para Norte. No entanto, à medida que o cineasta aborda realidades que lhe são menos familiares — e que os testemunhos se revelam mais reticentes e lacunares — o discurso, à falta de voz, torna-se cada vez mais simplista e, enquanto as contradições das cidades do Norte, Amesterdão ou Paris, aparecem claramente, as das cidades do Sul, Roma ou o Cairo, são pouco nítidas e, por comparação, superficiais — qualquer cidade é o Norte de algum Sul. Van der Keuken, forasteiro curioso em postura de escuta mais não é do que um turista no Cairo — basta para tanto comparar o fim do seu documentário com "O Cairo visto por Youssef Chahine". Reconheçamos-lhe contudo o enorme mérito de ter percorrido a rota de regresso ao Sul e de ter solicitado a palavra daqueles que a viram confiscada como lhes foi confiscada a cultura — o filme evidencia magistralmente a


ligação entre o domínio sobre o local de habitação e de trabalho e o domínio da palavra — esses mesmos que a perderão talvez definitivamente quando se perderem a caminho do Norte. Saguenail


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